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Da constitucionalidade e da conveniência da Lei Maria da Penha

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Agenda 08/03/2008 às 00:00

Muito embora tenha sido comemorada, a Lei Maria da Penha tem sido objeto de críticas, políticas e jurídicas, por supostas inconstitucionalidades.

1. Introdução

Como se sabe, foi aprovada no final do ano de 2006 a Lei 11.340, que instituiu uma proteção penal diferenciada para as mulheres vítimas de violência doméstica.

Muito embora tenha sido comemorada, dita lei tem sido objeto de críticas, seja políticas, por supostas "inconveniências", como jurídicas, por supostas "inconstitucionalidades", que têm levado alguns tribunais a declara-la inconstitucional, o que inclusive fez o Presidente da República sentir a necessidade de impetrar Ação Declaratória de Constitucionalidade para impedir a falta de aplicação da lei pelo controle difuso de constitucionalidade.

Nenhuma daquelas críticas, contudo, subsiste, sendo inegavelmente tanto conveniente (por necessária politicamente) quanto constitucional a Lei Maria da Penha, visando este artigo demonstrar tais questões.


2. Razões do surgimento da lei

Independentemente do fato concreto que ensejou a condenação internacional do Brasil por desrespeito aos direitos humanos da mulher, adiante explicitado, o fator que constitui a principal causa da elaboração da Lei Maria da Penha é a violência histórica sofrida pela mulher.

É inegável a violência física e psicológica sofrida pela mulher ao longo dos séculos. Com efeito, constitui fato notório que a superioridade física do homem sobre a mulher, aliada à inerente fragilidade desta durante a gravidez, fizeram com que o homem, por assim dizer, vencesse a "guerra dos sexos" e se tornasse hegemônico na determinação dos rumos familiares. Fatos notórios, como se sabe, não precisam sequer ser comprovados em nosso ordenamento jurídico, por força do art. 334, inc. I do CPC.

Por outro lado, as religiões também trouxeram um papel decisivo na inferiorização da mulher. Sem querer desmerecer a fé alheia (como realmente não é este o intuito), é inegável que as religiões em geral sempre colocaram o homem em papel hierarquicamente superior à mulher, como "chefe da família". Ainda que isso eventualmente não se tivesse o intuito de gerar um despotismo do homem sobre a mulher, isso foi o que ocorreu: o homem historicamente se sentiu no direito de mandar e desmandar na mulher, determinando sua conduta e sua forma de vida em geral.

Primeiramente em casa, a mulher era prisioneira do pai, que se dava ao direito de definir com quem a filha iria casar [01] e ter com ela uma disciplina mais rígida que a tida com o filho homem, em função do dogma da virgindade, que foi criado e/ou mantido inequivocamente para garantir que o patrimônio do homem fosse transferido apenas a seus descendentes de sangue (muito embora a questão religiosa também pesasse). Ou seja, a virgindade foi erigida a requisito de respeitabilidade da mulher em virtude de ser a única forma segura do passado de se garantir que a sucessão dos bens do homem fossem apenas a seus herdeiros "de sangue".

Contraído o casamento, a mulher passava a prisioneira do marido, tido legalmente como "chefe da sociedade conjugal" e, portanto, definidor de todas as decisões relativas ao lar. Tamanho era o absurdo que a mulher sofria uma capitis diminutio: de absolutamente capaz quando solteira, passava a relativamente capaz quando casada... Somente com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) houve um abrandamento dessa questão, embora a vontade do homem prevalecesse em caso de discordância, o que só era suprível pela mulher com decisão judicial que lhe fosse favorável. Foi apenas a Constituição de 1988 que acabou com a absurda desigualdade jurídica sofrida pela mulher, ao trazer à literalidade normativa a obviedade segundo a qual "homens e mulheres são iguais perante a lei" (art. 5º, inc. I da CF/88) [02].

Ou seja, de prisioneira do pai, a mulher passava a prisioneira do marido, saindo dos mandos despóticos de um homem para os mandos despóticos de outro. Desde que o mundo é mundo humano, a mulher sempre foi discriminada, desprezada, humilhada, coisificada, objetificada, monetarizada [03].

Tudo isso criou um moralismo [04] coletivo segundo o qual a mulher deveria se subjugar às vontades do homem, o que só passou a se alterar com o surgimento do movimento feminista.

Nesse sentido, com a didática e precisão que lhe são peculiares, Maria Berenice Dias traz uma análise detalhada do verdadeiro inconsciente coletivo instaurado nas sociedades em geral em detrimento da mulher. Demonstra como ditados populares supostamente jocosos absolveram a violência doméstica, relegando-a à ausência de controle externo, mesmo judicial (tais como "em briga de marido e mulher não se mete a colher", "ele pode não saber porque bate, mas ela sabe porque apanha" e, ainda, "mulher gosta de apanhar", apontando que este último decorre da ignorância acerca da dificuldade da mulher em denunciar seu agressor); como a noção construída de masculinidade rechaçaria a presença de afetividade e sensibilidade nos homens, o que ensejou a agressividade masculina em face da mulher; como a sociedade outorgou ao homem o papel paternalista, de dominação, impondo à mulher uma educação diferenciada, de submissão e controle aos desígnios masculinos; como a violência masculina e a mentalidade machista levaram a mulher ao medo, à dependência econômica e ao sentimento de inferioridade; demonstrando, por fim, que o desejo do homem que abusa de sua mulher é o de submete-la à sua vontade em função de sua necessidade (acrescento: patológica) de manter o controle da situação (através da violência) para se manter seguro [05].

Tais fatos, que são notórios e historicamente inegáveis, demonstram como a sociedade historicamente desprezou a mulher, relegando-a a uma condição inferior à do homem – e fatos notórios não supõem comprovação, a teor do artigo 334, inciso I do Código de Processo Civil, regra passível de aplicação analógica no processo penal (apenas o Direito Material Penal não admite a analogia, não o Processual Penal).

Por outro lado, também historicamente inegável é a violência sofrida pela mulher dentro de seu ambiente familiar, sendo este o ponto ensejador deste artigo que, contudo, precisava ser contextualizado com as considerações supra. Com efeito, em virtude de toda essa inferiorização sofrida pela mulher, fosse do ponto de vista social como mesmo institucional (pela institucionalização de regras jurídicas que expressamente depreciavam sua dignidade em relação àquela reconhecida ao homem), a mulher acabou sendo vítima de toda a sorte de violências por parte do homem no âmbito doméstico. Toda mulher que não se enquadrasse nos dogmas sociais a ela impostos e, principalmente, "ousasse" desobedecer a vontade de seu marido, era fortemente reprimida, seja na base de castigos legalmente permitidos (em virtude de sua capitis diminutio, supra apontada) como também por meio de violência física. Era a mulher vítima dos chamados "corretivos", agressões consubstanciadas em lesões corporais leves pelas quais o marido se impunha – isso quando as lesões corporais não atingissem patamar elevado ao ponto de fraturas e lesões de outras espécies.

Tamanho era o absurdo da superioridade masculina sobre a feminina que a jurisprudência admitia como "legítima defesa da honra" o assassinato da mulher e de seu amante pelo marido traído... É inacreditável nos dias atuais (pelo menos para pessoas civilizadas), mas a infidelidade da mulher era utilizada como pseudo-justificativa para o assassinato dela pelo marido traído e, pior do que isso, os tribunais aceitavam tal postura com tranqüilidade até bem pouco tempo atrás sob o inacreditável fundamento de que se protegia um "bem maior", colocando o ego ferido do homem sobre a vida da mulher...

