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Os homens também necessitam da proteção especial prevista na Lei Maria da Penha?

Diagnóstico crítico sobre a violência de gênero sofrida por mulheres e a constitucionalidade das medidas de caráter afirmativo que visam combatê-la

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27/11/2008 às 00:00
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A mulher é a escrava dos escravos. Se ela tenta ser livre, tu dizes que ela não te ama. Se ela pensa, tu dizes que ela quer ser homem."
[01]

Resumo

: destaca algumas decisões judiciais claramente preconceituosas e atentatórias à dignidade e aos direitos das mulheres de serem verdadeiramente tratadas como sujeitos de direitos, evidenciando a tolerância do Poder Judiciário para com a violência doméstica e a forma distinta e subjetiva com que a prerrogativa de "independência funcional" dos julgadores é assegurada ou tolhida, explanando os fundamentos legais e constitucionais que garantem somente às mulheres uma política especial de proteção afirmativa, com vista a assegurar ao gênero feminino o benéfico tratamento processual diferenciado previsto na Lei Maria da Penha.

Sumário: 1- Análise da decisão judicial que possibilitou a aplicação da Lei Maria da Penha em favor de um homem, congregada à apreciação crítica do entendimento doutrinário e jurisprudencial de teor claramente machista e preconceituoso, expondo que verdadeiramente ainda não se reconhece as mulheres como sujeitas de direitos. 2 - A oposição injustificada dos operadores jurídicos quanto à interpretação lógica e conseqüente aceitação da imperativa necessidade de aplicação dos dispositivos insertos na Lei Maria da Penha. 3 - A aversão demonstrada pelos agressores de condições econômicas privilegiadas aos ditames da Lei 11.340/2006 e comentários sobre a constatação de que a prerrogativa de "independência funcional" garantida aos julgadores é sopesada de forma diversa e subjetiva, que tendo em conta as peculiaridades dos envolvidos, é assegurada ou rechaçada. 4 - A questão da violência de gênero e os fundamentos de validade legais e constitucionais da Lei Maria da Penha. 5- As razões, de ordem cultural, implícitas nas decisões dos operadores jurídicos que resistem em garantir às mulheres vítimas de violência doméstica os direitos que lhe foram assegurados por lei e os fundamentos jurídicos que autorizam somente às mulheres uma política especial de proteção de caráter afirmativo.


1- Análise da decisão judicial que possibilitou a aplicação da Lei Maria da Penha em favor de um homem, congregada à apreciação crítica do entendimento doutrinário e jurisprudencial de teor claramente machista e preconceituoso, expondo que verdadeiramente ainda não se reconhece as mulheres como sujeitas de direitos.

A recente e polêmica decisão de um magistrado do Juizado Especial Criminal de Cuiabá-MT, que aplicou, segundo o próprio "por analogia", as medidas de proteção da Lei Maria da Penha em favor de um homem que estaria sofrendo violência doméstica praticada por uma mulher, obriga-nos a algumas oportunas reflexões. Passemos então a elas:

Lenio Luiz Streck [02], bem antes da entrada em vigor da Lei Maria da Penha (11.340/2006) já criticava a forma discriminatória com que o Poder Judiciário sempre lidou com a questão dos crimes de violência contra a mulher e convida-nos a examinar obras doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema, para que possamos compreender a situação hermenêutica em que se insere a mulher no imaginário dos juristas, que interpretam a lei da forma que lhes convém para sustentar posicionamentos absurdos e atentatórios contra preceitos constitucionais, a dignidade da pessoa humana e, sobretudo aos direitos humanos das mulheres, o que não pode ser analisado fora do contexto da realidade de como a mulher ainda é vista pela sociedade e quais os direitos que lhe são assegurados, de fato, e não meramente pelas normas legais vigentes, freqüentemente ignoradas ou distorcidas por seus intérpretes, que as analisam de acordo com sua conveniência e visão ideológica e subjetiva do mundo, tendo em conta a identidade das partes envolvidas e suas condições peculiares.

