Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Os limites constitucionais do poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral.

A Resolução nº 21.702/04, a Emenda Constitucional nº 58/09 e a controvérsia da fixação do número de vereadores

Exibindo página 1 de 2
Agenda 18/03/2011 às 15:46

Sumário: Introdução; 1) O poder regulamentar do TSE, a resolução nº 21.702/04 e EC 58/09; 2) A ausência de legitimidade legislativa do TSE; Considerações Finais; Referências Bibliográficas

Resumo: O Poder Regulamentar, concedido ao Tribunal Superior Eleitoral por força do art. 23, inciso IX do Código Eleitoral, autoriza-o a expedir resoluções que tenha como objetivo viabilizar a execução das normas contidas naquela lei. No entanto, esse poder não legitima o órgão jurisdicional a praticar atos inerentes ao Poder Legislativo, sob pena de ferir o princípio da tripartição dos poderes. Com base nisso, questiona-se a legitimidade da edição da Resolução nº 21.702/04, que alterou as regras de fixação do número de vereadores a serem eleitos por município, desconsiderando a autorização constitucional que destinava essa competência à Lei Orgânica dos Municípios, bem como os limites jurídicos e democráticos do poder regulamentar do TSE.

Palavras-Chave: Tribunal Superior Eleitoral. Poder Regulamentar. Resolução nº 21.702/04. Tripartição dos Poderes. Judicialização da Política.


INTRODUÇÃO

Ao Tribunal Superior Eleitoral – TSE – é atribuída competência para a elaboração de resoluções que possibilitem a execução das previsões normativas expressas no Código Eleitoral, por força do seu art. 23, inciso IX.

Sob o pretenso exercício desse poder regulamentar, o TSE expediu a Resolução nº 21.702/04, mediante a qual estabeleceu que, para as eleições municipais daquele ano, seriam utilizados os critérios de fixação do número de vereadores a serem eleitos por cada município segundo os critérios estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 197.917.

Ocorre que, na forma como será apresentado durante ao longo do presente trabalho, essa resolução extrapolou os limites previstos em lei para o poder regulamentar do TSE, tendo em vista que pretendeu dar efeitos erga omnes a uma decisão proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade e inovou no ordenamento jurídico, na medida em que impôs a aplicação de norma diversa daquela elaborada pelo legislador constitucional.

Nesse diapasão a presente obra pretende analisar a natureza jurídica do poder regulamentar do TSE, bem como os limites do seu exercício, a fim de avaliar a legitimidade jurídica e democrática da Resolução nº 21.702/04, considerando o princípio da tripartição dos poderes, a ordem democrática e o risco de judicialização da política.

Por fim, sob os auspícios das conclusões alcançadas depois da análise dos pontos anteriormente mencionados, questiona-se a possibilidade de, após a elaboração da EC 58/2009, que alterou as normas referentes aos limites de escolha do número de vereadores a serem eleitos por cada município, o TSE poder elaborar uma nova resolução, visando intervir na autonomia dada à Lei Orgânica dos Municípios para a escolha desse número


1-O PODER REGULAMENTAR DO TSE, A RESOLUÇÃO Nº 21.702/04 E A EMENDA CONSTITUCIONAL 58/2009

No direito eleitoral, as resoluções exercem postura quase que sem precedentes em outros ramos do ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que se tratam de normas expedidas pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE - com hierarquia de lei federal, cuja função é regulamentar o Código Eleitoral.

A previsão legal para a elaboração desse tipo de norma está exposta no artigo 23, inciso IX, do Código Eleitoral, que estabelece as competências privativas do TSE, dentre as quais está a possibilidade de expedir as instruções que julgar convenientes à execução do Código, in verbis:

Art. 23 - Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior:

[....]

IX - expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código;

Destaque-se, portanto, a amplitude dada pela lei ao âmbito de atuação dessa espécie normativa, bem como a peculiaridade da competência regulamentar conferida ao TSE, tendo em vista que essa é função típica e primordial do Poder Legislativo.

