4- A questão da violência de gênero e os fundamentos de validade legais e constitucionais da Lei Maria da Penha.
Retornando à análise da decisão do juiz de Minas Gerais, afrontosa, a seu modo, a capacidade intelectiva dos demais magistrados brasileiros, vez que verdadeiramente não representa os valores e conhecimentos incontestáveis da imensa maioria de nossos corajosos e cultos juízes, destacamos, ainda, sua ausência de correlação lógica, já que ao afirmar expressamente que a lei atacada teria disposto que somente a violência doméstica praticada contra a mulher é que constituiria ilícito penal, o julgador demonstra alarmante falta de conhecimento técnico, pois parece não ter constatando que a Lei Maria da Penha não criou um só tipo penal, que continuaram os mesmos que sempre foram, alcançando homens e mulheres indistintamente, sem fazer qualquer distinção, tanto para figurarem no pólo passivo como no ativo, quer quanto ao tipo penal ao qual se responderá, tal como em relação à pena prevista em lei para tais delitos, se tal diferença existisse, aí sim, poder-se-ia falar em alguma desigualdade, mas o grande problema é a ausência de conhecimento de alguns operadores jurídicos, que, resistentes a qualquer tipo de mudança, passam a criticar normas, antes mesmo de conhecê-las.
Portanto, àqueles que porventura ainda não saibam a Lei Maria da Penha, sem definir qualquer tipo penal que exigisse como sujeito passivo exclusivamente pessoa do sexo feminino, criou tão somente mero procedimento, com vista à peculiar e necessária proteção às maiores vítimas de violência doméstica e familiar, que incontestavelmente são AS MULHERES, fato que não se pode negar, já que para isso temos dados numéricos e em números até os operadores jurídicos mais resistentes crêem, posto que a violência praticada contra as mulheres, conhecida como violência de gênero, constitui na razão implícita do número estarrecedor de casos de agressões físicas, sexuais, psicológicas, morais e patrimoniais, perpetrados em desfavor de mulheres, revelando incontestável desigualdade de poder entre gêneros (masculino e feminino).
Dados estarrecedores da OMS (Organização Mundial de Saúde), inserto no relatório divulgado pela Anistia Internacional em 05/03/2004, apontam que 70% dos assassinatos de mulheres no mundo são cometidos por homens com quem elas tinham ou tiveram algum envolvimento amoroso e segundo investigação feita pela ONG Human Rights Watch, em nosso país, concluiu-se que de cada 100 mulheres brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas. [25]
No Brasil, pesquisa realizada pelo Senado Federal no ano de 2005, sobre violência doméstica contra a mulher, revelou que 95% das mulheres pesquisadas afirmaram ser muito importante ou importante a criação ainda de uma legislação específica que proteja ainda mais a mulher no Brasil. Enquanto para 92% das mulheres seria importante ou muito importante a discussão sobre os direitos femininos no Congresso Nacional.Sendo que, das mulheres que reconhecem nesta pesquisa que já sofreram violência doméstica, 66% responderam ser o marido/companheiro o autor da agressão, tendo concluído o relatório do Senado Federal que: "dentre todos os tipos de violência contra a mulher, existentes no mundo, aquela praticada no ambiente familiar é uma das mais cruéis e perversas. O lar, identificado como local acolhedor e de conforto passa a ser, nestes casos, um ambiente de perigo contínuo que resulta num estado de medo e ansiedade permanentes. Envolta no emaranhado de emoções e relações afetivas, a violência doméstica contra a mulher se mantém, até hoje, como uma sombra em nossa sociedade". [26]
Todas as pesquisas demonstram que o lar, o âmbito doméstico e familiar, na maioria dos casos, institui o local de risco para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Conforme Soares: "A ameaça do ponto de vista das mulheres, não vem de fora, quando se trata de agressão física. Está na casa, não na rua; é episódio inscrito em dinâmicas típicas da vida privada, o que evidentemente não lhe reduz a gravidade, antes a aprofunda". [27]
Segundo a pesquisa realizada pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, [28] no ano 2001, a cada 15 segundos, uma mulher é espancada por um homem no Brasil, apontando o perfil do agressor para o marido ou companheiro como principal autor em todas as modalidades de violência investigadas e as respostas encontradas por este estudo apontaram para a necessidade de criação de abrigos para acolher as mulheres vítimas, delegacias especializadas, serviço telefônico gratuito para denúncia, além de se dispor de atendimento psicológico para as mulheres vítimas de violência doméstica.
