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Art. 226: o campo minado da interpretação constitucionalizada do direito de família

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Agenda 08/04/2011 às 15:53

8. NÃO PRECISAMOS DE BRUXAS, ogres e monstros para dar trabalho ao amor. "O inferno são os outros", diria Sartre. Talvez! Na verdade, "o dinheiro é o meio adverso em que o amor se move" (KIERKEGAARD, 1994). É o que joga "os outros" contra nós. E nesse meio adverso o jogo é duro e sujo, e se somos amados a inveja nos espreita, arma suas armadilhas e contrata um "Dom Juan". Então, encontramos no "Direito das Famílias", de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, algo que parece querer amenizar o jogo, situando-se fora dele, – o que me parece impossível, – o seguinte parágrafo: "A nova visão de família afirma, pois "um relacionamento baseado na comunicação emocional, em que as recompensas derivadas de tal comunicação são a principal base para a continuação do relacionamento", na fina percepção de Anthony Giddens" (FARIAS & ROSENVALD, 2010). Estanco de perplexidade. É dar uma dimensão axiológica e uma eficácia heurística muito grande a uma boa "cantada" e a bajulagem que a cerca. É considerar que a reificação seja a base para a arte da conquista. Pelo que sei a afirmativa de Giddens está colocada no contexto crítico de um mundo extremamente mediático e em completo descontrole: o processo de globalização e o que ele "está fazendo de nós". Mas, devo frisar, não conheço (não li ou se li não me recordo) o contexto específico da citação de Giddens. Mas, se Giddens por "comunicação emocional" não se refere à fabricação capitalista dos desejos, ou seja, por exemplo, a "comunicação emocional" transmitida (a) pelo cinismo das mídias, (b) pela moda, (c) pelo consumo, (d) pelo espetáculo, (e) pelas religiões e o jogo duro das devoções etc., ou, (f) ao fato de que novamente a crueldade e a alegria com a destruição, (g) com o tormento de outrem e (h) com as aventuras suicidas regrada a sexo, drogas e rock-and-roll, (i) o prazer obtido pelo sexo, drogas e divertimento, (j) o gozo da transgressão e da violência pura e (l) desagregação familiar e suas conseqüências etc., ou então, (m) a "comunicação emocional" forçada pelo fenômeno da banalidade do mal: medo, angústia, desespero, melancolia etc., (n) da ausência de pensamento, logo, vazio, indiferença, incapacidade de amar etc. (o) na forma de violência gratuita e criminosa, (o.1) pra quebrar o tédio, (o.2) seguir a tribo etc. (o.3) afirmar identidade... É difícil saber de que "comunicação emocional" Giddens está, ou melhor, Farias & Rosenvald estão falando sem estar bem situado. E se estão falando de outra coisa, estão atolados em um profundo equívoco, numa inexplicável insensatez. Ora, toda e qualquer "comunicação emocional", hoje, está (1) profundamente imbricada com a busca do prazer ou da felicidade pessoal; (2) com a adrenalina que os esportes radicais e o medo das ruas (dado a violência urbana) liberam em profusão; (3) com o uso das argúcias dos desejos para não dissipar o gosto das aventuras emocionais inconseqüentes e levianas; (4) com o sentir no corpo e no espírito a força incontrolável do vício, do gozo e a volúpia de satisfazê-los etc.; e, finalmente, (5) no experimentar a superfluidade da vida através da vida bandida etc., (6) no medo da morte sempre eminente, (7) nos valores da tribo a que faz parte e segue e (8) na desmobilização política que, como observa Comte-Sponville: "Contra a miséria o quê? Trinta anos atrás, uns teriam respondido; a Revolução; outros o crescimento, o progresso, a participação". Atualmente, respondem: "Contra a miséria o quê? Os restaurantes do Coração" (COMTE-SPONVILLE, 2005). (Informa-nos o tradutor, "Restaurantes do coração: Organização fundada em 1985 pelo humorista Colouche, para dar alimento gratuito aos pobres e excluídos". – E sabemos que algo semelhante no Brasil seria o programa "Fome Zero", copiado pelo "ex-sociólogo" Betinho). Em outras palavras, atualmente algoz e vítima são duas formas determinantes de "comunicação emocionais", estranhamente semelhantes, que o processo de globalização capitalista e ultraliberal oferecem aos espíritos a toque de controle, repressão, alienação e prazer.