Com base nesse poder normativo, o TSE editou a Resolução Nº. 21.702/04, regulamentando o artigo 29 da Constituição Federal, que tratava do número de vereadores nas Câmaras Municipais

No julgamento do Recurso Extraordinário nº. 197.917, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão que preteriu o jurídico à política, julgou inconstitucional o artigo da Lei Orgânica de Mira Estrela, que estabelecia em 11 o número de vereadores daquele município, alegando certa desproporcionalidade, ante o determinado pela Carta Magna, na forma como será melhor exposto adiante.

Registre-se que referida decisão se deu em sede de controle difuso de constitucionalidade, produzindo, por essa razão, efeitos somente entre as partes litigantes. Não obstante, com esse precedente do Supremo Tribunal Federal, o TSE, alegando uso de sua competência privativa, editou a resolução nº 21.702/04, por meio da qual regulamentou o que o artigo 29 da Constituição Federal havia deixado a cargo das Leis Orgânicas dos Municípios, nos seguintes termos:

[....] nas eleições municipais deste ano, a fixação do número de vereadores a eleger observará os critérios declarados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 197.917 (art. 1º), sendo que até 1º de junho de 2004, o Tribunal Superior Eleitoral verificará a adequação da legislação de cada município ao disposto no art. 1º e, na omissão ou desconformidade dela, determinará o número de vereadores a eleger (art. 2º).

Após tais considerações, chegamos ao ponto principal do presente trabalho: saber se o TSE, ao editar a Resolução no. 21.702/04, agiu nos ditames e limites da competência que lhe confere o Código Eleitoral.

Conforme será exposto, esse limite foi flagrantemente extrapolado, uma vez que muitas são as críticas passíveis de serem atribuídas à malsinada resolução, principalmente no que se refere ao princípio da separação de poderes, que tem status de cláusula pétrea.

É que esta produção normativa ganhou atributos e vem funcionando como se tivesse a mesma força de uma emenda à Constituição, o que demonstra a inversão da ordem democrática, em razão da usurpação de funções inerentes aos Poderes Políticos.

O que ocorreu, na prática, foi que o TSE, por meio de uma Resolução, deu eficácia erga omnes a uma decisão produzida em sede de controle incidental de constitucionalidade, efeito este que, no caso em questão, só poderia ter sido produzido em uma decisão proferida em sede de controle de constitucionalidade em tese, representado por uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com base no art. 102, §1º da Constituição Federal.

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

[....]

§ 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei

Maneira outra de ser dado efeito erga omnes à decisão da Suprema Corte seria o Senado Federal, no uso de sua discricionariedade política, com base no artigo 52, inciso X da CF/88, ampliar os efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade, o que de fato não ocorreu.

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

[....]

X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

Interessante fazer uma breve digressão para demonstrar quão política e casuística foram tanto a resolução editada pelo TSE, quanto a declaração de sua constitucionalidade, tendo em vista que, em outras oportunidades, o próprio Tribunal Superior Eleitoral, assim tinha se manifestado:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

CÂMARA MUNICIPAL: NÚMERO DE VEREADORES: AUTONOMIA DA LEI ORGÂNICA DE CADA MUNICÍPIO. A Constituição federal reservou à autonomia de cada município a fixação do número dos seus vereadores, desde que contida entre o limite máximo e o limite mínimo correspondentes à faixa populacional respectiva. Se da própria Constituição não é possível extrair outro critério aritmético de que resultasse a predeterminação de um número certo de vereadores para cada município, não há no sistema constitucional vigente, instância legislativa ou judiciária que a possa ocupar." (RMS 1.945, Pertence, DJ de 11/06/93).

