A LEI Nº 9870/99
O impetrante alegou que seu direito tem arrimo no disposto no artigo 6º da Lei 9870/99, que "[...] proíbe a suspensão de provas escolares, retenção de documentos ou a aplicação de qualquer outro tipo de penalidade pedagógica por inadimplência, haja vista que existem remédios processuais facultados pelo ordenamento jurídico para que a Instituição de Ensino obrigue o aluno ao pagamento das mensalidades atrasadas."
Assim, concluiu que o impetrado viola seu direito líquido e certo expressamente previsto neste dispositivo legal e, em conseqüência, ficaria ele, impetrante, impedido de exercer o direito fundamental ao trabalho.
No entanto, a pretensão do impetrante absolutamente não poderia prosperar, para que prevalecesse a exata interpretação da vontade do legislador.
Nesse sentido tenha-se em conta os argumentos de que se valeu o impetrado, os quais ainda que possam não ser integralmente identificados com a convicção do leitor, certamente servirão ao propósito de colocar em relevo o fato de que era no mínimo temerária a concessão da liminar que acabou sendo concedida ao impetrante em face da ausência de seus pré-requisitos ensejadores.
Argüiu o impetrado que a invocação do artigo 6º da Lei 9870/99 foi usada de maneira muito conveniente pelo impetrante, pois o mesmo o utilizou apenas e tão somente naquela parte que lhe interessava, ou seja, apenas na parte em que este dispositivo legal proíbe "[...] a suspensão de provas escolares, retenção de documentos ou a aplicação de qualquer outro tipo de penalidade pedagógica por inadimplência."
Omitiu propositadamente, entretanto, o fato da parte final do citado art. 6º também dispor que, caso a inadimplência perdurasse por mais de noventa dias, deveria haver a aplicação do artigo 1092 do Código Civil de 1916 (476 do Código Civil de 2002), tal e qual pode ser visto na seguinte transcrição:
Art. 6º, caput: São proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento, sujeitando-se o contratante, no que couber, às sanções legais e administrativas, compatíveis com o Código de Defesa do Consumidor, e com os artigos 177 e 1092 do Código Civil brasileiro, caso a inadimplência perdure por mais de noventa dias.
Assim, tendo em vista que havia sido provado nos autos que o débito do impetrante foi contraído em 1999, ou seja, que tal débito estava pendente de pagamento há muitíssimo mais tempo do que noventa dias em que o citado art. 6º da Lei 9870/99 faz menção, logo, com razão concluiu o impetrado que este invocado dispositivo legal na verdade não se constituía em direito líquido e certo do impetrante.
E isso porquanto era evidente que no caso vertente não se podia cogitar da proteção que este dispositivo legal estendia aos inadimplentes, mas da aplicação do mencionado artigo 1092 do Código Civil de 1916, que hoje equivale aro artigo 476 do Código Civil de 2002, adiante transcrito:
Art. 476: "Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro."
Logo, como concluiu o impetrado, sem o devido pagamento de sua dívida, o impetrante não poderia, absolutamente, exigir que o impetrado lhe entregasse o diploma correspondente ao término de seu curso de graduação, restando claro que no caso em exame não haveria, absolutamente, nenhum direito líquido e certo violado mesmo que o impetrado de fato estivesse retendo o diploma do impetrante por motivo de inadimplemento, conforme foi alegado.
Ausente, portanto os requisitos de concessão da liminar baseado na Lei 9870/99, conforme concluiu o impetrado, razão pela qual não haveria de ser concedida a liminar que, no entanto, foi deferida ao impetrante.
Argüiu, ainda, o impetrado, que a liminar também não poderia ser concedida em face de seu caráter de satisfatividade, aqui entendido não apenas no seu sentido de realização do direito, mas de irreversibilidade da medida provisional, argüição que também reputa-se relevante no presente estudo em face das conclusões acerca da satisfatividade da medida cautelar, já explanado linhas atrás.