Nesse sentido, relata Maria Berenice Dias [06], em artigo publicado no jornal Zero Hora, em 10/05/1998:

O transbordamento do conceito de dignidade para atitudes alheias ensejou o surgimento de uma excludente de criminalidade não prevista na lei. A chamada legítima defesa da honra foi forjada mediante a idéia de que, se é possível defender a vida, possível é defender a vida interior, que é a honra. A justificativa da teoria é a possibilidade do sacrifício de bem jurídico alheio para a preservação de bem maior, ou seja, não é criminoso revidar a agressão à integridade, não só física, mas também à integridade moral. A convicção de que a infidelidade da mulher denigre a dignidade do homem acabava por autorizar sua morte, como forma de resguardo do próprio agressor. Assim, durante muito tempo, foram absolvidos todos os que, sentindo-se ultrajados, lavaram a própria honra a sangue.

Essa concepção evidencia um sentimento de posse do macho com relação à fêmea, transformando-a em objeto de sua propriedade e à hierarquização do par. Surge um elemento de submissão e subordinação dela em relação a ele, que resta como detentor do poder e editor das regras comportamentais. Porém, descabe conceder o controle da sexualidade feminina ao homem. Nos relacionamentos interpessoais, ao ser a mulher considerada a rainha do lar, recebe o cetro de responsável pela boa estrutura da família. Restando como guardiã exclusiva da moral familiar, fica o homem liberado. O seu comportamento fora de casa nada afeta, nem sua própria imagem, e muito menos a dignidade da esposa ou a honradez do lar.

Os tribunais pátrios, reconhecendo o equívoco, passaram a decantar a inexistência de dita excludente de antijuridicidade. Deixaram os homens de ficar impunes, quando, sentindo-se traídos, matavam suas mulheres. Mesmo pacificada essa postura jurisprudencial, não se encontra justificativa para a recente absolvição, levada a efeito pelo júri popular de uma cidade missioneira, do homem que matou a ex-mulher, após já estarem separados havia dois anos. O fundamento, aceito unanimemente pelo corpo de jurados (seis homens e uma mulher), é de ter agido o réu em legítima defesa da honra, ao ser chamado na rua de ‘cornudo’.

No entanto, mais surpreendente que a própria absolvição foi a ausência de reação dos movimentos feministas, a inércia dos defensores dos direitos humanos e a falta de repercussão do episódio nos meios de comunicação. É indispensável que esse infeliz episódio sirva para alertar a sociedade de que tal tipo de reação não decorre de um gesto de amor, mas simplesmente de amor próprio ferido. Um mero sentimento de vingança, em nome do resgate da própria honra, não pode legitimar que se disponha da vida alheia impunemente. Essa prática, ao receber o referendo da própria Justiça, revela que persiste a violência doméstica, não se podendo ainda falar em igualdade, como cânone maior da ordem constitucional. (grifos e destaques nossos)

É evidente que não se está dizendo que a infidelidade conjugal, seja do homem ou da mulher, não deva ter conseqüências. Geradora da insuportabilidade da vida em comum, justifica pedido de separação judicial. Ademais, historicamente e mesmo sob a égide da atual legislação, permite a atribuição de culpa ao outro cônjuge, com as penalidades legais a tanto, embora estudos recentes apontem a inconstitucionalidade da atribuição de culpa na separação judicial por indevida ingerência estatal na privacidade do casal.

Tais fatos, repita-se, são notórios e historicamente inegáveis, justificadores da especial proteção legal conferida à mulher pela Lei Maria da Penha, que se afigura, portanto, como absolutamente necessária para coibir as violências e abusos historicamente sofridos pelas mulheres em seu ambiente familiar, donde realmente "Só quem não quer não enxerga a legitimidade de tal ação afirmativa que, nada obstante formalmente aparentar ofensa ao princípio da igualdade de gênero, em essência busca restabelecer a igualdade material entre esses gêneros, nada tendo, deste modo, de inconstitucional" [07].

2.2. Do caso Maria da Penha: fatos concretos que ensejaram a criação da lei

A Lei Maria da Penha não teve seu nome escolhido aleatoriamente: trata-se de justa homenagem a uma mulher que sofreu absurdas agressões de seu marido em seu ambiente doméstico, na década de 1980, e não conseguiu a punição de seu marido pelas leis de então, devido à comunhão de ineficácia legislativa e morosidade judicial.

Maria Berenice Dias resume bem a trágica história de Maria da Penha:

Por duas vezes, seu marido, o professor universitário e economista M.A.H.V., tentou mata-la. Na primeira vez, em 29 de maio de 1983, simulou um assalto fazendo uso de uma espingarda. Como resultado ela ficou paraplégica. Após alguns dias, pouco mais de uma semana, nova tentativa, tentou eletrocuta-la por meio de uma descarga elétrica enquanto tomava banho.

Tais fatos aconteceram em Fortaleza, Ceará. As investigações começaram em junho de 1983, mas a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984. Em 1991, o réu foi condenado pelo tribunal do júri a oito anos de prisão. Além de ter recorrido em liberdade ele, um ano depois, teve seu julgamento anulado. Levado a novo julgamento em 1996, foi-lhe imposta a pena de dez anos e seis meses. Mais uma vez recorreu em liberdade e somente 19 anos e 6 meses após os fatos, em 2002, é que M.A.H.V. foi preso. Cumpriu apenas dois anos de prisão.

Essa é a história de Maria da Penha. A repercussão foi de tal ordem que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Apesar de, por quatro vezes, a Comissão ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu nenhuma resposta. O Brasil foi condenado internacionalmente em 2001. O Relatório da OEA, além de impor o pagamento de indenização no valor de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, entre elas ‘simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual’.

Foi em face da pressão sofrida por parte da OEA que o Brasil, finalmente, cumpriu as convenções e tratados internacionais dos quais é signatário. Daí a referência constante da ementa contida na Lei Maria da Penha à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

Ou seja, a Lei Maria da Penha surgiu como imposição da OEA ao Brasil para que cumprisse as convenções e os tratados internacionais dos quais faz parte no sentido de tomar as medidas legislativas (entre outras) para acabar com a discriminação sofrida pela mulher – em respeito à igualdade material, substancial, cumpre-me acrescentar.


3. A constitucionalidade da Lei Maria da Penha perante a Isonomia.

A principal alegação contrária à Lei Maria da Penha é a de que seria inconstitucional por suposta afronta ao princípio da igualdade, na medida em que institui tratamento diferenciado a homens e mulheres alvo de violência doméstica, no sentido de que o gênero da pessoa é o que define se o crime será julgado pelo rigor da referida lei ou então na modalidade de menor potencial ofensivo da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Argumenta-se que a Constituição teria vedado peremptoriamente o tratamento desigual entre homens e mulheres por força de seu art. 5º, inc. I (supra transcrito), que estatui que homens e mulheres são iguais perante a lei.

Contudo, tal argumento leva em conta apenas o aspecto formal da isonomia, ignorando flagrantemente o conteúdo jurídico material do princípio da igualdade. Passa-se, portanto, a explicitar o conteúdo jurídico do princípio da igualdade para, em seguida, verificar a compatibilidade da Lei Maria da Penha para com ele.

3.1. Do Princípio da Igualdade.

O ordenamento jurídico-constitucional brasileiro adotou a doutrina dos aspectos formal e material da isonomia. Segundo o aspecto formal, a mesma lei deve ser aplicada a todos, sem distinção. É a regra da igualdade jurídica, criada na época da Revolução Francesa como forma de se superar as diferenciações arbitrárias existentes em favor Nobreza, Burguesia e Clero em detrimento do Povo.

Contudo, o caráter meramente formal da igualdade provou-se historicamente insuficiente, na medida em que conferiu ao legislador o poder de definir arbitrariamente o conteúdo dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais praticamente se confundiam com o princípio da legalidade, na medida em que somente existiam se a lei (infraconstitucional) definisse seus contornos. Confiava-se cegamente no Parlamento, não se vendo motivo para dele desconfiar em hipótese nenhuma já que eleito democraticamente para representar os interesses do povo. Todavia, a existência de regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo, que existiram em Estados de Direito que consagravam a idéia de igualdade meramente formal, fez a humanidade perceber que o legislador também pode ser inimigo dos direitos humanos, donde se retomou o aspecto material da isonomia, extraído da célebre frase de Aristóteles segundo a qual deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade.