Nessa mesma linha de coerência, permaneceu o Ministro Marco Aurélio de Melo, quando se manifestou no AgRgRMS nº. 341/RS, quando, após um breve relato da decisão do STF, no RE 197.917, assim indagou:

[....] o Tribunal Superior Eleitoral baixou resolução regulamentando, como previsto, quanto à competência, o Código Eleitoral? Não. Baixou resolução regulamentando a Carta da República. E poderia fazê-lo? A resposta é desenganadamente negativa.

Diante do imbróglio criado, notadamente em função da usurpação de competência empreendida pelo TSE, o Congresso Nacional aprovou alteração ao texto constitucional, emenda Constitucional 58/2009, que definiu novos parâmetros para a composição das Casas Legislativas municipais, criando 24 faixas para enquadramento. Vejamos:

Art. 1º O inciso IV do caput do art. 29 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 29. ...

IV - para a composição das Câmaras Municipais, será observado o limite máximo de:

a) 9 (nove) Vereadores, nos Municípios de até 15.000 (quinze mil) habitantes;

b) 11 (onze) Vereadores, nos Municípios de mais de 15.000 (quinze mil) habitantes e de até 30.000 (trinta mil) habitantes;

c) 13 (treze) Vereadores, nos Municípios com mais de 30.000 (trinta mil) habitantes e de até 50.000 (cinquenta mil) habitantes;

d) 15 (quinze) Vereadores, nos Municípios de mais de 50.000 (cinquenta mil) habitantes e de até 80.000 (oitenta mil) habitantes;

e) 17 (dezessete) Vereadores, nos Municípios de mais de 80.000 (oitenta mil) habitantes e de até 120.000 (cento e vinte mil) habitantes;

f) 19 (dezenove) Vereadores, nos Municípios de mais de 120.000 (cento e vinte mil) habitantes e de até 160.000 (cento sessenta mil) habitantes;

g) 21 (vinte e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 160.000 (cento e sessenta mil) habitantes e de até 300.000 (trezentos mil) habitantes;

h) 23 (vinte e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 300.000 (trezentos mil) habitantes e de até 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil) habitantes;

i) 25 (vinte e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil) habitantes e de até 600.000 (seiscentos mil) habitantes;

j) 27 (vinte e sete) Vereadores, nos Municípios de mais de 600.000 (seiscentos mil) habitantes e de até 750.000 (setecentos cinquenta mil) habitantes;

k) 29 (vinte e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de 750.000 (setecentos e cinquenta mil) habitantes e de até 900.000 (novecentos mil) habitantes;

l) 31 (trinta e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 900.000 (novecentos mil) habitantes e de até 1.050.000 (um milhão e cinquenta mil) habitantes;

m) 33 (trinta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.050.000 (um milhão e cinquenta mil) habitantes e de até 1.200.000 (um milhão e duzentos mil) habitantes;

n) 35 (trinta e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.200.000 (um milhão e duzentos mil) habitantes e de até 1.350.000 (um milhão e trezentos e cinquenta mil) habitantes;

o) 37 (trinta e sete) Vereadores, nos Municípios de 1.350.000 (um milhão e trezentos e cinquenta mil) habitantes e de até 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes;

p) 39 (trinta e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes e de até 1.800.000 (um milhão e oitocentos mil) habitantes;

q) 41 (quarenta e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.800.000 (um milhão e oitocentos mil) habitantes e de até 2.400.000 (dois milhões e quatrocentos mil) habitantes;

r) 43 (quarenta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 2.400.000 (dois milhões e quatrocentos mil) habitantes e de até 3.000.000 (três milhões) de habitantes;

s) 45 (quarenta e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 3.000.000 (três milhões) de habitantes e de até 4.000.000 (quatro milhões) de habitantes;

t) 47 (quarenta e sete) Vereadores, nos Municípios de mais de 4.000.000 (quatro milhões) de habitantes e de até 5.000.000 (cinco milhões) de habitantes;

u) 49 (quarenta e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de 5.000.000 (cinco milhões) de habitantes e de até 6.000.000 (seis milhões) de habitantes;

v) 51 (cinquenta e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 6.000.000 (seis milhões) de habitantes e de até 7.000.000 (sete milhões) de habitantes;