O impetrado à respeito, assim se expressou: "(...) não é lícito ao Judiciário conceder liminar se esta constituir-se em medida satisfativa, trazendo por conseqüência a inocuidade ao futuro pronunciamento de mérito, como insofismavelmente ocorreu no caso vertente. Ou seja, de que adiantaria ao final ser reconhecido a impertinência da segurança pleiteada se o impetrante já obteve, via liminar, o bem da vida buscado (diploma), tendo este já produzido situações irreversíveis em seu favor e em desfavor do impetrado??
E, apoiou sua argüição, sustentando que." Na tutela cautelar, porém " (...) não se concebe qualquer satisfatividade (...) porque não é permitida a antecipação de efeitos do provimento definitivo de mérito (...)" , conforme preleciona o eminente Eduardo Melo de Mesquita [124]. Ou seja, a tutela cautelar deve ter objetivo de segurança apenas; " (...) jamais de realização do direito substantivo (...)".
Além disso, sustentou, ainda, que "(...) em face da reportada satisfatividade, o interesse do impetrado indubitavelmente ver-se-ia em uma situação não apenas desfavorável, mas também de irreversibilidade. E isso colocaria em desigualdade as partes litigantes, em franco desrespeito ao artigo 5º, caput, da Constituição Federal, razão pela qual, pelos motivos que a liminar foi deferida deve a mesma ser cassada com urgência, como desde já se requer."
Em conclusão final, assim se reportou o impetrado: "Pelo exposto resta claro que a concessão da liminar ao impetrante é, concessa venia, ato ilegal, pois o caso absolutamente não comporta essa tutela cautelar.
E isso assevera-se pela caracterizada falta de interesse processual do impetrante, ausência do ato coator, evidente caráter satisfativo da medida, ausência de comprovação nos autos que a inadimplência do impetrante perante a instituição de ensino perdura por menos de noventa dias, condição exigida pelo artigo 6º, in fine, da Lei 9870/99 para que a pressuposta recusa da entrega do diploma pudesse vir a caracterizar um ato de autoridade passível de ser corrigido pela via da ação mandamental."
Inobstante a clara impertinência da concessão da liminar deferida ao impetrante, conforme acima demonstrado, a autoridade apontada como coatora, contudo, teve que obedecer o comando da decisão liminar, entregando ao impetrante o diploma reivindicado, mesmo tendo a plena consciência que tal medida seria, como de fato é, de caráter irreversível, sendo de completa inocuidade as informações que tempestivamente foram apresentadas. Por conta da irreversibilidade da medida, desistiu o impetrado, inclusive, de apresentar qualquer outra medida jurídica de urgência para a cassação da liminar aqui focada, pois antes que pudesse elaborar tal recurso e tentar obter do Tribunal a anulação de tal tutela de urgência, obviamente já teria sido compelido a entregar o aludido bem da vida (diploma), nada mais restando ao judiciário fazer para salvaguarda de seu direito, mesmo que ao final do processo venha a ser reconhecido suas razões de defesa.
INEXISTÊNCIA DAS MEDIDAS JURÍDICAS PARA IMPEDIR O CUMPRIMENTO IMEDIATO DA LIMINAR IRREVERSÍVEL DEFERIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA
No subtítulo "Estudo de Caso", acima apresentado, o impetrante, uma vez que conquistou o bem da vida através de medida liminar, qual seja, seu diploma de graduação, já satisfez por inteira a sua pretensão. Assim, ainda que em decisão final do mandamus depare-se com a inadequação da medida que lhe foi concedida, não se verá tolhido de exercer um direito que achava ser seu. Pois, certamente, nesse caso, o impetrante, desde o momento em que conquistou o provimento almejado via liminar, encarregou-se de providenciar cópia autenticada do diploma, que lhe serve para suprir as exigências profissionais, tal como o documento original.
Por outro lado, o diploma conseguido, ainda que por tempo limitado, potencialmente poderia produzir no mundo fático, situações assaz irreversíveis, v.g., tal profissional enquanto teve sua situação acadêmica "legalizada" poderia obter registro do Conselho Profissional de classe, podendo efetivamente vir a atuar no campo profissional. Assim, poderia chamar para si a responsabilidade técnica por inúmeros empreendimentos de engenharia agronômica (obras de agronomia), que obviamente não poderiam ficar desfalcados de tal responsabilização de forma repentina, sob pena de se tornarem obras clandestinas e suscitarem a autuação dos seus respectivos proprietários.