Sobre a dogmática jurídica que despreza a vontade e os direitos da mulher, Streck faz importantes apontamentos: "em comentário ao art. 213 do Código Penal, que trata do estupro, encontrei o seguinte comentário de um dos doutrinadores mais festejados do direito penal em terrae brasilis (Jesus, 2002, p. 722-723): Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações como e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa (grifei). Assim, a contrario sensu, pode-se entender que, na opinião do referido autor, se não existir a justa causa ou se a negativa da esposa em mantiver relação sexual for de caráter mesquinho, o marido pode forçá-la a tal, o que significa estuprá-la (tecnicamente falando)...! Ou isto, ou entendi mal o citado comentário...! Sem dúvida, este é um dos exemplos de como a dogmática jurídica (mal) trata a mulher. Não há, pois, nesse âmbito, nesse imaginário, qualquer possibilidade de a mulher ser tratada como gênero, como igual! [03]

Observemos tais entendimentos doutrinários em franca aplicação por juízes e desembargadores, em exercício pleno de suas "incontestáveis" "independências funcionais", que abrigam toda sorte de pré-conceitos e insensibilidade imagináveis, senão vejamos: "A vítima é analfabeta e se mostrou simplória nos contatos com este juízo... Não encontro nos autos provas suficiente para condenar o acusado Celso Alberto, embora reconheça não seja elemento sociável nem de boa vida pregressa. Entretanto, pelos outros delitos a ele imputados, está respondendo processo. Finalizando, custa a crer que o acusado, um rapaz ainda jovem e casado, tenha querido manter relações sexuais com a vítima, uma mulher de cor e sem qualquer atrativo sexual para um homem. Ante o exposto e com fundamento no art. 386, VI do Código de Processo Penal, absolvo o acusado Celso Alberto da imputação a ele feita na denúncia (Andrade, 1997, p.24)" [04]

Reveja o famoso caso em que o estupro foi reconhecido como ''cortesia'' pela Justiça brasileira: "Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a sua vida estragada por causa de um fato sem conseqüências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar (fls.) e o que, em retribuição lhe fez Cortez, uma cortesia... (TJRJ, 10.12.74, RT 481/403)." [05]

E alguns outros:

Imagine, Excelência, um homem de 54 anos de idade, época do fato, como é o caso do acusado... Manter relações sexuais diariamente com uma mocinha. Claro que a vítima está mentindo, pois tal homem, nesta idade, não agüentaria tal ritmo, por dois anos consecutivos, fazendo sexo diariamente...." [06]

"uma jovem estuprada há de se opor razoavelmente à violência, não se podendo confundir como inteiramente tolhida nessa repulsa quem nada fez além de gritar e nada mais. A passividade que muitas vezes se confunde com a tímida reação, desfigura o crime, por revelar autêntica aquiescência" (in RT 429/400). [07]

E o Estado de Mato Grosso também se faz presente: "Na noite do dia 10 de fevereiro de 1985, em Cuiabá, B.L.D., pardo, solteiro, pedreiro, 22 anos, teria espancado e estuprado uma conhecida sua do bairro, B.L.C., preta, viúva, 60 anos. No auto de prisão em flagrante consta que, na noite do crime, a vítima encontrava-se em uma festa na casa de uma das testemunhas ouvindo música e dançando com outras moças e, o indiciado, no bar pregado a casa, de propriedade dessa mesma testemunha.

Na polícia, segundo testemunhas e o próprio indiciado, este teria tentado agredir a vítima na festa e, não logrando êxito, após o término desta, quando a vítima dirigia-se à sua casa, o indiciado a perseguiu e, agredindo-a a socos e pontas-pé, arrastou-a para um matagal, onde teria mantido com ela relações sexuais à força. Depois, teria retornado ao referido bar, com a roupa toda manchada de sangue, para pegar a bicicleta que tinha deixado ali. As testemunhas afirmavam que o indiciado era mau elemento e vivia embriagado, perseguindo mulheres e promovendo várias desordens no bairro.

Denunciado por estupro e lesões corporais, o acusado, na fase judicial, entretanto, negou as declarações prestadas na polícia, alegando que foram obtidas mediante espancamento. Todas as testemunhas, em juízo, também contraditaram os depoimentos prestados na polícia. A situação se inverteu e a vítima passou a ser qualificada como alcoólatra, prostituta e aliciadora de menores, e o réu, por sua vez, como homem trabalhador e de bom comportamento.