Todavia, embora este seja um importante início, ele não define nem de longe o conteúdo do referido aspecto material, pois é preciso dizer quem são os iguais e quem são os desiguais – ou, em outras palavras, quais os critérios juridicamente válidos para se estabelecer um tratamento desigual.

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Muito embora haja quem defenda que determinados critérios, como os erigidos constitucionalmente, não admitiriam nenhuma espécie de discriminação, este entendimento afigura-se equivocado na medida em que toda a lei é discriminatória, toda a lei institui um tratamento diferenciado a determinadas pessoas em relação a outras. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, por exemplo, são microssistemas jurídicos que conferem tratamento mais benéfico a menores (pessoas até dezoito anos) e idosos (pessoas maiores de sessenta e cinco anos) do que o existente para adultos (pessoas entre dezoito e sessenta e cinco anos), mesmo tendo o art. 3º, inc. IV da CF/88 proibido discriminações jurídicas (que nada mais são que diferenciações de tratamento) por idade [08]. A licença maternidade também é maior que a licença paternidade e em nenhum desses casos alega-se inconstitucionalidade por afronta à isonomia.

Assim, parafraseando Celso Antônio Bandeira de Mello em seu célebre Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, a discriminação juridicamente válida é aquela que vise a pessoas indeterminadas e indetermináveis no momento de sua escolha (na elaboração do projeto legislativo), que seja uma decorrência lógico-racional do critério diferenciador erigido e, por fim, que esteja em consonância com os valores constitucionalmente consagrados. É o que denomino de procedimento trifásico-cumulativo da isonomia, na medida em que se um desses aspectos for inválido, a discriminação será inconstitucional.

Faço apenas uma ressalva ao pensamento do célebre doutrinador: penso que o terceiro critério não faz parte da isonomia, mas da constitucionalidade em geral. Isso porque, se é certo (como é) que a discriminação juridicamente válida é aquela que, além de visar pessoas indeterminadas e indetermináveis e seja pautada por uma motivação lógico-racional, deva ser coerente com os valores constitucionalmente consagrados, a isonomia encontra-se satisfeita com a presença dos dois primeiros aspectos, donde eventual incoerência da diferenciação com outros valores constitucionalmente consagrados ensejará inconstitucionalidade por afronta a eles, não à isonomia – o que significa que a discriminação juridicamente válida necessariamente tem que respeitar a isonomia, embora o respeito à isonomia nem sempre gere uma discriminação juridicamente válida.

É por isso que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e a licença maternidade não são inconstitucionais, mesmo a teor dos art. 3º, inc. IV e 5º, inc. I da CF/88, na medida em que se afigura como lógica e racional a maior proteção de menores e idosos em relação a adultos, visto que aqueles ainda não têm o discernimento e a experiência necessárias para a vida em sociedade e estes encontram-se em situação de inferioridade física, menor resistência e maior desgaste, em relação a adultos em geral. O mesmo se diga quanto ao maior prazo da licença maternidade em relação à licença paternidade, na medida em que o fato de a mulher se aquela que dá a luz à criança e, ainda, ante a necessidade da amamentação, justifica que ela tenha um maior descanso do que o do homem, que não tem desgaste físico nenhum com o nascimento de seu(ua) filho(a).

Com relação à questão da Constituição ter vedado textualmente determinadas formas de diferenciação, e em homenagem ao brocardo segundo a qual a lei não possuir palavras inúteis (donde, evidentemente, também a lei constitucional), penso que tal questão se resolva com uma proibição meramente a priori da diferenciação jurídica, no sentido de uma presunção de inconstitucionalidade sobre a lei que institua tratamento diferenciado à hipótese em questão, mas presunção esta superável mediante a satisfação de um maior ônus argumentativo por parte de quem defende o tratamento diferenciado, de forma similar (embora não idêntica) ao que ocorre com a jurisprudência estadunidense em relação à isonomia local, denominada equal protection doctrine (doutrina da igual proteção) [09].

Quanto à questão do ônus argumentativo, normalmente se impõe a prova de uma motivação lógico racional que justifique a discriminação pretendida com base no critério diferenciador erigido. Por outro lado, considerando a notória diferença entre os sistemas jurídicos do common law em relação ao nosso civil law, penso inexistir embasamento jurídico, em nosso sistema, a justificar uma diferenciação nas imposições argumentativas no que tange a um critério de diferenciação em relação a outro, ante a inexistência de texto normativo constitucional que isto determine, donde necessária apenas a exposição de um importante fim estatal justificador da diferenciação defendida, tal como no intermediate scrutiny (análise intermediária) da jurisprudência estadunidense. Justifico a escolha do "importante fim estatal" em detrimento do "fim estatal primordial" do strict scrutiny (análise estrita) estadunidense por afigurar-se aquele como mais razoável, tornando efetivamente possíveis diferenciações jurídicas nestas hipóteses (visto a experiência jurisprudencial dos EUA ter demonstrado a quase impossibilidade de superação do stricty scrutiny) ao mesmo tempo em que exige uma maior atenção a critérios historicamente estigmatizados, o que atende às preocupações do Constituinte Originário sem, todavia, impedir que a liberdade de conformação do legislador corrija desigualdades fáticas devidamente justificadas.

Assim, penso que o texto constitucional que veda diferenciações jurídicas constitui, em verdade, proibição meramente a priori, superável pela demonstração de motivação lógico-racional a justificar o tratamento diferenciado e, ainda, pela demonstração de que tal diferenciação constitui um importante fim estatal. Isso porque o que ocorre é que, nestes casos, a Constituição erigiu tais cláusulas como classificações suspeitas, presumindo a inconstitucionalidade das mesmas, donde a validade das mesmas depende de uma fundamentação lógico-racional que justifique sua necessidade e pertinência como um importante fim estatal [10]. Restam, assim, compatibilizadas as questões de proibições expressas na Constituição com o aspecto material da isonomia e, ainda, com o postulado segundo o qual a lei não têm palavras inúteis.

Por outro lado, é de se notar que a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello deve ser complementada com a ponderação de Canotilho no sentido de que o princípio da isonomia não se resume à proibição do arbítrio (tão bem explicitada pelo primeiro), mas também à função social da igualdade, no sentido de ser a isonomia uma imposição constitucional relativa que, por isso, a caracteriza como uma forma de eliminação das desigualdades fáticas. Em outras palavras, ainda que a isonomia genericamente considerada não fundamente um dever absoluto de legislação, fundamenta um dever de legislação relativo, uma imposição constitucional acessória, uma exigência de atuação relativa, no sentido de que quando existirem pessoas essencialmente iguais àquelas que foram objeto de regulamentação legal, o princípio da igualdade exige para estes uma disciplina legal igual à estabelecida para os casos já regulados, fundamentando um dever legislativo de atuação nesse sentido. Dessa forma, aponta o autor que quando a disciplina legiferante favorecer certos indivíduos esquecendo de outros, impõe-se à Jurisdição e à Administração que supram a lacuna legal por intermédio da analogia, só devendo ser dita lei ser declarada nula quando as vantagens legais não possam ser estendidas através de aplicação analógica aos casos ou grupos reconhecidos como portadores dos mesmos pressupostos daqueles já contemplados pela disciplina legal [11].