Municípios de mais de 7.000.000 (sete milhões) de habitantes e de até 8.000.000 (oito milhões) de habitantes; e

x) 55 (cinquenta e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 8.000.000 (oito milhões) de habitantes;

...................................................................................... "(NR)

w) 53 (cinquenta e três) Vereadores, nos

Curioso anotar que referida Emenda Constitucional trouxe inovações, tais como as dispostas em seu artigo 3º, que: a) deu efeito retroativo às eleições de 2008; b) fixou apenas o parâmetro máximo do número de vereadores, substituindo os intervalos do texto original e autorizando o legislador municipal a fixar o número de vereadores por Câmara Municipal, inclusive abaixo de 9 (nove); c) retirou a expressão proporcionalidade do caput do artigo.

A atribuição de efeitos retroativos as eleições de 2008, em evidente casuísmo e afronta aos princípios da anualidade eleitoral e segurança jurídica foi prontamente afastado pelo STF, conforme decidido na ADIN nº 4307, senão vejamos:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 58/2009. ALTERAÇÃO NA COMPOSIÇÃO DOS LIMITES MÁXIMOS DAS CÂMARAS MUNICIPAIS. ART. 29, INC. IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RETROAÇÃO DE EFEITOS À ELEIÇÃO DE 2008 (ART. 3º, INC. I). POSSE DE VEREADORES. VEDADA APLICAÇÃO DA REGRA À ELEIÇÃO QUE OCORRA ATÉ UM ANO APÓS O INÍCIO DE SUA VIGÊNCIA: ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA, COM EFEITOS 'EX TUNC', PARA SUSTAR OS EFEITOS DO INCISO I DO ART. 3º DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 58, DE 23.9.2009, ATÉ O JULGAMENTO DE MÉRITO DA PRESENTE AÇÃO. 1. Cabimento de ação direta de inconstitucionalidade para questionar norma constante de Emenda Constitucional. Precedentes. 2. Norma que determina a retroação dos efeitos das regras constitucionais de composição das Câmaras Municipais em pleito ocorrido e encerrado afronta a garantia do pleno exercício da cidadania popular (arts. 1º, parágrafo único e 14 da Constituição) e o princípio da segurança jurídica. 3. Os eleitos pelos cidadãos foram diplomados pela justiça eleitoral até 18.12.2009 e tomaram Posse em 2009. Posse de suplentes para legislatura em curso, em relação a eleição finda e acabada, descumpre o princípio democrático da soberania popular. 4. Impossibilidade de compatibilizar a posse do suplente não eleito pelo sufrágio secreto e universal: ato que caracteriza verdadeira nomeação e não eleição. O voto é instrumento da democracia construída pelo cidadão: impossibilidade de afronta a essa expressão da liberdade de manifestação. 5. A aplicação da regra questionada importaria vereadores com mandatos diferentes o que afrontaria o processo político juridicamente perfeito. 6. Medida cautelar concedida referendada. (ADI 4307 REF-MC, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 11/11/2009, DJe-040 DIVULG 04-03-2010 PUBLIC 05-03-2010 EMENT VOL-02392-01 PP-00135 RTJ VOL-00213- PP-00460 RSJADV abr., 2010, p. 30-46)

As outras duas alterações feitas serviram para fortalecer a argumentação de que a competência para fixação do número de edis é exclusiva da Lei Orgânica, que deve encontrar limite apenas no texto constitucional, devendo ater-se às peculiaridades locais.

A fixação apenas de parâmetro máximo deu mais poder à Lei Orgânica Municipal – LOM -, pois, como dito, possibilitou e autorizou o legislador municipal a fixar o número de vereadores, inclusive abaixo de 9 (nove) por Câmara Municipal.