9. TUDO ABSOLUTAMENTE DIFERENTE do amor-paixão romântico, da ética ou da estética que inaugura o matrimônio... Para os que dizem: "Cada vez mais a idéia de família se afasta da estrutura do casamento" (DIAS, 2006). Kierkegaard diz: "O casamento longe de tirar a beleza do amor, consagra-o, enobrece-o e, do reflexo efêmero do qual é um momento, leva-o à transparência e a claridade que possui quando se funda na eternidade" (KIERKEGAARD, 1994). E não é por outra razão que o Art. 256 da Constituição Federal reza em seu §3º: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". Ao contrário do que precisa a Desembargadora do Rio Grande do Sul, constitucionalmente, a idéia de Família deve, sempre, aproximar-se, sobrepor-se e coincidir com a "estrutura do casamento", ou melhor, com a estrutura legal que consagra laços por sua analogia com a ordem moral e que o enobrece o casal e os salvam da pura sensualidade. Se a verdade é que a idéia de família se afasta do casamento, podemos concluir que não existe "comunicação emocional" verdadeira na família objeto do Direito das Famílias; falta-lhe o leque abrangente da magia social do amor romântico que é sua verdadeira gênese conceitual essencial, como síntese de um longo processo histórico de desenvolvimento de nossa sensibilidade e consciência. Seu conceito de "Família" está aquém (ou mesmo além) de tal necessidade metafísica, nunca em seu lugar, e a liquidez de sua concepção a faz ocupar qualquer forma, até as mais absurdas (por isso fala tanto em afeto), e, portanto, não tem valor definitivo e determinante, logo, inexistem as bases para o diálogo e a responsabilidade moral ou ética que a eternidade exige. O modo de ser da família do Direito das Famílias é consumista. Vale como admoestação, as seguintes palavras de Zygmunt Baumann, sobre o atual modo de amar (e constituir famílias), que ele qualifica "modo consumista": "O "modo consumista" requer que a satisfação precise ser, deva ser, seja de qualquer forma instantânea, enquanto o valor exclusivo, a única "utilidade", dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação. Uma vez interrompida a satisfação (em função do desgaste dos objetos, de sua familiaridade excessiva e cada vez mais monótona ou porque substitutos menos familiares, não testados, e assim mais estimulantes, estejam disponíveis), não há motivo para entulhar a casa com esses objetos inúteis" (BAUMANN, 2005). Evidentemente que, no caso do Direito das Famílias "esses objetos inúteis" são os próprios membros desenraizados da concepção de família patriarcal (por mais absurdo que pareça) e por isso problemático; precisamente aqueles que de alguma forma, por acaso e inexplicavelmente, não atenda (ou atenda insuficientemente) as vicissitudes dos desejos, fantasias ou "sonhos de consumo" dos outros membros e fracasse nos oferecimentos das realizações econômicas, são tratados como entulhos inúteis e devem ser humilhados (por questão de uma afirmação do amor de si) e descartados. Em outras palavras, não se constrói uma Família com o "modo consumista" de amar. Ao contrário, dissolvesse-a no ar. Por isso temo que agora, talvez, para mim seja tarde ou, pior, se torne tarde demais para amar de novo. Não porque o amor, como observava Roland Barthes, seja hoje "um assunto mais obsceno do que o sexo". Para Comte-Sponville: "Mais incômodo. Mais íntimo. Mais difícil de dizer, de mostrar, de pensar" (COMTE-SPONVILLE, 1998). Mas porque, sempre preciso de muito tempo para tudo, inclusive para amar de novo, e por mais tempo que me seja dado, jamais serei capaz de atender os reclames do Plim-Plim. Há muita coisa em jogo, e tenho os meus fantasmas, ainda minhas feridas e minhas esperas intermináveis e angustiantes por alcançar respostas e um livro a escrever urgentemente e, no entanto, todas as páginas ainda em branco... Encontro-me em estado de desesperante suspensão teleológica. Sou dado, portanto, a pedir tempo ao tempo. Sinto-me como um caracol que tem que percorrer mil e um quilômetros em apenas um dia numa estrada perigosa e cheia de obstáculos. Aí! Ufa! Não tenho como escapar da sina de ser julgado um fracassado. Completo sessenta e um anos, e meu coração ainda se constrange e se retrai tímido e inseguro (como um fantasma assustado por um fantasma maior e que não consegue mais assustar por tudo ter ficado assim tão fantasmagórico), ferido por um divórcio ainda não cicatrizado, e que por isso apreende criticamente que a necessidade, para o Direito das Famílias, de "um espectro mais abrangente" para as formações familiares (DIAS, 2006), significa, pura e simplesmente, fantasmas cada vez mais assustadores em todos os lugares da vida privada, e que, por isso, se afasta para a soledade afirmando o direito poético de dizer que doeu com força. Impossível olvidar!