O Brasil é o país que mais sofre com a violência doméstica, perdendo cerca de 10,5% do seu PIB em decorrência desse grave problema, considerado de saúde pública, já que as vítimas faltam ao trabalho e fazem uso de hospitais e medicamentos fornecidos pelo poder público.
Até a promulgação da Lei Maria da Penha, que acarretou um acalorado debate sobre o tema, a violência de gênero sofria de uma espécie de "invisibilidade", difundida pela idéia nefasta de que a violência entre parceiros íntimos ou pessoas da mesma família, constituía um problema privado, que só aos envolvidos interessava o que era perfeitamente possível pelas leis descriminalizadoras vigentes até então, que efetivamente não puniam os agressores, nem tratavam as vítimas, permitindo a proliferação da violência, posto que tão somente devolviam o problema para ser resolvido em casa, dando-se ainda mais poder ao agressor, já que os operadores jurídicos, muito ocupados em outras tarefas, tinham sempre assuntos mais "importantes" a tratar.
Todo este descaso com as mulheres vítimas de violência, perpetrado pelos operadores jurídicos que atuavam perante os Juizados Especiais Criminais, acabou por levar à promulgação da Lei 11.340/2006, antiga exigência de Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, que se destinam a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, como a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, que conta hoje com 165 Estados signatários, sendo que o Brasil a ratificou em 1984 [29], que se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade sob tutelas diversa, tanto repressiva ou punitiva, com a proibição da discriminação e a positiva, destinada à promoção da igualdade, objetivando além de erradicar a discriminação contra a mulher e as suas causas, também estimular estratégias de promoção da igualdade entre homens e mulheres, com políticas compensatórias, visando à aceleração da igualdade enquanto processo, mediante a adoção de medidas afirmativas, como as previstas na Lei Maria da Penha, que se consubstanciam como medidas especiais e transitórias, destinadas ao combate das desigualdades que afligem as mulheres de forma geral.
Assim, conclui-se que, para garantia da igualdade não bastava a proibição da ação discriminatória, efetuada por meio da legislação repressiva, sendo essencial à implementação de políticas públicas capazes de incentivar a inclusão social dos grupos reconhecidamente vulneráveis. Leda Maria Hermann, ao comentar a respeito da Convenção, elucida: "A Convenção inovou ao prever a adoção, pelos países parte, de normas de discriminação positiva, ou seja, de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homem e mulher (artigo 4º, item 1). A Lei Maria da Penha, por seu caráter protetivo voltado especificamente à mulher, constitui instrumento jurídico legal compatível com a previsão internacional em tela." [30]
No âmbito do sistema regional da Organização dos Estados Americanos – OEA, de proteção aos direitos humanos, as mulheres brasileiras dispõem de uma Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida internamente como Convenção de Belém do Pará, de 1994, ratificada pelo Brasil em 1995 que estabelece que toda mulher possui o direito de viver livre da violência e de qualquer forma de discriminação. (artigo 6º)
O artigo 1º da Convenção define violência contra a mulher como: "qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na privada", estabelecendo, ainda, que esta violência pode ocorrer "no âmbito da família ou na unidade doméstica, ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não da mesma residência com a mulher, incluindo, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual" (art. 2º, a).
Atente-se para a importância desta Convenção, ao incorporar o conceito de gênero na definição de violência contra a mulher, além de descrever as várias formas de violência, como física, sexual ou psicológica, bem como que pode ocorrer tanto no âmbito público como na esfera privada, abarcando um amplo conceito de violência doméstica e familiar, haja vista a constatação estatística de que são nos domicílios familiares que se dão à maioria dos crimes que as vitimam.
Ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, o Brasil se comprometeu a incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotar as medidas administrativas apropriadas para a efetivação destas medidas (exatamente como as previstas pela Lei 11.340/2006); tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas do tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher (razão pela qual foi vedada a aplicação da Lei 9.099/1995, nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do artigo 41 da Lei em comento); estabelecer procedimentos jurídicos adequados e eficazes para a mulher que tenha sido submetida à violência, dentre os quais as adequadas medidas de proteção efetiva (previstas no artigo 18 e outros da Lei Maria da Penha); além de estabelecer os mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar à mulher vítima da violência o efetivo acesso ao ressarcimento dos danos que porventura lhe forem causados.