Quanto à retirada da palavra proporcionalidade reforçou o argumento de que para a composição dos legislativos municipais não deve ser levado em conta somente o número de habitantes do município, mas também fatores geográficos, históricos, dentre outros, deixando para que a realidade local seja alvo de análise.

Comparando o texto pretérito com o atual, vê-se o quão desnecessária e indevida foi a atuação do Poder Judiciário nesse episódio, tanto do TSE ao editar a resolução, quanto do STF ao declará-la constitucional, uma vez que isso serviu apenas para fomentar uma produção legislativa que em nada alterou os fundamentos expressos pelo texto anterior ao da EC 58/2009.

Ou seja, a nova produção legislativa repeliu os fundamentos das malfadadas decisões judiciais e reconheceu a impossibilidade de fixação da quantidade de edis por instrumento diverso da LOM, observados os limites impostos pela Constituição.

A grande expectativa que resta é saber se após a produção legislativa de alteração do texto constitucional, o TSE poderá interferir através de Resolução na autonomia conferida pela Constituição, através de seu núcleo rígido, à LOM. No entanto, após as considerações declinadas, constata-se a completa impossibilidade de edição de nova Resolução visando interferir na fixação do número de vereadores de cada município, sob pena daquele Tribunal extrapolar seu âmbito de atuação e ferir a tripartição dos poderes, na forma como será exposto a seguir.


2- A AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE LEGISLATIVA DO TSE

Há tempos, o Direito deixou de ser visto como mero instrumento de regulação social e passou a ser entendido como meio essencial para a edificação econômica, política e social do País.

Esse ideário ganhou mais força na medida em que a sociedade passou a exigir a efetivação prática dos direitos fundamentais positivados pela Constituição Federal e que, por razões que vão desde omissões normativas até decisões de cunho meramente político, não têm sido assegurados pelos Poderes que, naturalmente, seriam responsáveis por essas tarefas.

Diante dessa realidade, o Poder Judiciário passou a atuar de maneira a concretizar os direitos fundamentais reclamados pelos cidadãos e a solucionar questões sensíveis e que, tradicionalmente, não faziam parte de suas funções, como as referentes à implementação de políticas públicas pelo Estado.

No entanto, para isso, os julgadores, muitas vezes, não se restringem à mera aplicação das normas elaboradas pelo Poder Legislativo e realizam uma interpretação mais expansiva da Constituição, buscando superar os limites fáticos impostos por uma atuação inerte ou insuficiente dos Poderes politicamente instituídos.

Contudo, essa atuação mais ativa dos juízes, em muitas ocasiões, colide com as limitações impostas pela Democracia representativa, tendo em vista que a escolha dos membros do Poder Judiciário não está submetida à aprovação popular.

Essa realidade contribuiu para o surgimento de uma conduta ativista por parte dos membros do Poder Judiciário, cuja legitimidade democrática é amplamente questionável, em razão, dentre outros fatores, do risco de politização da Justiça.

Tate e Vallinder apud Maciel e Koerner (2002, online) explicam que a Politização da Justiça e a Judicialização da Política são expressões correlatas que se referem ao fenômeno, desencadeado no século XX, de expansão da atuação do Poder Judiciário no sentido de usar o processo como meio de resolução de questões da seara política.

No entanto, os autores ressaltam que:

Se na idéia da política judicializada estão em evidência modelos diferenciais de decisão, a noção de politização da justiça destaca os valores e preferências políticas dos atores judiciais como condição e efeito da expansão do poder das Cortes. (Maciel e Koerner, 2002, online)

Complementando essa ideia, nos Anais do I Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito, a judicialização da política foi definida da seguinte forma:

A judicialização é um fenômeno bastante complexo e possui diferentes dimensões. De um ponto de vista institucional, a judicialização da política define-se como um processo de transferência decisória dos Poderes Executivo e Legislativo para os magistrados e tribunais, que passam, dentre outros temas controversos, a revisar e implementar políticas públicas e rever as regras do jogo democrático.

