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Aspectos jurídicos da proteção dos territórios indígenas no Brasil

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Agenda 06/05/2009 às 00:00

7 DA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DA JUSTIÇA FEDERAL NAS CAUSAS QUE APRESENTEM INTERESSES TERRITORIAIS DOS ÍNDIOS

Anteriormente ao advento da Constituição Federal de 1988, havia um entendimento majoritário, no sentido de que todos os processos que tratassem de interesses indígenas seriam de competência da Justiça Estadual. No Supremo Tribunal Federal esse posicionamento era unânime. Tal interpretação abrigava seu fundamento no fato de a Constituição anterior, a de 1969, não determinar, expressamente, a competência da Justiça Federal para dirimir lides envolvendo direitos indígenas.

A Norma Constitucional de 1988 trouxe expressamente prevista a Competência da Justiça Federal para julgar causas relativas a direitos dos povos indígenas, in verbis: "art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) XI - a disputa sobre direitos indígenas".

O referido dispositivo constitucional é uma norma de índole processual, que define a área de competência de atuação jurisdicional quando o assunto relaciona-se a direitos indígenas. Caracteriza-se como preceito instrumental que visa a operacionalizar outros preceitos substanciais presentes na própria Constituição, mormente o disposto no artigo 231, CF/88: "Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Uma vez que o artigo 231 impõe à União o dever de proteger as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, sua cultura, sua terra, sua vida e, em função das disposições do artigo 109, XI, passa a Justiça Federal a ser competente para dirimir as contendas sobre direitos dos índios, inclusive, e como não poderia de outra forma ser, possuindo competência para processar e julgar lides, que digam respeito aos direitos territoriais dos índios.

Seguindo o entendimento preconizado pela doutrina após a promulgação da Novel Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal uniformizou sua jurisprudência no sentido de retirar a competência da Justiça Estadual para julgar demandas que versem sobre direitos indígenas, incluindo suas terras, para atribuí-la, exclusivamente, à Justiça Federal, e.g.:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. USUCAPIÃO. PERÍMETRO DE ALDEAMENTO INDÍGENA. MANIFESTAÇÃO DE INTERESSE DA UNIÃO FEDERAL. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM PARA AVALIAÇÃO DO PEDIDO. 1. Ação de reconhecimento de domínio sobre imóvel situado no perímetro de aldeamento indígena. Manifestação de interesse da União, perante a Justiça Estadual. Somente à Justiça Federal cabe avaliar a realidade ou não desse interesse. 2. Incompetência da Justiça Comum para exame da pretensão. Recurso conhecido e provido (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Re 197628/ SP. T2. Min, Maurício Corrêa. j. 25/03/1997).

Por fim, cabe ressaltar que a Constituição também determinou que os índios, suas comunidades e organizações, são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses (CF/88, art. 109, XI); logo, possuem autonomia para demandar judicialmente quando necessitarem da tutela jurisdicional do Estado no tocante aos seus direitos sobre as terras que ocupam. Essa disposição Constitucional, que constitui estrutura basilar de qualquer Estado democrático de direito, equipara os indígenas e suas organizações às pessoas físicas e jurídicas do Brasil, que sempre gozaram da prerrogativa de invocar diretamente o Poder Judiciário quando necessário à garantia e defesa de seus direitos.


8 POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS E A QUESTÃO DAS TERRAS INDÍGENAS

Historicamente, no Brasil, o conjunto de ações, políticas e relações que envolvem o governo e os povos indígenas tem sido implementado por instituições específicas.

A primeira dessas instituições foi a Igreja Católica que, no período colonial, possuía a função de "civilizar" os índios através da catequização*. Com a expulsão dos jesuítas, o Estado Português assumiu essa tarefa, executando uma política específica, expressa no Diretório de pombal, que objetivava a assimilação dos índios à sociedade nacional.

Durante o Império, a política indigenista objetivava a integração dos índios à sociedade nacional, e foi executada pela Diretoria Geral dos Índios, repartição pública exclusiva para este fim.