O juiz entendeu que eram nulas as declarações prestadas pelo réu na polícia, tão somente em função de laudo que atestava lesões em seu rosto, sem qualquer averiguação acerca da autoria dessas lesões. Quanto às lesões na vítima, embora materialmente comprovadas, o juiz entendeu que não estava comprovada a autoria, assim como não se podia comprovar a materialidade do estupro. Convencido pela "palavra mais sóbria do acusado", em detrimento da palavra da vítima, aliás, de péssimos antecedentes e alcoólatra inveterada, o juiz decretou a absolvição do acusado, por falta de provas. " [08]

Agora, voltemos nossa atenção por um instante para um caso bem mais recente, que chama mais atenção pela análise insensível, machista e preconceituosa revelada por uma juíza (mulher), designada para responder por algum tempo por uma das Varas Especializadas de Violência Doméstica Contra a Mulher [09]:

Tratava-se de ação penal proposta pelo Ministério Público em desfavor de um agressor que de forma livre e consciente causou incêndio na casa habitada de sua então companheira, com pleno conhecimento de que exporia a perigo comum a vida, integridade física e o patrimônio exclusivo da vítima, por vingança, em razão de a vítima lhe ter negado mais dinheiro após ser agredida em data festiva, na frente de seus familiares.

Conforme CERTIDÃO constante do processo, a própria vítima compareceu na Escrivaninha do juízo após a liberação do réu que ficou apenas 07 dias preso, declarando o seguinte: "QUE APÓS TER SIDO COLOCADO EM LIBERDADE O INDICIADO S. S. O. VEM LIGANDO PARA A VÍTIMA CONSTANTEMENTE, AMEAÇANDO-A, DIZENDO PARA QUE A MESMA VOLTE A VIVER COM O INDICIADO, CASO CONTRÁRIO, IRÁ ACABAR COM A VIDA DELA E DE SEU FILHO E DELE PRÓPRIO; QUE QUANDO O INDICIADO S. SAIU DO PRESÍDIO DO CARUMBÉ O FILHO DA VÍTIMA DE NOME R., DE 10 ANOS, PASSOU MAL, POIS TEM MEDO DO INDICIADO S. (...) QUE R. ENCONTRA-SE ASSUSTADO POR SABER QUE O INDICIADO S. ENCONTRA-SE SOLTO; QUE R. CERTA VEZ PEDIU PARA QUE SUA MÃE VOLTASSE A VIVER COM O INDICIADO S. PARA QUE NÃO OCORRESSE RISCO DE PERDER SUA MÃE; QUE NÃO É A PRIMEIRA VEZ QUE SE SEPARA DO INDICIADO S. ; QUE TODA VEZ QUE OCORRE UMA SEPARAÇÃO O INDICIADO FICA MUITO VIOLENTO, CHEGANDO A AGREDIR A VÍTIMA J. QUE CERTA VEZ A VÍTIMA FOI AGREDIDA TANTO, QUE QUASE FICOU EM UMA CADEIRA DE RODAS; QUE O INDICIADO RESPONDEU INQUÉRITO POLICIAL POR TENTATIVA DE HOMICÍDIO CONTRA A PRÓPRIA VÍTIMA, NÃO TENDO SIDO ATÉ A PRESENTE DATA ENCAMINHADO AO JUÍZO COMPETENTE; QUE A VÍTIMA ALEGA QUE JÁ FEZ UNS 03 EXAMES DE CORPO DE DELITO, TODOS PELA DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER; QUE ACREDITA QUE O INDICIADO NÃO PERMANECE PRESO, EM VIRTUDE DE TER TIO DA POLÍCIA DE NOME S. O.".