O parágrafo 2.º, do art. 5.º, da Constituição Federal de 1988, dispôs que os direitos e garantias nela expresso: "não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", dando margem à entrada no rol dos direitos e garantias consagrados pela Constituição Federal, de outros direitos e garantias provenientes dos tratados internacionais, revelando o caráter não taxativo do elenco constitucional dos direitos fundamentais, admitindo expressamente que tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ingressem no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em idêntico nível com o das normas constitucionais vigentes.
Flávia Piovesan afirma que:
"relativamente aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, a Constituição brasileira de 1988, nos termos do art. 5º, § 1º, acolhe a sistemática da incorporação automática dos tratados, o que reflete a adoção da concepção monista. Ademais, como apreciado no tópico, a Carta de 1988 confere aos tratados de direitos humanos o status de norma constitucional, por força do art. 5º, § 2º" [31]
Talvez para que não houvesse qualquer dúvida sobre o caráter dos tratados e convenções que subsidiaram a promulgação da Lei 11.340/2006, conste expressamente do seu artigo 6º que: "A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos", com status de norma constitucional, portanto. Por sua vez, o art. 226 da Constituição Federal estabelece que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, enquanto seu § 8º determina que o Estado assegure a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Assim, estudando atentamente a luta das mulheres contra a desigualdade de gênero que desencadeia a violência doméstica e familiar, somos obrigados a concluir que a promulgação da Lei 11.340/2006, ainda que tardia (já que o Brasil é o 18º país da América Latina a efetivar uma lei com tais características), foi elaborada para atender aos ditames constitucionais vigentes, tratando-se de medida de ação afirmativa, que visa enfrentar com ações adequadas a questão, tanto servindo para a punição do agressor, como para tratar a vítima e seus familiares, inclusive o próprio agressor, a fim de se buscar e efetiva diminuição da desigualdade e da violência em si.
Com efeito, o art. 3º da Constituição Federal, estatui que a República Federativa do Brasil tenha como objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Desse modo, a norma constitucional admitiu expressamente a existência das desigualdades, ademais inegáveis, estabelecendo que os alcances dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil exigem comportamentos ativos e pedem ações afirmativas, como as insertas na Lei 11.340/2006.
Parece-nos claro que o ordenamento jurídico brasileiro não só permite ao Estado a promoção de políticas de ações afirmativas, como as impõe, a fim de que sejam alcançados os direitos fundamentais baseados no artigo 3º da Constituição Federal, pois na sua redação temos o emprego de verbos como "erradicar, construir, reduzir e promover", devendo o ente público desenvolver um comportamento ativo, positivo e eficaz neste sentido.
De outra parte, o art. 5º, caput, da Constituição Federal, analisado em conjunto com o art. 3º, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, estabelece que: o Estado garantirá a todos o direito à igualdade, sem ignorar as desigualdades existentes, que motivam, dentre outras medidas, a criação das normas de ação afirmativa, visando o alcance do ideal de igualdade efetivo idealizado pelo legislador constituinte ao descrevê-lo formalmente.
Muito já se disse sobre a desigualdade material existente entre homens e mulheres, cujos dados estatísticos demonstrados certamente serão capazes de convencer até os mais incrédulos que porventura se imaginem vivendo em um país em que tal igualdade seja real, sendo certo que o igual tratamento pela lei, para ser legítimo, pressupõe uma igualdade de fato preexistente. Constatando-se que não há igualdade de fato entre homens e mulheres, tratarem-se desiguais como se iguais fossem, é que constituiria a verdadeira inconstitucionalidade.
Leda Maria Hermann, ao comentar o artigo 1º da Lei 11.340/226, ressalta:
"A proteção da mulher, preconizada na Lei Maria da Penha, decorre da constatação de sua condição (ainda) hipossuficiente no contexto familiar, fruto da cultura patriarcal que facilita sua vitimação em situações de violência doméstica, tornando necessária a intervenção do Estado em seu favor, no sentido de proporcionar meios e mecanismos para o reequilíbrio das relações de poder imanente ao âmbito doméstico e familiar.
Reconhecer a condição hipossuficiente da mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar não implica invalidar sua capacidade de reger a própria vida e administrar os próprios conflitos. Trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela " [32].