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Lei nº 14.532/23 e o combate ao racismo

A lei deveria criminalizar qualquer forma de discriminação, mas a Lei nº 7.716 se restringiu ao preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Sancionado em 11 de janeiro de 2023, o Projeto de Lei 4.566/2021, transformado na Lei 14.532/2023, veio à lume para modificar substancialmente as previsões legais acerca dos crimes que envolvem condutas preconceituosas ou discriminatórias, muitas vezes aglutinadas – seja perante o público em geral, seja na comunidade jurídica – sob o termo racismo.

O tema não é novo. A Lei 7.716 ingressa em nosso ordenamento jurídico em 1989 como decorrência do mandado constitucional de criminalização previsto no artigo 5º, inciso XLII, da Constituição da República. A CRFB, elaborada em um momento histórico de redemocratização e de defesa intransigente de políticas igualitárias, prevê no mencionado dispositivo que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão. A exigência de criminalização do racismo, evidentemente, decorre de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, enunciado como a busca pela “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CRFB).

A norma constitucional encerra em seu texto uma cláusula geral, razão pela qual entendemos que a legislação infraconstitucional deveria criminalizar toda e qualquer forma de discriminação ou preconceito opressor. Porém, não foi isso que se sucedeu por ocasião do advento da Lei 7.716, que restringiu seu âmbito aos delitos “resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Nessa toada, incumbe ressaltar que o STF enxerga no termo racismo, constitucionalmente empregado, algo que vai muito além das questões de raça, consoante exposto no HC 82.424 (Caso Ellwanger, 2003). Mais recentemente, a extensão da aplicabilidade da Lei 7.716 aos casos de homotransfobia (ADO 26 e MI 4.733) reforçou esse compromisso da Suprema Corte para com o reconhecimento da necessidade de criminalização de todas as formas de preconceito e discriminação. Assim, na esteira do STF e em entendimento dotado de axiologia constitucional, defendemos que a palavra “racismo”, no contexto da CRFB, deve ser compreendida como um “racismo social”, que relega certas categorias de pessoas a uma situação de “semicidadãs”.

Do mesmo modo, sempre defendemos que os crimes de racismo não se encontram apenas na lei de regência da matéria (Lei 7.716), podendo ser identificados em outros diplomas normativos, como, por exemplo, na Lei de Tortura (art. 1º, II, da Lei 9.455/1997) e no crime de redução a condição análoga à de escravo (art. 149, § 2º, II, CP). Essa compreensão se espraia ao art. 140, § 3º, que incrimina as ofensas individualizadas de natureza preconceituosa. Não por outro motivo, o STF estendeu ao mencionado art. 140, § 3º, do CP a imprescritibilidade (e, reflexamente, a inafiançabilidade) prevista no art. 5º, XLII, da CRFB (HC 154.248/DF).

Recentes episódios de falas preconceituosas criminosas, com liberação dos autores mediante pagamento de fiança (o que entendemos equivocado), fizeram com que o legislador recobrasse seu interesse pelo tema, o que conduz à recente edição da Lei 14.532. Esse diploma altera a Lei 7.716 e o Código Penal, especialmente no que concerne à disciplina do crime de injúria e à estrutura do art. 20 da Lei 7.716. Comecemos com a injúria.

Outrora prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, a injúria racial ou por preconceito sofreu um desmembramento. Parte do seu antigo conteúdo passa a ser previsto no art. 2º-A, da Lei 7.716, com a seguinte redação: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas”. Permaneceram no art. 140, § 3º, do CP, as ofensas preconceituosas contendo elementos de raça, condição de pessoa idosa ou condição de pessoa com deficiência. Desde logo advertimos que passaremos a denominar o crime do art. 140, § 3º, do CP, de injúria por preconceito, ao passo em que chamaremos o art. 2º-A, da Lei 7.716, de injúria racial, por questões didáticas. Impõe-se destacar desde logo, ainda, que a diferença entre as duas formas de injúria e o art. 20 da Lei 7.716 se mantém: a injúria é sempre dirigida a pessoa ou grupo de pessoas individualizado (específico), ao passo em que o art, 20 contempla manifestações preconceituosas genéricas, voltadas a categorias de pessoas, sem individualizar o destinatário das ofensas.

Essa divisão entre injúria por preconceito e injúria racial cria uma situação de desproporcionalidade, especialmente no tocante ao preconceito religioso. O art. 1º da Lei 7.716 iguala, para fins de aplicação do diploma, o preconceito e a discriminação por motivos de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Em quase todos os tipos penais da lei essas espécies de preconceito são igualadas. A ruptura promovida pelo art. 2º-A, faz com que se puna a injúria de raça, cor, etnia ou procedência nacional com uma pena de reclusão, de 2 a 5 anos, ao mesmo tempo em que, à injúria religiosa, fica reservada a sanção anterior, de reclusão de 1 a 3 anos. Ou seja, provoca-se uma desequiparação injustificada.