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Em 1910, foi criado o SPI - Serviço de Proteção ao Índio, que não trouxe alterações significativas na política então implementada. O SPI era o órgão indigenista do país, e executava uma política de proteção aos índios, de caráter integracionista: proteger os índios até que deixassem de ser índios e se tornassem brancos.

Com a criação da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, em 1967, observou-se apenas uma mudança de nome de instituição. Foram mantidas as mesmas regras do SPI e, inclusive, muitos dos seus funcionários. Somente em 1973, com a promulgação da Lei 6.001 datada do mesmo ano, denominada Estatuto do Índio, houve um novo empenho governamental no que diz respeito às políticas garantidoras e protecionistas das terras dos índios. A Lei 6001/73 dedicou um título inteiro para tratar das terras indígenas, abordando, inclusive, a questão da demarcação delas, remetendo à regulamentação ao Decreto n° 22, de 04/02/1991. Atualmente, a sistemática administrativa de identificação e demarcação das terras indígenas está disposta no Decreto 1.775, de 08 de janeiro de 1996.

A FUNAI é a executora da política indigenista da União e responsável pela demarcação das terras indígenas. Parte da atuação da FUNAI consiste na realização de trabalhos junto aos índios para que não promovam ocupações e ou manifestações que, de alguma forma, firam o Estado de direito; o órgão também procura orientá-los no sentido de que, quando desejarem fazer reivindicações, que o façam de forma legal e pacífica. Importante anotar que a referida Instituição, fundação pública federal, não possui poder decisório sobre as atitudes tomadas pelos indígenas. Tal, aliás, seria totalmente inconcebível à luz da Constituição de 1988, que reconhece aos índios, às suas comunidades e organizações, legitimidade para requerer seus interesses e direitos, independentemente de apoio ou autorização por parte do Poder Público. A FUNAI, portanto, por sua própria atribuição institucional, busca sempre atuar ao lado dos indígenas na defesa de seus direitos e pode representá-los ou assisti-los, conforme o caso, em demandas individuais ou coletivas, não decidindo, entretanto, sobre o próximo passo a ser dado por este ou aquele determinado grupo indígena.

O campo de atuação, no que diz respeito especificamente às terras indígenas, objetiva o cumprimento das determinações constitucionais e das políticas governamentais dirigidas à questão. Suas atividades são desenvolvidas em várias frentes, buscando albergar todos os aspectos vinculados à problemática dos territórios indígenas, perfazendo-se em: atividades de fiscalização preventiva; operações de extrusão para retiradas de invasores e reocupação tradicional de territórios; mapeamento, identificação e diagnóstico de problemas ambientais nos entornos das terras indígenas com vistas a elaborar programas de prevenção aos crimes ambientais, como: extração ilegal de madeiras e minérios, expansão agrícola, caça e pesca ilegais. Atualmente, a Fundação também desenvolve trabalhos de contenção da pressão do Movimento dos Sem Terra, quando as terras reivindicadas englobem territórios dos índios.


9 CONCLUSÕES

A análise dos aspectos jurídicos concernentes à proteção das terras indígenas aponta que uma das formas, senão a mais importante, de garantir a perpetuação desses povos, é por meio da salvaguarda dos seus direitos, máxime a proteção à posse das suas terras. Destarte, a terra, para o indígena, tem uma representação especial, haja vista que é por meio dela que os índios conseguem a sua subsistência e consolidam a prática das atividades que distinguem a sua etnia. Todavia, o curso da história apresentou um quadro de profundo atentado aos direitos territoriais dos silvícolas, os quais sofreram toda sorte de agressão ao bem que, ao lado de sua cultura, desponta como o mais precioso para a perpetuação de seu povo.