Destarte, assim como constatou Ovídio A. Baptista da Silva [125] em seu oportuno exemplo acerca de demolição de monumento histórico concedido através de medida liminar , no mesmo sentido é a conclusão a respeito do caso ocorrido nos Autos de Mandado de Segurança, já mencionado: não havia razoabilidade na concessão da medida liminar, dado o seu caráter de irreversibilidade.
Deste modo, ainda que em ambos os citados casos a sentença ao final venha a destoar do provimento concedido liminarmente, não há que se falar que a medida liminar seja, como é da natureza de tais medidas, de cunho provisório.
Neste sentido, segundo este último autor, "(...) o conceito que se deve ter presente de provisoriedade há de envolver o não-definitivo enquanto julgamento que, por isso mesmo, poderá ser desfeito, e igualmente a não-definitividade dos efeitos provocados pelo ato judicial."
Assim, tal como nos casos apresentados, a sentença que ordena que a realidade jurídica torne ao status quo ante, na verdade, é decisão com efeitos nulos, uma vez que, liminarmente já restou configurado a impossibilidade do provimento vir a ser desfeito.
Em vista do exposto, constata-se que, ainda que existam meios jurídicos hábeis a suspender ou inibir os efeitos de medida liminar concedida em mandado de segurança, como o pedido de suspensão e o agravo de instrumento, estes, não se apresentam, porém, como medidas eficazes para reverter provimento contido em medidas liminares irreversíveis. Aliás, nenhum meio jurídico é apto a reverter uma situação que já operou seus efeitos no mundo real.
Desta forma, demonstrado que existem no Judiciário decisões liminares que afrontam a real natureza destas, ou seja, que há casos de liminares concedidas mesmo que se vislumbre a irreversibilidade do provimento, urge a criação de um meio jurídico apto a prevenir que o impetrado fique à mercê de ser compelido ao imediato cumprimento do comando da liminar irreversível, sem que venha a incorrer em crime de desobediência. Somente assim estaria resguardado o seu direito constitucional de exercer ampla defesa e contraditório, pois, na realidade jurídica atual, o que ocorre em havendo irreversibilidade de medida liminar, é a inocuidade dos meios de defesa do impetrado, uma vez que, mesmo que o direito esteja do seu lado em decisão final, não logrará êxito, dada a impossibilidade de reversão do que fora concedido.
Destarte, sugere-se, de forma ensaísta, seja criado em lei a possibilidade do impetrado não cumprir a medida liminar quando informar ao juízo, imediatamente após ser notificado para cumprimento desta medida que considere de cunho irreversível, que, no prazo legal interporá contra tal decisão o recurso de agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo, sendo nesse caso sustado os efeitos da medida liminar ate que haja apreciação no Tribunal, pelo juiz relator convocado, do efeito suspensivo solicitado.
Apreciado o pedido de efeito suspensivo, e, caso o mesmo não seja concedido, imediatamente terá cumprimento os efeitos da medida liminar deferida; sendo concedido, contudo, prorroga-se a sustação dos efeitos da medida liminar até apreciação do agravo pelo colegiado do Tribunal, quando será definitivamente julgado.
Dessa forma o impetrado teria a garantia de não precisar cumprir de imediato medida liminar que julgue de cunho irreversível, sendo a prestabilidade dos efeitos da medida liminar afastada temporariamente, em prol da garantia constitucional do contraditório e ampla defesa do impetrado.
CONCLUSÃO
O Mandado de Segurança previsto como remédio jurídico idôneo a salvaguardar o cidadão em seu direito líquido e certo frente aos abusos e ilegalidades cometidos pelo Poder Público, também pode, por conseqüência do uso indevido de medidas liminares, se constituir numa fonte de desrespeito aos princípios constitucionais do direito ao contraditório e ampla defesa.