Note-se, portanto, que a judicialização da política fez com que questões de extrema relevância social, econômica, política e, até mesmo, moral passassem a ser resolvidas, em caráter definitivo, pelo Poder Judiciário, em detrimento da atuação dos Poderes Políticos, que tradicionalmente resolveriam essas questões.

Barroso (2010) explica que esse fenômeno é conseqüência do fortalecimento institucional do Poder Judiciário e da descrença popular na atuação da política majoritária, ante a ineficiência funcional dos integrantes dos Poderes Legislativo e Executivo, em diversos países do mundo, que, muitas vezes, têm preferido que o Judiciário resolva as questões mais polêmicas ou que tenham acentuado grau de divergência moral.

Nesse mesmo sentido é a lição do Ilustre Professor Martônio Mont’Alverne:

Outro bom indicador, para fins de discussão a respeito da ausência de uma cultura democrática no Poder Judiciário, é o da judicialização da política. Se se percebe, cada vez mais, que muito dos embates políticos da sociedade se deslocam para a arena judiciária, abandonando o campo da política e dos políticos, tal episódio pode ser denunciador de diversos aspectos. O primeiro deles, sem dúvida, pode ser traduzido num descrédito dos políticos, mas não da política, na medida em que a natureza do conflito jamais deixará de ser política, pelo fato de vir a ser resolvida pelo Poder Judiciário. O segundo deles é que o Poder Judiciário passaria a ser visto como depositário das esperanças da realização constitucional, articulação a que, Executivo e Legislativo, têm sistematicamente se recusado a fazer. De uma outra vertente, poder-se-ia ainda dizer, num terceiro ponto que, nesta condição – mais que nunca – a presença da cultura democrática no Judiciário, quando este é chamado a interferir nas questões políticas, se mostra muito mais importante. Não estou tão certo quanto à procedência do primeiro aspecto. O fato de que a política tenha se judicializado não pode levar à conseqüência inevitável de descrença dos políticos.

[....]

De forma semelhante, não creio que a corrida ao Poder Judiciário, para a solução de conflitos políticos, possa vir a ser compreendida como "ampliação da legitimidade" do Poder Judiciário. Em questões de constitucionalidade, a "ampliação da legitimidade" do Supremo Tribunal Federal tem-se mostrado fundamental para o encorajamento da judicialização da política. (online, 2005, p. 09-10)

Essa atuação mais expansiva do Poder Judiciário, muitas vezes, colide com o princípio da tripartição dos poderes e da ordem democrática, desconsiderando que a existência dos três Poderes independentes e harmônicos, nos moldes atualmente aceitos, pressupõe o controle mútuo das instituições, de modo a proporcionar o exercício saudável das funções estatais, respeitando o interesse público e os valores democráticos.

Desse modo, permitir a obtenção exagerada de poder pelo Judiciário põe em risco a ordem democrática, tendo em vista que não é possível falar em um Estado Democrático de Direito em que não haja exercício pleno de atividade política.

Nesse diapasão, conclui-se que a divisão das funções estatais é essencial para o alcance do interesse público e para a segurança das relações sociais, uma vez que não seria adequado para a ordem democrática que todas as questões fossem decididas pelo Poder Judiciário, tendo em vista que, conforme alertado por Barroso (2010), o juiz é preparado para realizar a justiça no caso concreto, não possuindo, em regra, condições de avaliar o impacto que sua decisão irá gerar para o restante da sociedade.

Além disso, as discussões limitadas ao ambiente dos tribunais poderiam gerar uma situação de exclusão da maior parte da população, ante a ausência de condições de compreender e intervir nos debates jurídicos, ocasionando uma verdadeira situação de inação popular, que se limitaria a esperar as decisões tomadas pelo Poder Judiciário.