Dos autos se constatou que a vítima e seu "pedido de socorro" representado pela certidão acima, foram simplesmente ignorados pelas autoridades que até então haviam oficiado no processo que por tratar-se de violência doméstica e familiar contra a mulher, foi redistribuído para uma Vara Especializada após a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, onde por ocasião da audiência designada para a oitiva de testemunhas de acusação, a vítima foi ouvida e prestou o seguinte depoimento:

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"Que a informante conviveu com o acusado por aproximadamente 03 (três) anos; que o acusado era um homem ciumento e agressivo; que durante o período de convivência o casal discutia e ocorriam agressões físicas por motivo de ciúmes; que o acusado tinha ciúmes até dos filhos da informante; que na data dos fatos, a informante foi almoçar na casa da filha, quando o acusado chegou e pediu para ela ir embora para casa; que a informante disse que iria depois; que o genro da informante afirmou ao acusado que na casa dele o acusado não entraria para agredir a Dona J., que mesmo assim o acusado invadiu a casa da informante, quando o casal passou a discutir e o acusado desferiu um tapa no rosto da informante; que os familiares da informante que estavam no local tentaram separar o casal; que na confusão o acusado começou a agredir a todos, e houve muita gritaria, quando o acusado quebrou tudo; que na confusão o acusado também foi atingido, mas a informante não sabe dizer com quem; que naquele momento a informante ficou com medo do acusado e todo mundo tinha medo dele....quando chegou próximo da sua casa e percebeu que havia fumaça na casa; que o acusado havia jogado álcool no guarda roupas, ligando o botijão de gás e ateado fogo ; que vários móveis e parte do imóvel foram destruídos, que a informante passou mal, e foi levada para o hospital... que o acusado anteriormente a data dos fatos, destruiu objetos da informante; que uma vez o acusado dizia que iria suicidar e saiu com a informante no carro, quando bateu o carro e destruiu o carro da informante...o acusado nunca pagou pelos prejuízos causados a informante em razão do incêndio; que após os fatos e o acusado ter se liberado da prisão, ele telefonava muitas vezes para a informante, e ameaçava invadir a casa dela e matar todo mundo, e após suicidar, caso a informante não fosse falar com ele; que a informante algumas vezes marcava em lugares públicos para falar com o acusado, porque temia as atitudes dele; que o acusado deixou de importunar a informante há mais ou menos um ano; que a casa e os móveis foram adquiridos somente pela informante; que quando a informante passou a conviver com o acusado já possuía tais bens... QUE A INFORMANTE DURANTE SEU DEPOIMENTO APRESENTOU ESTADO DEPRESSIVO, CHOROU O TEMPO TODO, DEMONSTRANDO TER TEMOR POR TUDO O QUE OCORREU ENTRE O CASAL; que durante o período em que o acusado conviveu com a informante, ele não trabalhava... Dada a palavra ao Ministério Público, às perguntas respondeu: que o acusado durante o período de convivência agrediu fisicamente a informante várias vezes, que a deixava presa em casa, a enforcava; que certa vez, em uma briga, a informante estava vindo da beira do rio com o acusado e o filho de três anos, quando o acusado desferiu um tapa na criança, que ficou gritando; que a informante abraçou o acusado para defender o filho, quando ele a jogou contra uma mesa, e ela bateu a coluna; que naquela data perdeu os movimentos da cintura para baixo, e ficou no hospital por quinze dias, e usou cadeira de rodas por algum tempo; que não sabe dizer quanto tempo, mas por aproximadamente um mês; que depois ficou se rastejando pelo chão, até conseguir voltar a andar; que o acusado chegou de afirmar que caso a informante largasse dele, ele teria de pagar uma pensão para ele; que o acusado assinava os cheques da vítima e usava no comércio; que quando o acusado saiu da cadeia, a informante chegou a desmaiar, e o filho dela R., também desmaiou; QUE A INFORMANTE AINDA HOJE SENTE MUITO MEDO DO ACUSADO; que a informante tem formas de provar as agressões anteriormente sofridas por meio dos boletins de ocorrência que registrou junto à Delegacia da Avenida do CPA e também várias vezes na Metropolitana; que quando a informante abraçou o acusado na tentativa de se proteger, e proteger o filho, o abraçou pela frente e foi empurrada para trás; que a informante na época em que machucou a coluna ficou internada no Pronto Socorro, e depois foi levada para o hospital Santa Rosa; que quando a informante voltou para casa, o acusado não estava no lar; que "quando ele fazia, ele sumia"... que quando a informante estava com o acusado, ela não tinha medo, mas quando estava longe, separado dela. Ela temia que ele pudesse matá-la"