Isso significa que, verificada a arbitrariedade, entendida como inexistência de motivação lógico-racional que justifique o tratamento diferenciado do grupo que foi resguardado pela regulamentação legal em relação ao grupo excluído, dever-se-á constatar uma inconstitucionalidade por omissão que deverá ser sanada pela utilização das técnicas hermenêuticas da interpretação extensiva ou da analogia, como forma de se conceder ao grupo discriminado os direitos conferidos ao outro grupo. Ressalte-se que o fato de se tratar de uma inconstitucionalidade por omissão e não por ação torna incorreta e inoportuna uma expurgação da lei em questão do ordenamento jurídico por vício de inconstitucionalidade, na medida em que o grupo protegido pelo texto legal é merecedor de dita proteção, havendo inconstitucionalidade unicamente na exclusão do outro grupo de dita regulamentação. Assim, é de se ter em mente que inconstitucionalidades por omissão não podem nem devem ser solucionadas mediante declaração de nulidade da lei concessiva de direitos, mas pela extensão de tais direitos ao grupo discriminado pela lei por intermédio da interpretação extensiva ou da analogia, que são, afinal, técnicas hermenêuticas decorrentes da isonomia por visarem garantir igual tratamento aos iguais ou fundamentalmente iguais, respectivamente.

Dessa forma, somente não haverá agravo à isonomia se a discriminação pretendida visar indivíduos indeterminados e indetermináveis ao tempo da elaboração do projeto de lei que a consagra e for, ao mesmo tempo, racionalmente lógica em seus fundamentos e concretamente coerente com os valores constitucionalmente consagrados, donde impõe-se a aplicação da mesma norma a todos (o aspecto formal da isonomia), sem diferenciações de tratamento, no caso de não-atendimento de qualquer um dos critérios supra elucidados, todos necessários à aplicação do aspecto material do preceito isonômico [12]. Por outro lado, constatada a arbitrariedade da exclusão de determinados grupos do regime legal em questão, dita inconstitucionalidade por omissão deverá ser sanada por intermédio da interpretação extensiva ou da analogia, como forma de se estender a ditos grupos o regime jurídico ao qual fazem jus.

Em suma, o princípio da igualdade não só permite como exige tratamentos diferenciados na medida em que tais sejam uma decorrência lógico-racional do critério diferenciador erigido. É a exceção à isonomia – exceção na medida em que quem defende o tratamento diferenciado deve provar a necessidade lógico-racional do mesmo, sob pena de aplicação do aspecto formal da isonomia por inconstitucionalidade na diferenciação erigida.

Note-se, ainda, que há tanto lógica e racionalidade na maior punição da violência doméstica contra mulheres em relação à violência doméstica eventualmente cometida contra homens como, ainda, existe um importante fim estatal a justificar tal medida, a saber a superação da inferiorização historicamente sofrida pelas mulheres em relação aos homens.

3.2. Ausência de afronta à isonomia pela Lei Maria da Penha

Conforme já mencionado, invoca-se suposta afronta à isonomia em relação à Lei Maria da Penha em virtude dela ter estabelecido uma punição maior à violência doméstica sofrida pela mulher do que a violência doméstica sofrida pelo homem. Argumenta-se que tal diferenciação seria arbitrária e, portanto, inconstitucional, razão pela lei não poderia subsistir. É, inclusive, o que decidiu recentemente o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, evidentemente em controle incidental de constitucionalidade.

Contudo, esse argumento improcede, tanto por não levar em conta o aspecto material do princípio da igualdade, além de ignorar a situação fática desfavorável que a mulher tem sofrido ao longo da história que vem a justificar tal tratamento diferenciado.

Com efeito, dito argumento leva em conta tão-somente o aspecto formal da isonomia, aduzindo que a lei deveria tratar igualmente a todos. Todavia, essa é apenas a regra da isonomia, que admite exceção no caso de situações desiguais que demandam por um tratamento diferenciado – ou seja, exceção consubstanciada pelo aspecto material da isonomia.

Ora, como demonstrado acima, a mulher tem sido historicamente vítima de violência doméstica em proporções muito superiores àquela sofrida pelos homens. Isso é fato notório e, como tal, não precisa ser comprovado (art. 334, inc. I do CPC). É, inclusive, intuitivo, tamanha sua notoriedade. Se é verdade (como é) que homens também podem sofrer violência doméstica, esta violência ocorre em proporção muito inferior à das mulheres, no sentido de que inexiste uma generalizada violência doméstica contra os homens como existe em relação às mulheres. Fato, igualmente, notório e intuitivo.

Aí está o elemento diferenciador que demanda por tratamento diferenciado mais protetivo às mulheres no que tange à violência doméstica. Assim, não se afigura inconstitucional a maior punição apenas em relação à mulher, haja vista a presença de motivação lógico-racional a justificar o tratamento diferenciado, mais benéfico, à mulher do que ao homem com relação ao tema.

Ademais, um importante fim estatal existe na especial proteção à mulher no que tange à violência doméstica do que a proteção conferida ao homem nesse ponto, a saber a censura estatal ao menosprezo à mulher pelo simples fato de ser do sexo feminino. Afinal, a mulher é historicamente estigmatizada pelo homem pelo fato deste ter-se considerado ao longo dos tempos como "superior" a ela pelo simples fato de ser do sexo masculino. Sob origem religiosa ou não, esta tem sido a realidade: discriminação das mulheres por parte dos homens pelo simples fato de serem do sexo feminino.

Outro importante fim estatal na Lei Maria da Penha é a necessidade de respeito à condenação imposta ao Brasil pela OEA (Organização dos Estados Americanos), na medida em que a inexistência de uma lei que garanta proteção à mulher em face da violência doméstica certamente ensejará ulteriores condenações internacionais do Brasil perante a mesma.

Por outro lado, nem se venha alegar que o Direito Penal atualmente deveria pautar-se pela doutrina do Direito Penal Mínimo para se rechaçar a Lei Maria da Penha pois a mesma respeita mesmo os ditames desta doutrina. Afinal, o Direito Penal Mínimo prega que o Estado deve criminalizar apenas as condutas que afrontem os valores sociais mais elevados, para que o Estado somente atue criminalmente quando indispensável for, no sentido de que a intervenção penal somente se justifica quando absolutamente necessária para a proteção dos cidadãos, por entender o Direito Penal como a ultima ratio da atuação estatal, devendo atuar apenas quando os demais ramos do Direito se mostrem incapazes de resolver satisfatoriamente o problema. Visa combater o chamado Direito Penal Simbólico, por entender que as leis criminais não teriam o condão de evitar novos crimes [13].

Pois bem: mesmo à luz do Direito Penal Mínimo justifica-se a Lei Maria da Penha, tendo em vista que a violência doméstica contra a mulher é histórica, o combate à mesma é um valor social da mais alta relevância (para fazer com que os homens que ainda a cometem parem de se julgar superiores às mulheres, para fazer prevalecer o próprio princípio da isonomia) e, em especial, por terem falhado as tentativas alternativas existentes na legislação anterior – condenação ao pagamento de cestas básicas (principalmente) e outras medidas paleativas que se comprovaram sem nenhuma efetividade para reprimir e combater a violência doméstica.

De qualquer forma, é de se lembrar que o Direito em geral possui uma finalidade educativa, no sentido de suas normas expressarem um dever ser a ser perseguido pelos cidadãos e resguardado pelo Estado, no sentido de coibir condutas a eles contrárias. Ora, quando o Direito criminaliza uma conduta, ele está evidentemente afirmando que dita conduta é inaceitável à vida em sociedade. Embora precise ter bases sociais que apóiem as pretensões positivadas, é inegável que o Direito visa à transformação da sociedade, na medida em que inúteis seriam leis que regulassem aquilo que ordinária e invarialmente ocorrem. Embora sem enfrentar a questão do Direito Penal especificamente, vale, aqui, citar a lição de Luís Roberto Barroso [14]:

Ao nível lógico, nenhuma lei, qualquer que seja sua hierarquia, é editada para não ser cumprida. Sem embargo, ao menos potencialmente, existe sempre um antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade social. Se assim não fosse, seria desnecessária a regra, pois não haveria sentido algum em impor-se, por via legal, aquilo que ordinária e invariavelmente ocorre. É precisamente aqui que reside o impasse científico que invalida a suposição, difundida e equivocada, de que o Direito deve se limitar a expresaar a realidade de fato. Isto seria sua negação. De outro parte, é certo que o Direito se forma com elementos colhidos na realidade e seria condenada ao insucesso a legislação que não tivesse ressonância no sentimento social. O equilíbrio entre esses dois extremos é que conduz a um ordenamento jurídico socialmente eficaz.