Por outro lado, seria transferida para o Poder Judiciário uma carga excessiva de politização, afastando, assim, a razão e a imparcialidade que devem governar suas decisões, dando espaço para paixões e ideologias, muitas vezes, danosas para o cumprimento da atividade jurisdicional.

Barroso, alerta que "a jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes". (2010, p. 16).

Por tais razões, muitos defendem que a análise das questões inerentes à vida política do País seja exclusiva dos membros dos Poderes Legislativo e Executivo, tendo em vista que eles são eleitos como representantes do povo, por meio do voto, razão pela qual seriam os únicos capazes de externar a vontade soberana da população.

O que se teme é que a banalização das decisões ativistas possam gerar uma espécie de Ditadura Judicial, que usurpe a atividade inerente aos outros Poderes e não proporcione o devido espaço para a expressão da vontade popular.

Portanto, apesar da constante necessidade de interpretação dos princípios que norteiam o ordenamento jurídico, os Tribunais devem evitar decisões que carreguem acentuado caráter normativo, ultrapassando, assim, sua esfera de atuação.

Nesse contexto, compreende-se que as razões que permitem a constatação de que o TSE extrapolou sua competência ao editar a Resolução nº 21.702/04, uma vez que, em verdade, ele não se limitou a regular os dispositivos incertos no Código Eleitoral necessários para a fiel execução da lei, mas, sim, invadiu a área de competência do Poder Legislativo e atuou como verdadeiro reformador da Constituição.

O poder regulamentar do TSE, de nenhum modo, possibilita que ele atue como legislador, uma vez que a sua competência se restringe à elaboração de resoluções com o escopo de viabilizar o exercício de direitos legalmente assegurados, não podendo, portanto, inovar no ordenamento jurídico, função esta inerente ao Poder Legislativo.

Dessa forma, não poderia o regulamento do TSE revestir-se de todas as características típicas de uma norma primária, uma vez que sua função regulamentar se limita na edição de atos normativos genéricos sobre matéria eleitoral, visando a correta aplicação da lei, não podendo desfazer a obra concreta do legislador constitucional.

Autorizar a edição de normas primárias pelos órgãos jurisdicionais, em completa desatenção à obra do legislador, não apenas é um atentado ao princípio da tripartição dos poderes, como também representa um risco injustificável de corrosão da imparcialidade exigida no exercício da função jurisdicional.

De tal modo, resta constatado que não cabia ao TSE alterar os critérios de fixação do número de vereadores por município, haja vista que essa inovação normativa deveria ser elaborada exclusivamente pelo legislador devidamente legitimado pelo voto popular.

Conforme lição de Pinto:

A Justiça Eleitoral não tem competência para estabelecer o número de Vereadores nas Câmaras Municipais. Sua competência para essa fixação restringiu-se ao ano de 1988, nos termos do §4º do art. 5º do Ato das Disposições Transitórias.

[....]

A partir de 1988, portanto, coube à lei orgânica de cada Município estabelecer o respectivo número de Vereadores, sempre levando em consideração a seguinte proporcionalidade estabelecida no art. 29, IV, da Lei Maior. (2008, p. 55)

Além disso, comprovou-se a total dispensabilidade da atuação dos órgãos jurisdicionais nesse caso, uma vez que, após o exercício do poder de reforma constitucional, não foi embutido no texto constitucional os valores argüidos pelos Tribunais, uma vez que o legislador constitucional fixou apenas o número máximo de vereadores e retirou do texto a expressão proporcionalidade, dando a atender que o legislador municipal tem liberdade para escolher qualquer número de vereadores limitados apenas no máximo.

Sobre o autor
Audic Cavalcante Mota Dias

Advogado,pós graduado em Direito e Processo tributário pela UNIFOR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Audic Cavalcante Mota. Os limites constitucionais do poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral.: A Resolução nº 21.702/04, a Emenda Constitucional nº 58/09 e a controvérsia da fixação do número de vereadores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2816, 18 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18705. Acesso em: 23 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!