O então ex-genro da vítima M. R. F., prestou na ocasião valorosos esclarecimentos para a justiça:

"foi casado com a filha da vítima, chamada L.; que no dia dos fatos, já houve uma "reversão do casal", o acusado e a vítima; que o acusado não queria deixar a vítima o informante usar o carro da vítima...que na data dos fatos o acusado foi até a casa do informante e invadiu a casa para agredir a vítima, que na época era sua sogra... a vítima disse que o acusado pediu dinheiro a ela; que o informante acha que naquele momento o acusado não tinha bebido; que o informante não permitia que o acusado entrasse na casa dele; que na segunda vez que o acusado retornou e começou a confusão; que o acusado começou a agredir a vítima, quando a filha dela interferiu e o interrogado também interferiu para não deixar que o acusado batesse na vítima e nem na sua esposa.. . que no meio da confusão, o acusado foi atingido por uma garrafada, que acertou próximo ao ombro dele... que o acusado saiu da casa do informante ameaçando colocar fogo na casa da vítima; que o acusado saiu da casa do informante e foi para a casa da vítima onde tirou a mangueira do botijão de gás, e colocou fogo dentro do guarda roupas, onde haviam muitos papéis, ocasionando o incêndio na casa; que quando a vítima chegou na casa, a casa estava incendiada...que o acusado afirmou na delegacia que ele ateou fogo na casa da vítima.. . que o acusado e a vítima brigavam muito, e o acusado agredia a vítima fisicamente; que o acusado já destruiu dois carros da vítima...que o acusado costumava ingerir bebidas alcoólicas; que um dia depois que o informante fechou a lanchonete, a vítima telefonou dizendo que este tinham saído de um espetinho, quando ela decidiu ir embora e o acusado grudou no cabelo dela, quando perdeu o controle do carro e acabou batendo o carro em outro carro; que o veículo acabou... QUE A VÍTIMA DIZIA SENTIR MUITO MEDO DO ACUSADO, E AFIRMA QUE ELE A AMEAÇA ATÉ HOJE;que a vítima disse que até HOJE, o acusado a ameaça por telefone; que o informante várias vezes socorreu a vítima das agressões; que certa vez a vítima quase ficou deficiente, porque o acusado a jogou em uma mesa, e o informante teve que chamar o resgate porque a vítima não conseguia se mover do chão ; que a vítima foi levada na maca; que a vítima foi para o Pronto Socorro e depois para o Hospital Santa Rosa; que após isso a vítima foi morar na casa do informante; onde ficou quase um mês sem poder andar; que quando ela foi para a casa dela ficou usando cadeira de rodas para se locomover; que após isso o acusado invadiu a casa da vítima e por isso ela foi para a casa do informante, porque estava com medo do acusado... que quando o acusado bebia ele se tornava um homem agressivo... que quando a vítima estava morando na casa do informante, o acusado ligou ameaçando o informante... o acusado nunca ressarciu os prejuízos causados a vítima no incêndio... que a lesão que a vítima sofreu na coluna deve ter ocorrido antes da copa, no ano 2000 ou 2001; que a vítima ficou incapacitada por mais de 30 dias, uma vez que para se locomover precisava da ajuda da filha; que a vítima guardava muitos documentos dentro do guarda roupas que foi incendiado, que os documentos foram destruídos, queimados. (...) que o informante nunca viu a vítima alterada, embriagada por ingerir bebidas alcoólicas.. ..o acusado não ajudou a vítima na recuperação, após os fatos que ocasionaram a lesão na coluna da vítima". [10]

Conforme se fez constar no termo da referida audiência, a pedido desta representante do Ministério Público, consignou-se o seguinte: "A VÍTIMA J. J. M. DISSE SENTIR-SE INTIMIDADA EM SER OUVIDA NA PRESENÇA DO ACUSADO... E ASSIM, NOS TERMOS DO ARTIGO 217 DO CPP, A MM.ª JUÍZA DETERMINOU QUE O ACUSADO FOSSE RETIRADO DA SALA DE AUDIÊNCIAS, PARA NÃO PREJUDICAR OU INFLUENCIAR O DEPOIMENTO DA VÍTIMA".