Pois bem: há efetiva ressonância no sentimento social de combate à violência doméstica, já que vivemos em uma sociedade que já superou o modelo patriarcal que dava um despótico poder ao homem para dominar a mulher nas relações familiares e que não tolera a violência doméstica. Assim, a Lei Maria da Penha é plenamente compatível com o sentimento social, de combate a um machismo vetusto que de há muito não tem lugar em nosso sociedade, razão pela qual sua eficácia jurídica (aplicabilidade) e sua eficácia social (efetividade) restam inegavelmente reconhecidas.

Analisemos, agora, alguns posicionamentos feitos à luz da Lei Maria da Penha que se coadunam com os aqui defendidos.

No sentido da lógica e racionalidade da Lei Maria da Penha é, inclusive, o entendimento esposado pelo Presidente da República, quando da impetração da Ação Declaratória de Constitucionalidade n;º 19, in verbis:

Diante dessa realidade, é patente a necessidade da adoção de medidas afirmativas em defesa das mulheres, a fim de corrigir a distorção social existente na sociedade brasileira, ainda patriarcal, uma vez que o número de mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, não obstante a falta de dados comparativos, é notoriamente superior ao dos homens.

Como sabido, não basta afirmar a igualdade formal, ignorando as disparidades sociais ainda existentes, visto que militaria contra a concretização da desejada igualdade material, negando-se, assim, o objetivo que a Carta Política buscou atingir.

Com efeito, a distinção de tratamento revela-se, assim, plenamente justificada, tendo em conta a situação social a que continuam sujeitas as mulheres, inexistindo, portanto, afronta ao princípio da igualdade.

É indubitável que, não obstante a igualdade substancial entre homens e mulheres (essência humana), remanesce a disparidade autorizativa do discrímen.

Vale dizer, o tratamento distinto não se dá unicamente em razão do sexo, como pressuposto, mas em virtude das circunstâncias a que estão sujeitas as mulheres, inclusive em atenção à diferença de força física (em regra), que potencializa a violência. (grifo nosso)

No mesmo sentido, afirmam Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel no artigo "Lei Maria da Penha: Inconstitucional não é a lei, mas a ausência dela", assim citada pelo Desembargador Herculano Rodrigues no julgamento da Apelação Criminal 1.0672.07.234359-7/001(1) [15]:

(...) O texto constitucional transcende a chamada ‘igualdade formal’, tradicionalmente reduzida à fórmula "todos são iguais perante a lei", para consolidar a exigência ética da "igualdade material", a igualdade como um processo em construção, como uma busca constitucionalmente demandada. Tanto é assim que a mesma Constituição que afirma a igualdade entre os gêneros, estabelece, por exemplo, no seu artigo 7º, XX, ‘a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos’.

Se, para a concepção formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto, como um dado e um ponto de partida abstrato, para a concepção material de igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo como ponto de partida a visibilidade às diferenças. Isto é, essencial mostra-se distinguir a diferença e a desigualdade. A ótica material objetiva construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade e, assim sendo, o reconhecimento de identidades e o direito à diferença é que conduzirão à uma plataforma emancipatória e igualitária. Estudos e pesquisas revelam a existência de uma desigualdade estrutural de poder entre homens e mulheres e grande vulnerabilidade social das últimas, muito especialmente na esfera privada de suas vidas. Daí a aceitação do novo paradigma que, indo além dos princípios éticos universais, abarque também princípios compensatórios das várias vulnerabilidades sociais.

Neste contexto, a ‘Lei Maria da Penha, ao enfrentar a violência que de forma desproporcional acomete tantas mulheres, é instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres, conferindo efetividade à vontade constitucional, inspirada em princípios éticos compensatórios. Atente-se que a Constituição dispõe do dever do Estado de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226, parágrafo 8º). Inconstitucional não é a Lei Maria da Penha, mas a ausência dela. (grifos e destaques nossos)

Em sucinta porém precisa análise, manifestou-se Jayme Walmer de Freitas [16]:

Diversos doutrinadores têm pugnado pela inconstitucionalidade do termo mulher no atual diploma, uma vez que afrontaria o princípio da isonomia a proteção exclusiva da mulher, constitucionalmente assegurado. Não seria admissível uma lei voltar-se somente para a tutela do gênero feminino.

Seria inconstitucional a lei em comento?

Entendemos que não.

O gênero feminino precisa de proteção, assim como as minorias que exigem cotas para universidades, os homossexuais que buscam a igualdade com os heterossexuais.

O Direito Penal de Gênero considera as relações de dominação entre os sexos, dando azo à constatação de que as mulheres vêm sendo historicamente vitimizadas pela opressão masculina que se desenvolve das mais variadas formas e em diversos aspectos, sendo a violência física e sexual apenas algumas de suas manifestações.

Para nós, não há supervalorização do sexo feminino. Como pelo menos 30% das mulheres brasileiras são vítimas de violência doméstica, justifica-se essa ‘discriminação positiva’, ensejando paulatinamente, após o reconhecimento de uma igualdade formal, uma igualdade material entre os sexos com melhor equilíbrio, intelectual, econômico, educacional etc. (destaques nossos)

No mesmo sentido, explicitando a questão da igualdade material, a clara lição de Maria Berenice Dias [17]:

A aparente incompatibilidade dessas normas solve-se ao se constatar que a igualdade formal – igualdade de todos perante a lei – não conflita com o princípio da igualdade material, que é o direito à equiparação mediante a redução das diferenças sociais. Trata-se da consagração da máxima aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.

Marcar a diferença é o caminho para eliminá-la. Daí a necessidade das leis de cotas, quer para marcar a presença das mulheres na política, quer para garantir o ingresso de negros no ensino superior. Nada mais do que mecanismos para dar efetividade à determinação constitucional da igualdade. Também não é outro motivo que leva à instituição de microssistemas protetivos do consumidor, ao idoso, à criança e ao adolescente.

Portanto, nem a obediência estrita ao preceito isonômico constitucional permite questionar a indispensabilidade da Lei n. 11.340/06, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica. A Lei Maria da Penha veio atender compromissos assumidos pelo Brasil ao subscrever tratados internacionais que impõem a edição de leis visando assegurar a proteção à mulher. A violência doméstica é a chama maior da nossa sociedade e berço de toda a violência que toma conta da nossa sociedade. Os filhos reproduzem as posturas que vivenciam no interior de seus lares.

Assim, demagógico, para não dizer cruel, é o questionamento que vem sendo feito sobre a constitucionalidade de uma lei afirmativa que tenta amenizar o desequilíbrio que ainda, e infelizmente, existe nas relações familiares, em decorrência de questões de ordem cultural. De todo descabido imaginar que, com a inserção constitucional do princípio isonômico, houve uma transformação mágica. É ingênuo acreditar que basta proclamar a igualdade para acabar com o desequilíbrio nas relações de gênero. Inconcebível pretender eliminar as diferenças tomando o modelo masculino como paradigma.

Não ver que a Lei Maria da Penha consagra o princípio da igualdade é rasgar a Constituição Federal, é não conhecer os inúmeros casos de violência doméstica, é revelar indisfarçável discriminação contra a mulher, que não tem mais cabimento nos dias de hoje.