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10. É QUE, SEGUNDO UMA OBSERVAÇÃO que encontrei em Roger Garaudy: "Aprender a ser jovem, é um longuíssimo aprendizado". E como o próprio Garaudy: "Eu já ultrapassei o sessenta anos, e não creio ter ainda aí chegado inteiramente" (GARAUDY, 1975). O dia em que chegar, talvez possa esquecer. Mas por enquanto não, e de meu exílio, quero dizer de qualquer lugar, tenho olhado tudo assim, à distância, com uma profunda tristeza na memória e um desânimo terrível para tudo que não seja procrastinar a tarefa que eu mesmo me incumbi e determinei. Amanhã, quem sabe? Tudo é muito desesperador! Que seria de mim se não houver um amanhã? Diria Guimarães Rosa, é que, "a miúde, a gente adverte incertas saudades"... Chego a temer que esse "longuíssimo aprendizado" tenha por conseqüência a diminuição da majestade, da beleza, da solenidade, do reconhecimento e da realidade do desejo de amar e de viver. Mas amanhã, quem sabe? Enquanto isso, agora, muitas coisas me incomodam ou assustam de tão asininas enquanto leio o Manual de Direito das Famílias, desde a primeira linha, e, primeiramente a ignorância que revela possuir a autora da realidade história contemporânea. "O direito estatal é a mais eficaz técnica de organização da sociedade", afirma a professora Maria Berenice Dias... Que agora? Como agora? Por que agora? Impossível escapar a certeza de que os defensores do Direito das Famílias ignoram que, digamos, en passant, citando Gilberto Dupas: "As estratégias autônomas do capital visam minimizar a autonomia dos Estados-nação. Seus objetivos são atingidos por meio de três movimentos de fusão: do capital com o direito; do capital com o Estado; e da racionalidade econômica com a identidade pessoal. As estratégias de auto-suficiência do capital se confundem com a experiência mundial da neoliberalização do direito. Elas são incompatíveis com todo intervencionismo estatal" (DUPAS, 2005). Razão pela qual, digamos simplificando: o Direito das Famílias é patrimonialista, o Estado brasileiro é capitalista e, na esfera das identidades, por exemplo, a prostituta no status de atriz pornô, "modelo" ou "acompanhante" ganha uma identidade pessoal que purga sua consciência-infeliz. Estranho em mim, portanto, a sensação de que alguma inquietação teime em ser escondida na própria afirmativa da desembargadora Maria Berenice Dias; uma inquietação mais profunda e surda que a superfície de suas palavras, e que (por trás dessa proliferação atual dos medos promovida pela mídia) engloba, por assim dizer, todas as demais, e, como assinalou Luc Ferry, (em seu livro de título muito significativo por si só, "Família, amo vocês") com precisão, devo assinalar que tal inquietação em sua crueldade revela a presença "de uma nova forma de impotência pública, agora inerente à natureza da globalização", e que poria os juristas e "cidadãos das sociedades modernas – sem falar das outras, que nem têm voz nesse terreno – em uma situação de falta de controle sobre o andamento do mundo" (FERRY, 2008), cada qual na sua esfera. A verdade, parafraseando Ferry, é que ainda não percebemos, nos processos históricos regidos pelo Capital e pelo Estado e que abalam nossas vidas (e, aqui, devo destacar, principalmente, os que se relacionam com respeito ao Direito de Família), o que é novo e abre o futuro, e o que acaba por obscurecê-lo ou negá-lo. E não me resta coisa a fazer senão pensar isso o tempo todo: por que os prazeres entrevistos – conhecer as alegrias de um amor nascente, estar nos braços de uma bela mulher... – logo se apagam com os desprazeres aferentes às alegrias da conjugalidade e procriação? Tenho uma amarga e humilhante experiência disso! E Kierkegaard uma boa resposta: o amor-paixão romântico suporta facilmente "quatro atos de intrigas e contratempos, com a débil perspectiva de um himeneu no quinto", mas, corrige ele, "o defeito funesto dessas histórias é o terminar onde deveriam começar" (KIERKEGARRD, 1994). É bem depois do matrimônio, e não antes, que o amor apresenta as verdadeiras dificuldades em relação "à posse de seu objeto". Daí que o erro enfatiza Kierkegaard, é que "essa luta, essa dialética (do amor nascente) são puramente exteriores e que o amor, no final, continua tão abstrato como no princípio". A luta pelo amor deveria acontecer no interior do casamento, e não no exterior, para preservá-lo e não destruí-lo. Mas, na visão abstrata do casamento no "Direito das famílias" ocorre apenas no exterior (por isso fala tanto em afeto e não em moral ou ética e responsabilidade), porque seu fundamento é como assinalou Baumann, um "modo consumista" de ser, cuja essência é a "comunicação emocional" ultraliberal e a "arte de viver" religiosamente como ensinam todos os livros de auto-ajuda, as caricaturas da vida humana apresentadas nos púlpitos das igrejas e nas novelas e programas da TV e os blábláblá em torno de uma vida diferente, jamais serão inocentes...

Sobre a autora
Walter Aguiar Valadão

Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALADÃO, Walter Aguiar. Art. 226: o campo minado da interpretação constitucionalizada do direito de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2837, 8 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18857. Acesso em: 23 dez. 2024.

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