Qual é a solução para essa perplexidade?

Ou seja, não há uma solução totalmente satisfatória.

Não há mais o que se discutir sobre inafiançabilidade e imprescritibilidade da injúria racial ou xenofóbica. Os argumentos anteriormente esgrimidos para refutar a hipótese (previsão em diploma legal diverso da lei específica sobre racismo, natureza condicionada da ação penal e bens jurídicos tutelados diversos) perderam sua substância, já que agora o crime é previsto na Lei 7.716 e a ação é pública incondicionada. Sobre a tutela jurídica, o STF já decidira que, mesmo na injúria, há a salvaguarda do direito de igualdade, oriundo da construção de uma sociedade livre de preconceitos. A honra subjetiva também faz parte da objetividade jurídica, mas não é o seu aspecto mais importante, de modo que, nesse ponto, não há grandes diferenças entre a injúria e os demais crimes da Lei 7.716. Entrementes, advertimos que persistirá a celeuma para aquelas situações que se mantêm no art. 140, § 3º, do CP (em que o diploma legal não é específico e a ação penal se mantém condicionada), ainda que, como já dissemos, não vejamos vedação ao reconhecimento da imprescritibilidade e da inafiançabilidade (além do STF, assim também se pronunciou o STJ, no AgRg no AREsp 734.236).

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Note-se que o crime do recém-criado art. 2º-A, embora previsto na estrutura de uma lei especial, possui os mesmos alicerces da norma prevista no art. 140 do CP. Ou seja, há uma injúria especial, a qual se distingue do tipo penal genérico por uma motivação peculiar. É a finalidade do agente que deverá ser observada para afirmar a subsunção da conduta ao novo ilícito penal. Explica-se:

Para que uma injúria – qualquer que seja – reste caracterizada, mister a existência do animus injuriandi, ou seja, da vontade de ofender (intenção de atingir a dignidade ou o decoro de outrem). No art. 2º-A, a par do animus injuriandi, a manifestação ofensiva deve ser feita porque o sujeito ativo é preconceituoso em relação à raça, cor, etnia ou procedência nacional da vítima. Inexistente o animus injuriandi, não há crime (explicaremos isso mais adiante, quando tratarmos do “racismo recreativo”). Esse ponto traz uma relevante distinção entre a atual redação da injúria racial ou xenofóbica e aquela contemplada outrora pelo tipo de injúria por preconceito (antiga redação do art. 140, § 3º, do CP). Na antiga norma (cuja lógica se mantém para as espécies de preconceito ali previstas), a ofensa deveria conter elementos referentes à raça, cor, etnia ou procedência nacional da vítima (“se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a...”), o que ora é dispensado, bastando que a ofensa tenha por motivação a condição da vítima. Assim, xingar um negro de “bandido”, na redação anterior, era injúria em sua forma simples (salvo se agregado o elemento de cor à ofensa, como chamá-lo de “preto bandido”). Doravante, xingar um negro de bandido, pois o sujeito ativo assim o enxerga em razão da cor de sua pele, é injúria racial.

E a injúria praticada por homotransfobia? Onde se situa nesse contexto? Apesar da ausência de previsão expressa, cuida-se de situação atinente ao art. 2º-A, da Lei 7.716. A conclusão é inexorável, face ao decidido pelo STF na ADO 26 e no MI 4.733.

Além daquilo que já foi mencionado, há outros problemas de proporcionalidade na alteração legislativa. Vejamos: a injúria racial prevista na Lei 7.716, consistente numa ofensa à vítima, é punida com reclusão de 2 a 5 anos. Já a conduta recusar ou impedir o acesso a estabelecimento comercial, por exemplo, que tem evidente caráter segregador, é punida com reclusão de 1 a 3 anos. Entretanto, a forma mais grave de racismo é aquela que segrega, ou seja, que limita direitos e liberdades públicas por razões de discriminação ou preconceito. É evidente que ao ofender uma pessoa por motivos de cor, por exemplo, o agente também promove o racismo, mas de forma menos significativa daquele que se recusa a atender uma pessoa em um restaurante pelo simples fato de ela ser negra.

Um parêntese conceitual: embora muitas vezes usemos os termos preconceito, discriminação e segregação de forma livre, sem preocupação com seu correto conteúdo, eles são diferentes entre si. Por preconceito (do qual o racismo é uma espécie), entenda-se a opinião negativa e desapegada da realidade sobre uma pessoa ou um grupo de pessoas; a discriminação, ao seu turno, é a ação. Uma discriminação pode ser positiva (no caso de ações afirmativas, por exemplo), mas, quando negativa, será determinada por um preconceito. A Lei 7.716, em dispositivo incluído pela Lei 14.532, estabeleceu parâmetros para o reconhecimento das formas de discriminação por ela incriminada. Segregação, por fim, é uma forma de exclusão, de criação de barreiras físicas ou sociais que impedem o livre exercício de direitos. Assim, não é desarrazoado falar-se em “racismo discriminatório” ou em “racismo segregatório”, a fim de distinguir as hipóteses.