Por outro lado, mesmo aqueles que acham (descabidamente) que a lei seria inconstitucional por esse motivo (e não é), tratar-se-ia de mera inconstitucionalidade por omissão, não por ação. Ora, violência doméstica contra a mulher também é violência doméstica, donde a mulher merece a proteção instituída pela Lei Maria da Penha em qualquer hipótese, estejam ou não homens abarcados por dita proteção. Dessa forma, jamais poderia ser a Lei Maria da Penha ser declarada inconstitucional no sentido de se acabar com a proteção que instituiu às mulheres. O máximo que poderia ser feito seria a declaração da suposta omissão parcial inconstitucional da referida lei no que tange à exclusão dos homens do tipo penal por ela instituído, mas jamais pode ser expurgada do mundo jurídico a Lei Maria da Penha em função dessa exclusão em virtude de as mulheres serem merecedoras da proteção jurídica ali estabelecida, mesmo porque é inconteste que em casos tais (de inconstitucionalidade por omissão) o grupo beneficiado pela lei não pode perder tal benefício em virtude de ser merecedor do mesmo [18] – como o são as mulheres.

No sentido da mera inconstitucionalidade por omissão, o que ensejou a aplicação da lei inclusive a homens, temos decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/06) – INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADA PELO JUÍZO DE 1º GRAU COMO ÓBICE À ANÁLISE DE MEDIDAS ASSECURATÓRIAS REQUERIDAS - DISCRIMINAÇÃO INCONSTITUCIONAL QUE SE RESOLVE A FAVOR DA MANUTENÇÃO DA NORMA AFASTANDO-SE A DISCRIMINAÇÃO - AFASTAMENTO DO ÓBICE PARA A ANÁLISE DO PEDIDO. A inconstitucionalidade por discriminação propiciada pela lei federal 11.340/06 (Lei Maria da Penha) suscita a outorga de benefício legítimo de medidas assecuratórias apenas às mulheres em situação de violência doméstica, quando o art. 5º, ii, c/c art. 226, §8º, da constituição federal, não possibilitaria discriminação aos homens em igual situação, de modo a incidir em inconstitucionalidade relativa, em face do princípio da isonomia. Tal inconstitucionalidade, no entanto, não autoriza a conclusão de afastamento da lei do ordenamento jurídico, mas tão-somente a extensão dos seus efeitos aos discriminados que a solicitarem perante o poder judiciário, caso por caso, não sendo, portanto, possível a simples eliminação da norma produzida como elemento para afastar a análise do pedido de quaisquer das medidas nela previstas, porque o art. 5º, II, c/c art. 21, I e art. 226, §8º, todos da Constituição Federal, compatibilizam-se e harmonizam-se, propiciando a aplicação indistinta da lei em comento tanto para mulheres como para homens em situação de risco ou de violência decorrentes da relação familiar. Inviável, por isto mesmo, a solução jurisdicional que afastou a análise de pedido de imposição de medidas assecuratórias em face da só inconstitucionalidade da legislação em comento, mormente porque o art. 33 da referida norma de contenção acomete a análise ao juízo criminal com prioridade, sendo-lhe lícito determinar as provas que entender pertinentes e necessárias para a completa solução dos pedidos. recurso provido para afastar o óbice

(AC 1.0672.07.244893-5/001, Relator Desembargador Judimar Biber, julgado em 07/08/2007, publicado em 14/08/2007) (destaque nosso).

No inteiro teor do julgado, manifestou-se o Tribunal:

Ora, se a norma constitucional garante não apenas a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I), cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, §8º) e confere competência legislativa à União para legislar sobre direito penal e processual penal (no art. 22, I), não há dúvida de que a Lei Federal 11.340/06 deve ser interpretada afastando-se a discriminação criada e não negando vigência à norma por inconstitucionalidade que é facilmente superada pelo só afastamento da condição pessoal de mulher nela existente.

Basta ao intérprete afastar a condição pessoal de mulher em situação de risco doméstico, suscitada na sua criação, para que não haja qualquer inconstitucionalidade possível, estendendo-se os efeitos da norma em questão a quaisquer indivíduos que estejam em idêntica situação de violência familiar, ou doméstica, sejam eles homens, mulheres ou crianças.

A leitura da Lei Federal 11.340/06, sem a discriminação criada, não apresenta qualquer mácula de inconstitucionalidade, bastando afastar as disposições qualificadoras de violência doméstica à mulher, para violência doméstica a qualquer indivíduo da relação familiar, para que sejam plenamente lícitas suas disposições.

Neste contexto, inexiste a condição de inconstitucionalidade decorrente da discriminação produzida, mas tão-somente uma imposição inconstitucional que deve ser suplantada pelo intérprete equiparando as condições de homem e mulher, de modo a permitir a análise da pretensão que é da competência do Juízo que afastou a incidência da norma. (destaques nossos)

Ainda que não se venha a aceitar a possibilidade do Judiciário suprir a omissão inconstitucional da Lei Maria da Penha para fazer com que homens sejam por ela abarcados, na medida em que não se admite criminalização por analogia pelo mandamento constitucional segundo o qual "não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal" [19], o acórdão transcrito aponta perfeitamente para o fato de que, se inconstitucionalidade eventualmente há na Lei Maria da Penha (e, a meu ver, não há, como demonstrado), dita inconstitucionalidade está tão-somente na omissão e não na proteção conferida por dita lei, razão pela qual não se deve nunca expurga-la do mundo jurídico. Não aceita a aplicação da lei para proteção de homens como forma de superação da suposta inconstitucionalidade por omissão, então caberá exigir que o legislativo o faça, e nada mais (exigência pela via da ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou então por pressões populares, na medida em que descabe o mandado de injunção porque o homem não deixa de exercer direitos por força dessa omissão).

Assim, não há nenhuma afronta à isonomia por parte da Lei Maria da Penha, que, ao contrário, prestigia o aspecto material do princípio da igualdade ao conferir tratamento desigual aos desiguais, na medida em que mulheres são desiguais aos homens no que tange à proporção de violência doméstica sofrida, constituindo-se assim um importante fim estatal coibir esse comportamento machista de inferiorização da mulher por parte do homem, pela censura estatal ao menosprezo à mulher pelo simples fato de ser do sexo feminino, como parte da função educativa do Direito.

3.2.1. Uma resposta ao Juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas/MG.

Ganhou certa notoriedade a posição do magistrado Edilson Rumbelsperger Rodrigues, da Comarca de Sete Lagoas/MG, que declarou a Lei Maria da Penha inconstitucional por afronta à isonomia formal (argumento cujo descabimento já se demonstrou) mas teceu uma série de considerações religiosas a supostamente fundamentar uma supremacia do homem em relação à mulher no âmbito da relação familiar. Evidentemente o magistrado não defendeu que o homem possa agredir sua esposa, mas ao mesmo tempo considerou que o preâmbulo constitucional autorizaria a invocação da fé cristã para pautar paradigmas jurídicos ante a expressão "sob a proteção de Deus", razão pela qual começou a tecer uma série de considerações de ordem religiosa, de interpretação no mínimo questionável, denotando a supremacia do homem sobre a mulher, seja por invocar que a desgraça humana teria começado no Éden por causa da mulher e também pela "tolice e fragilidade emocional do homem" (sic) e que a Lei Maria da Penha seria herética porque anti-ética e porque feriria a lógica de Deus, além de herética por inconstitucional [20].