O próprio diploma legal máximo do país, qual seja, a Constituição Federal, oscilou sobremaneira ao longo dos anos e dos momentos políticos de suas promulgações pelo legislador constituinte. A questão indígena, mesmo sendo levada para debate nos trabalhos legislativos, quase sempre era preterida em função da pouca atenção despendida pela classe política, isso quando os membros das comissões não cediam aos apelos da classe dos latifundiários e outras que, direta ou indiretamente, tinham interesse em ver abrandadas as disposições relativas às referidas terras. Tanto o é, que, alternando-se entre garantias por vezes mais, por vezes menos amplas, as diversas Constituições da República não fizeram nada mais que refletir as nuances dos interesses das classes burguesas e políticas que permeavam o cenário nacional à época dos trabalhos que resultavam em suas promulgações.

A mais recente Carta Magna brasileira - a Constituição Federal de 1988 - procurou garantir aos indígenas seus direitos territoriais, reconhecendo que os índios, assim como outras minorias nesse país, precisam mais que outros indivíduos, de instrumentos garantistas para que possam manter sua existência, ante a sempre constante afronta, por setores da sociedade econômica, à ocupação pelos indígenas dos territórios que lhes pertencem por direito. A Carta Constitucional reconhece essas terras como direitos originários que consagram uma relação jurídica fundada no instituto do indigenato, uma velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes nos primeiros tempos da Colônia, firmando o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas. Dessa forma, patente é a necessidade de proteção cada vez mais ampla a essas populações por parte do Estado, através do Judiciário, Legislativo e Executivo, este último, por meio das Políticas indigenistas traçadas, coordenadas e executadas pelas Instituições cumpridoras dos objetivos governistas.

Por fim, a posse das terras pelos índios deve ser encarada como direito fundamental desses povos, e posta em primazia quando em conflito com os mais diversos interesses particulares em jogo. Nesse sentido, a posse dos indígenas sobre as terras tradicionalmente por eles ocupadas, deve ter sua existência aferida de forma mais flexível quando comparada à noção de posse obtida a partir do estudo do direito civil. Logo, outros requisitos além dos estritamente civis, devem ser tomados em conta quando da análise dessa relação jurídica diferenciada. Questões características unicamente à situação dos índios para com suas terras, tais como o indigenato e a tradicionalidade, são de sopesamento obrigatório quando da análise do tema visando à demarcação de terras silvícolas, bem como ao julgamento de quaisquer lides envolvendo territórios ocupados originariamente pelas populações em questão.


REFERÊNCIAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9. ed. São Paulo: Lumen Juris. 2006. P. 911-943.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987.

______. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

JUNIOR, Luiz de Freitas. Hermenêutica Constitucional da Posse Indígena. Revista da Advocacia Geral da União. Ano VII, n° 15, março de 2008.

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n 43, p. 153-169, jul. 2002.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. P. 748-749.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.


Notas

  1. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n 43, p. 154-155, jul. 2002.
  2. GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pg 158-159.
  3. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras... Op. Cit. p. 163-164.
  4. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9. ed. São Paulo: Lumen Juris. 2006. P. 925.
  5. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, P.152.
  6. CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, P. 422.
  7. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005, P. 749.
  8. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Embargos à Execução 323-7. Min, Sepúlveda Pertence. j. 06/03/1997. DJU. 14/03/1997. S. 1. p. 6946 – 6947.
  9. CUNHA, Manuela Carneiro da. História... Op. Cit. p. 117.
  10. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, P. 859.
  11. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras... Op. Cit. P. 160-161.
  12. JUNIOR, Luiz de Freitas. Hermenêutica Constitucional da Posse Indígena. Revista da Advocacia Geral da União. Ano VII, n° 15, março de 2008, P. 8.
  13. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 4ª Região. AG 2005.04.01.021350-6. T4. Min, Valdemar Capeletti. j. 24/08/2005. DJU. 21/09/2005.
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Leonardo Nascimento. Aspectos jurídicos da proteção dos territórios indígenas no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2135, 6 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12759. Acesso em: 23 dez. 2024.

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