Face o grande temor da vítima em relação ao acusado que continuava lhe ameaçando, o Ministério Público requereu a prisão preventiva do mesmo, o que, contudo, foi indeferido pelo Juízo, que fundamentou sua decisão afirmando, dentre outras coisas que: "dos autos não consta que o acusado é dado à prática de crimes, uma vez que o ÚNICO DELITO por ele praticado é o que ora se investiga (fls. 07), está, pois, prejudicada a possibilidade da decretação de sua prisão preventiva... Com isso, constato que tais requisitos estão ausentes, tanto que a própria vítima e ex-companheira do acusado, Sra. J. J. M. ao prestar suas declarações em Juízo afirmou "...que na data dos fatos o réu aparentava ter ingerido bebidas alcoólicas", que "quando o acusado estava sóbrio ele ajudava a informante em tudo em casa, e na sua recuperação dizendo que ela voltaria a andar, a incentivando" e " que ele a ajudou muito conversando". [11]

Analise-se a irrefletida "justificativa" da magistrada para a conduta reprovável do agressor, primeiro deixa claro que embora ele responda pela prática de diversos fatos típicos e antijurídicos, criminoso ela não o considera, depois "justifica" a agressão e o ato dele atear fogo na casa da vítima pela ingestão VOLUNTÁRIA de bebida alcoólica e por fim, de maneira estereotipada, ignorando que foram as agressões do réu que colocaram a vítima por muito tempo em cadeira de rodas, minimiza seus atos perversos, elogiando-o e enaltecendo-o expressamente ao destacar que ele auxiliara a vítima após a agressão e a incentivava dizendo que voltaria a andar.

Demonstrou-se imprópria a tolerância da juíza para com as causas de ferocidade de gênero e sua patente preterição quanto a seus perversos desdobramentos, atitude inconciliável com sua específica área de atuação, na qual exercia função de colossal relevância, onde muito mais que meros conhecimentos jurídicos haverão de ser exigidos, observando-se no caso sob análise, em que pese os incontroversos requintes de crueldades perpetradas pelo agressor contra vítima indefesa, a julgadora optou por ignorar a dor e as mazelas da mulher agredida e centrar sua decisão em atitudes de cunho subjetivo, para "amparar" à sua maneira, quiçá inconscientemente, as ações abusivas do réu, ressaltando o comportamento "bondoso" do mesmo para com a vítima após as agressões.

Inconformado, o Ministério Público ajuizou recurso em sentido estrito, que, contudo, infelizmente, fora improvido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso [12], em decisão contrária ao parecer escrito da Procuradoria Geral de Justiça, revelando a ampla permissividade quanto à prática de violência doméstica evidenciadas por algumas autoridades, homens e mulheres, vez que no processo supracitado, por exemplo, a magistrada jamais enxergou qualquer equívoco nos fundamentos discriminatórios que embasaram sua decisão.

Eis o que as célebres autoras Pimentel, Schritzmeyer & Pandjiarjian afirmam revelar a ideologia patriarcal machista em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada por vários (as) operadores (as) do Direito, que mais do que seguir o princípio clássico da doutrina jurídico-penal - in dubio pro reo - valem-se precipuamente da normativa social segundo seus próprios e subjetivos valores, que definiram magnificamente como: in dubio pro stereotypo. [13]

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Sobre a autora
Lindinalva Rodrigues Corrêa

Promotora de Justiça de Mato Grosso, Promotora e Coordenadora das Promotorias de Combate à Violência Doméstica e Familiar de Cuiabá-MT,Co-autora do livro "Direitos Humanos das Mulheres - Comentários à Lei Maria da Penha"

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Os homens também necessitam da proteção especial prevista na Lei Maria da Penha?: Diagnóstico crítico sobre a violência de gênero sofrida por mulheres e a constitucionalidade das medidas de caráter afirmativo que visam combatê-la. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1975, 27 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12013. Acesso em: 28 mar. 2024.

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