Devido às inevitáveis repercussões negativas de sua sentença, de cunho inequivocamente preconceituoso contra a mulher (preconceitos estes baseados ou não na religião), o magistrado houve por bem esclarecer que teria sido mal interpretado através de nota de esclarecimento. Contudo, como diz o dito popular, a emenda saiu pior que o soneto: apesar de ressaltar que a inconstitucionalidade consistiria na afronta à isonomia (posição equivocada, como demonstrado, mas não-preconceituosa), por não abarcar o homem em suas disposições, apontou o magistrado que não é verdade que tenha dito que a igualdade é um instituto hipócrita e demagógico, mas que hipócrita e demagógica sim seria a "falsa igualdade" (sic) que tem sido imposta às mulheres, que elas precisam ser respeitadas sim, que a violência inaceitável contra elas deve ser punida mas que "nunca, porém, elas nos reclamaram para que as impedíssemos de ser mulher. Pois ser mulher é exatamente tudo o que elas sempre e basicamente ambicionaram" (sic – sabe-se lá o que isso queira dizer), apontando que não seria machista justamente por apontar as fragilidades masculinas e reafirmando que "se os direitos são iguais — porque são — cada um, contudo, em seu ser, pois as funções sociais e familiares são, também, naturalmente diferentes" (sic) e que por "prevalência masculina" entende que em uma situação de absoluto e intransponível impasse entre o marido e a esposa sobre determinada e relevante questão doméstica, na qual um e outro não abrem mão de sua posição e não se entendem, não tem dúvida alguma de que deverá prevalecer a decisão do marido, justificando-se na crença de que não seria do agrado da esposa que fosse o inverso, tendo em vista que "a mulher não suporta o homem emocionalmente frágil, pois é exatamente por ele que ela quer se sentir protegida — e o deve ser —e não se sentiria assim se fosse o inverso" (sic – como se o respeito e a prevalência da opinião da mulher ensejassem uma pseudo-fragilidade masculina...) [21].

Fica evidente o perigo de se admitir o uso de interpretações religiosas para fundamentar posições jurídicas, dada a extrema subjetividade da fé (que não supõe comprovação e é extremamente subjetiva, cada um tendo a sua, o que é muito conveniente às religiões em geral).

Mas, de qualquer forma, são de se afastar quaisquer ponderações de ordem puramente religiosa para a análise de questões jurídicas. Qualquer um que tome a sério o princípio constitucional da laicidade estatal (princípio do Estado Laico) – que foi completamente ignorado pelo citado magistrado (que levou em conta apenas o preâmbulo constitucional), sabe que fundamentações religiosas não podem ser validamente utilizadas para fundamentar discriminações jurídicas, sob pena de afronta à separação entre Estado e Religião inerente a dito princípio. Afinal, a utilização de fundamentos religiosos para fundar posições jurídicas implica inequívoca união do Estado, por intermédio do Judiciário e, portanto, do Direito, com a Religião, o que é totalmente contraditório à noção de laicidade estatal.

Por outro lado, o Direito Constitucional positivo brasileiro deixa isso ainda mais claro ao vedar relações de dependência ou aliança do Estado com instituições religiosas e, portanto, com as religiões em geral (art. 19, inc. I da CF/88). Ora, aceitar que fundamentos de determinada religião fundamentem decisões judiciais implica em inequívoca dependência do Estado para com tal religião, na medida em que este acaba por aceitar que a realidade estatal seja regida por dogmas religiosos. Ademais, se tal utilização for feita de forma deliberada, com a escolha de uma religião em detrimento de outras para ser usada como paradigma jurídico, então ter-se-á inequívoca relação de aliança com tal religião. Ademais, se veda-se a dependência ou aliança com instituições religiosas, evidentemente estão vedadas também a dependência ou aliança com as religiões respectivas, justamente porque a ratio legis de dito dispositivo constitucional consiste na confessionalidade estatal, ou seja, na desvinculação do Estado com as religiões em geral. Do contrário, não haveria motivo para se vedar relações de dependência ou aliança com instituições religiosas. Trata-se, portanto, de típico caso de interpretação extensiva, para se atentar à ratio legis ou, para os subjetivistas, porque se trata claramente de hipótese em que o legislador disse menos do que queria.

Como se vê, a utilização de fundamentos religiosos para embasar decisões judiciais implica em afronta ao princípio do Estado Laico, seja pela noção de laicidade (separação entre Estado/Direito e Religião) como especialmente pelo Direito Constitucional positivo pátrio, que veda relações de dependência ou aliança com instituições religiosas e, portanto, com as religiões.

Outrossim, a invocação da expressão "sob a proteção de Deus" do preâmbulo constitucional não justifica o entendimento de que as religiões poderiam ser utilizadas como paradigmas juridicamente válidos, quaisquer que sejam. Antes de se dizer o motivo, cumpre lembrar a controvérsia sobre a natureza jurídica do preâmbulo constitucional.

Como se sabe, há três correntes acerca da natureza jurídica do preâmbulo constitucional. A primeira nega-lhe qualquer eficácia jurídica, apontando que seria mera exortação política de nenhum conteúdo jurídico; a segunda atribui-lhe a mesma natureza das normas constitucionais, aduzindo que o fato de se encontrar no texto constitucional lhe dá o mesmo caráter dos textos normativos constitucionais em geral; e a terceira, intermediária, reconhece-lhe eficácia interpretativa da Constituição, pois, embora reconheça que na contradição entre preâmbulo e texto normativo constitucional, deve este prevalecer, o fato do preâmbulo estar no corpo da Constituição lhe dá força jurídica.

Este autor adere à terceira corrente, visto que os valores que inspiraram a elaboração de uma carta constitucional não podem ser desprezados embora, contudo, não constituam norma constitucional propriamente dita, donde devem ser tidos como paradigmas interpretativos da Carta Constitucional.

Contudo, não foi esta a posição adotada pelo Supremo. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal adotou a concepção que nega qualquer eficácia jurídica ao preâmbulo quando do julgamento da ADIN 2.076, atribuindo-lhe caráter puramente político. Penso que o Supremo se equivocou neste posicionamento, pois se é verdade, como é, que o preâmbulo não prevalece sobre o texto normativo de artigos da Constituição, ele não pode ter negada qualquer força jurídica, sob pena de ser tido como juridicamente inútil, o que se afigura contraditório na medida em que o preâmbulo faz parte do texto constitucional e, ainda, em atenção ao célebre princípio hermenêutico segundo a qual a lei não pode ter palavras inúteis – no que inclusa também a lei constitucional, evidentemente – aspectos estes não considerados pelo Supremo).

Todavia, a posição da eficácia interpretativa do preâmbulo não faz com que o Estado Brasileiro seja teocrático, confessional ou ainda que posições religiosas possam ser utilizadas como paradigmas interpretativos válidos em função da expressão "sob a proteção de Deus", na medida em que esta expressão não tem nenhuma significação jurídica e, ainda, pela presença de texto normativo constitucional que impossibilita tal posição – a saber, o já explicitado art. 19, inc. I da CF/88, consagrador do princípio do Estado Laico no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro – ou seja, ainda que aquela expressão tivesse alguma conseqüência jurídica, é notório que no conflito entre disposição do preâmbulo e artigo da Constituição, a prevalência é deste – ou seja, da laicidade estatal do art. 19, inc. I da CF/88. Analisem-se as duas colocações:

A ausência de normatividade da expressão "sob a proteção de Deus" reside no fato de que ela não pode pretender instituir uma obrigação à divindade. Ora, se uma nação está sob a proteção de Deus isso significa que Deus deve obrigatoriamente efetivar tal pretensão. Mas, como não se afigura possível nem razoável instituir uma obrigação à divindade, então se afigura impossibilidade jurídica por impossibilidade fática de efetivação de tal pretensão. A referida expressão trata-se, apenas, de pretensiosa afirmação no sentido de que a divindade estaria preocupada com a Assembléia Nacional Constituinte Brasileira. Assim, independentemente da teoria à qual se adote sobre a natureza jurídica do preâmbulo constitucional e independentemente da localização da mesma (ou seja, ainda que presente em artigo constitucional), a expressão "sob a proteção de Deus" jamais terá qualquer significação jurídica na medida em que dita expressão não tem nenhum sentido jurídico, nenhum conteúdo jurídico, tratando-se de mera exortação pretensiosa.