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A proporcionalidade é aviltada, ainda, quando analisamos a manifestação preconceituosa por meio de redes sociais informatizadas no contexto dos arts. 140, § 3º, c/c 141, § 2º, do CP, 2º-A da Lei 7.716 e 20, § 2º, da mesma lei. Analisando apenas o caput desses dispositivos, aquele de maior gravidade é a injúria racial ou xenofóbica, com pena de reclusão, de 2 a 5 anos. A injúria por preconceito do Código Penal e o art. 20 da Lei 7.716 possuem a mesma sanção penal (1 a 3 anos e multa). Logo, são equiparados pelo legislador em reprovabilidade. Contudo, quando esses crimes são praticados por meio de redes sociais informatizadas, a situação muda de figura. O crime mais grave passa a ser o do art. 140, § 3º (cuja pena é triplicada, chegando ao patamar de 3 a 9 anos de reclusão). Já o art. 20, caput e § 1º, sob a regência da nova redação do § 2º do dispositivo, passam a ter uma pena de 2 a 5 anos de reclusão, além de multa, equiparando-se ao art. 2º-A. E este artigo? Sua pena não sofre nenhum acréscimo. Impossível uma incoerência maior.

Superado o estudo das injúrias, vale analisar outras inovações promovidas. Tendo em vista os tristes episódios de condutas preconceituosas em estádios de futebol no Brasil e no mundo, o novo diploma acrescenta uma figura qualificada no §2º-A do artigo 20 da Lei de Racismo, caso as condutas sejam praticadas no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público. Em tais situações o racismo será punido com pena de reclusão de 2 a 5 anos, além de uma interdição temporária de direitos cumulativa, consistente na proibição de frequentar, vale dizer, de acessar estes locais pelo prazo de 3 anos.

No §2º-B, do artigo 20, da Lei, encontramos curiosa previsão no seguinte sentido: “sem prejuízo da pena correspondente à violência, incorre nas mesmas penas previstas no caput deste artigo quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”. Uma vez mais, não compreendemos a distinção feita pelo legislador, que, nesta oportunidade, deu mais atenção ao racismo religioso em detrimento das outras formas de racismo. Pensamos que a norma deveria ser estendida, por exemplo, também a manifestações culturais (como no caso em que se impede uma festa do Boi-bumbá por razão xenofóbica). Uma vez mais, pensamos que o STF autorizou a extensão da norma para os casos de homotransfobia (hipótese, por exemplo, do sujeito que obsta uma manifestação do Orgulho Gay por motivação discriminatória.

Outro ponto inovador na Lei 14.532 envolve o artigo 20-A, que traz uma causa de aumento de pena nas hipóteses em que os crimes previstos na Lei 7.716 são praticados em um contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. Esta inovação é especialmente relevante porque permite a punição de manifestações preconceituosas travestidas de animus jocandi. Doravante, o sujeito ativo poderá ser punido pelos crimes previstos na Lei 7.716, com aumento da pena de 1/3 até a metade, mesmo em caso de meras brincadeiras, desde que possua a consciência de seu conteúdo preconceituoso e potencialmente ofensivo. Interpretamos isso como a manutenção de um resquício de animus injuriandi, para se permitir a punição do autor. Ausente essa consciência, inexiste crime. Ademais, manifestações críticas, ainda que realizadas com bom humor, mas desapegadas de caráter preconceituoso ou discriminatório, jamais poderão ser consideradas criminosas, pois conferem plenitude ao direito fundamental à liberdade de manifestação do pensamento. Por exemplo, uma crítica ao celibato existente na Igreja Católica através de tirinhas em quadrinhos de humor não consiste em prática delitiva.

Diante de todas as alterações provocadas pelo novo diploma normativo, concluímos que houve um avanço no combate ao racismo. Contudo, entendemos que muito mais poderia ser feito e de forma mais esmerada, evitando-se os equívocos já enumerados no texto. Entre outros pontos mais sensíveis, destacamos o fato de o legislador não ter inserido expressamente na Lei de Racismo a tutela de condutas homotransfóbicas, nos termos do que foi decidido pelo STF. Agora nos resta aguardar o amadurecimento do debate doutrinário e jurisprudencial, afirmando ou negando as ponderações realizadas no presente artigo, que não tem a pretensão de enunciar verdades absolutas, mas apenas contribuir para a evolução do pensamento sobre o tema.

Sobre os autores
Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Bruno Gilaberte

Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Professor de graduação e pós-graduação da Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).Especialista em Investigação Criminal pela UNISUL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini Neto; GILABERTE, Bruno. Lei nº 14.532/23 e o combate ao racismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7135, 13 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101994. Acesso em: 25 dez. 2024.

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