A medida liminar, como já demonstrado, é medida intrínseca ao Mandado de Segurança quando se apresentam os requisitos que ensejam sua concessão, ou seja: quando for relevante o fundamento da impetração e, se do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida.
Assim, se restarem configurados os seus pressupostos o juiz deverá concedê-la, posto que não se trata a medida liminar de uma liberalidade da justiça, e, no mesmo sentido, se não estiverem presentes os seus requisitos, deverá o juiz indeferi-la.
No entanto, inerente à natureza das medidas liminares, considera-se que as mesmas devam apresentar o caráter de provisoriedade, ou seja, somente podem ser deferidas caso contenham provimento de cunho reversível. Explica-se: se o provimento contido em medida liminar produzir efeitos irreversíveis, de nada adiantaria ao impetrado apresentar sua defesa, uma vez que, se em decisão final o direito estiver do seu lado, já se operou, pelo comando liminar, a irreversibilidade do direito concedido.
Em que pese a injustiça irremediável que tal decisum pode ocasionar, não raras vezes a situação acima descrita tem ocorrido nas decisões prolatadas pelo Judiciário.
Neste sentido, recorda-se o caso trazido à baila no presente estudo, referente aos Autos de Mandado de Segurança n.º 000.393/2005, em trâmite pelo Juízo da Comarca de Bandeirantes-PR. Nesse processo, como já se verificou, restou clara a impertinência do emprego de medida de urgência, uma vez que a juíza liminarmente concedeu ao impetrante o bem da vida almejado, ignorando a lei que disciplina a matéria e tornando inócua a defesa apresentada nas informações. Ressalta-se, no entanto, que, se a inadequação da medida repousasse apenas no fato de a medida liminar ter satisfeito a pretensão do impetrante, mal irremediável não causaria, dada a possibilidade de reversão dos efeitos deste ato judicial. Todavia, a satisfatividade presente naquela decisão, diz respeito ao seu caráter de irreversibilidade. O provimento liminar uma vez concedido, no caso determinando a entrega do diploma de graduação ao impetrante, já operou desde logo efeitos no mundo real que não são passíveis de serem revertidos. Com o diploma em mãos, o impetrante, certamente já se encarregou de providenciar cópias autenticadas de tal documento que são aptas a produzir os mesmos efeitos do documento original. Assim, mesmo que ao final, reste clara a inadequação do provimento liminar, o impetrado não poderá reverter o que já se operou no mundo fático, com conseqüências perniciosas para todos aqueles de boa-fé que foram atingidos pelos efeitos do provimento liminar irreversível.
Deste modo, ainda que o pedido de suspensão e o agravo de instrumento sejam meios jurídicos aptos a paralisar e inibir os efeitos de medida liminar, não se prestam, contudo, a corrigir os efeitos provocados por liminares de caráter irreversível, pois, neste caso tais meios tornam-se inócuos ante a impossibilidade de desfazimento dos efeitos fáticos que o provimento liminar ocasionou na realidade.
Assim, conclui-se no presente estudo que, mister se faz, sem delongas, a inserção de um dispositivo na lei processual que permita conferir aos litigantes em Mandado de Segurança a efetiva paridade de armas, para que, em casos de concessão de liminares irreversíveis, o impetrado possa efetivamente reagir para proteger o seu direito, sem ficar a mercê de uma decisão liminar que, não podendo ser revertida no mundo fático, representa verdadeira afronta ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório.
Destarte, como já restou sugerido, acredita-se com fundada esperança que, dada a ineficiência de qualquer meio jurídico para desfazer provimento irreversível, a solução que se apresenta viável, neste sentido, seria a de que o impetrado tivesse meios que lhe resguardem do não cumprimento imediato de medida liminar irreversível, sem que incorra, para tanto, em crime de desobediência.
A concessão de liminar, no caso sugerido, certamente sofrerá algum prejuízo na sua eficácia, contudo tal prejuízo, garantindo ao impetrado seus direitos constitucionais, homenageia o princípio da igualdade das partes no processo e seguramente proporciona a efetiva realização da justiça.