Em termos mais sintéticos, foi essa a fundamentação do Ministro Sepúlveda Pertence, em voto concordante ao julgamento da referida ADIN 2.076, com a qual se concorda [22].

Assim, foram totalmente inadequadas e descabidas as colocações puramente religiosas invocados pelo citado magistrado em suas decisões que declararam inconstitucional a Lei Maria da Penha, sendo que o mesmo deveria ter se limitado a analisar apenas a questão da isonomia (o que, confessadamente, foi o que ensejou a inaplicação da lei pelo mesmo), sem nenhuma ponderação de ordem religiosa. Não se está dizendo que não se possa discordar do Supremo: contudo, para tanto, deve-se apontar os supostos equívocos do mesmo para que o tema possa ser rediscutido no Tribunal, que é quem dá a palavra final sobre as discussões jurídicas da nação.

No mesmo sentido, embora por diversos fundamentos, é a posição esposada pelo Desembargador Judimar Biber, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, quando do julgamento da já citada Apelação Criminal n.º 1.0672.07.244893-5/001 (embora não possa saber se dito julgado se referiu à sentença de Sete Lagoas, parece ser o caso e, de qualquer forma, penso que suas considerações se aplicam perfeitamente à hipótese):

As ponderações preliminares do culto Juízo de 1º Grau a respeito de condições religiosas, históricas, filosóficas, éticas e morais a darem sustentação às disposições legisladas, não me parecem próprias como fundamentos a justificarem o afastamento da própria disposição legislada.

Na verdade, a Constituição Federal, ao adotar a liberdade religiosa como conteúdo emblemático de suas disposições, não autoriza o aplicador da lei a buscar como fundamento válido para a sustentação da norma jurídica um específico fundamento religioso a afastar uma determinada imposição legislativa, mesmo que entenda o magistrado que tais considerações teriam sustentação histórica, filosófica, ou morais.

De outro lado, não me parece conveniente que a invocação preambular de Deus na norma constitucional possa suscitar a condição herética de uma determinada postura legislativa, até porque não vislumbro como seja possível adotar as virtuais condições bíblicas a darem sustentação às normas produzidas pelo Estado Brasileiro que, na verdade, não possui um alinhamento religioso específico a dar condução às disposições do direito constitucional positivo.

Não há uma lógica religiosa intrínseca a sustentar uma visão a respeito da igualdade entre homens e mulheres, até porque o contexto histórico em que foram forjadas as condições bíblicas já desautorizaria a invocação de virtuais descompassos da norma de contenção criada com os ensinamentos seculares religiosos, até porque a igualdade jurídica só foi forjada após séculos de lutas.

A só diversidade do momento em que se forjaram determinadas verdades de prevalência do elemento masculino sobre o feminino já justificaria a idéia de que as considerações religiosas, filosóficas ou históricas, não dariam qualquer justificativa para a dominação declinada como condição naturalmente aceita e querida por Deus, mesmo porque há muito já não mais se aceita a idéia de que o Estado tenha uma efetiva escora ou sustentação religiosa, senão sustentação na própria ordem jurídica que lhe dá lineamento e forja um sistema de freios e contrapesos para que o Poder seja uma possibilidade limitada e respeito a um mínimo de direitos dos cidadãos.

As modernas justificações constitucionais não se fundam nas disposições religiosas, mas no próprio ordenamento jurídico positivo cujo lineamento é feito pela lei em sentido formal.

Não seria mesmo possível sustentar como fundamento válido uma posição religiosa, muito menos a religião Cristã a única a suscitar o lineamento da ação humana.

As virtuais tendências religiosas do aplicador da lei, neste contexto, são literalmente irrelevantes para fins de aferir a conformação entre a norma produzida e a norma fundamental.

Não posso deixar de anotar que a conotação de prevalência do universo masculino sobre o feminino, declinados no despacho produzido, é a mais pura negação do direito de igualdade jurídica entre homens e mulheres e literal afronta à própria condição constitucional positivada, não havendo mesmo uma sustentação filosófica, lógica, ou axiológica capaz de justificar tal predomínio.

Na verdade, pedindo escusas ao Juízo, o despacho exarado é impregnado de preconceitos religiosos absolutamente inconsistentes porque forjados por uma visão cristã do início dos tempos, cujas verdades estão liberalmente ultrapassadas pelas conquistas histórias e justificações filosóficas a respeito da igualdade formal dos direitos entre homens e mulheres, de modo que a não justificar sequer a idéia de que haveria fundamento a sustentar as improdutivas considerações que se extraem daquela decisão.

Não me parece que o ilustre Magistrado tenha efetivamente tentado alcançar o espírito da norma constitucional que firmou a condição de igualdade jurídica entre homens e mulheres, antes pelo contrário, o que vejo do despacho produzido é a literal negação desta mesma igualdade e a sustentação de uma posição axiológica sobre a mulher um tanto canhestra, mesmo porque procura sustentação de um domínio masculino na própria condição da mulher quando a norma de contenção procura a igualdade formal de direitos entre ambos.

Penso que tais considerações, cujo conteúdo reputo de ordem pessoal, não serviriam, de forma alguma, para sustentar, ou mesmo justificar, a virtual inconstitucionalidade da norma produzida, antes pelo contrário.

Acredite ou não na igualdade de direitos entre homens e mulheres, ao Juízo não é dado interpretar a lei fundamental com bases religiosas ou direções internas, mas com base na ordem jurídica vigente, e esta ordem jurídico-constitucional é específica em declinar a condição de igualdade de direitos entre homens e mulheres, no art. 5º, I, da Constituição Federal.

Não me parece justificativa plausível para o afastamento legislativo a existência de razões religiosas, históricas ou filosóficas a darem sustentação a uma verdade que estaria expressamente prevista na norma constitucional, mesmo porque ao magistrado não se confere o poder de subtrair-se do ordenamento jurídico, senão nas hipóteses discricionárias ou de colisão da norma com o modelo constitucional vigente, devendo aplicá-las ainda que não concorde com o conteúdo normativo dela latente ou imanente, mesmo que não se alinhe intimamente com a posição axiológica que dela decorra e mesmo que suas próprias convicções religiosas recomendem aplicação diversa.

Neste contexto, o que resta saber é se a inconstitucionalidade declinada como motivo determinante para afastar o pedido de medidas assecuratórias requerido teria sustentação jurídico-formal, porque a assertiva de que a discriminação criada entre homens e mulheres na norma em comento seria óbice absoluto para sua aplicação, parece conflitar com a idéia de que a norma constitucional ao criar uma discriminação possa manter efeitos gerais de seu conteúdo sem discriminação possível quando outorgar benesse legítima. (grifos e destaques nossos)

A expressão "sob a proteção de Deus", usada como paradigma interpretativo da Constituição de forma que respeite a laicidade estatal (art. 19, inc. I da CF/88) significa, tão-somente, que o Estado Brasileiro não veda a prática religiosa e respeita a liberdade religiosa em geral, apenas isso. Não pode, contudo, ser usada como forma de justificar a utilização de fundamentos religiosos para definir os rumos políticos e jurídicos da nação na medida em que isto configura dependência ou, no mínimo, aliança com a religião em questão, o que é vedado pelo citado dispositivo constitucional.

Assim, afigura-se completamente descabida a utilização de fundamentações religiosas para fundamentar posições jurídicas, por força do princípio do Estado Laico.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da constitucionalidade e da conveniência da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1711, 8 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11030. Acesso em: 5 nov. 2024.

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