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A restituição de depósito de coisa fungível em instituição financeira falida.

Estudo de caso através da análise de um dos pedidos de restituição

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4 ANÁLISE E DISCUSSÃO

Não é difícil perceber, após as explanações colacionadas, que uma das principais questões derivadas da restituição aos correntistas dos depósitos bancários, em caso de falência da instituição bancária, gravita em torno do tema da igualdade entre indivíduos, credores da massa, sendo a isonomia o bem jurídico defendido pelo BACEN e rechaçado, topicamente, pela Massa Falida e pelo correntista. Ora, da consideração sobre a possibilidade da restituição em casos tais, credores quirografários tornam-se alheios às regras de igualdade e ordem para recebimento de créditos, não se submetendo ao concurso universal.

Indo além, existiu uma crença não provada nos autos, por parte do BACEN, de que não seriam suficientes os bens e direitos da massa falida, após a restituição aos correntistas, para saldar a dívida de credores privilegiados, entres os quais está habilitado. Daí justificou seu interesse econômico para contestar o pedido inicial de restituição. Mas, como registrado nos autos, as informações contábeis dão conta de que existiam fundos suficientes para todos os pagamentos, inclusive para satisfação do crédito do BACEN, mesmo após a restituição aos correntistas.

A este respeito cumpre observar, ainda, que pende ação judicial que busca a desconstituição do crédito da autarquia, na Justiça Federal, a qual foi julgada desfavoravelmente aos seus interesses em 1ª e 2ª instâncias, não havendo ainda seu trânsito em julgado, porém. Daí, concluímos novamente que talvez nem mesmo exista o crédito da autarquia, a amparar suas pretensões econômicas e seu interesse de agir, o que retira de suas pretensões o caráter exclusivamente material quanto ao bem da vida supostamente pretendido.

Então, como já afirmado, parece ter mais relevo o bem jurídico disputado, o princípio da igualdade, o qual permitiu o alinhamento das partes em duas posições jurídicas distintas, ou seja, (i) a interpretação das leis federais que definem o depósito bancário, sua natureza e as regras da restituição na falência, concluindo pela transferência de propriedade dos correntistas ao banco, negando a restituição e, corolário, garantindo a igualdade estrita entre credores quirografários; ou então, (ii) a interpretação que desqualifica o depósito bancário como negócio jurídico translativo da propriedade do dinheiro ao banco depositário, bem como a consideração da possibilidade de restituição destes valores se arrecadados em processo de falência, o que tornariam os valores dos correntistas intangíveis pelo concurso universal e alheios às regras de classificação dos créditos.

A despeito do dado sociológico e econômico, por outro lado, deparamo-nos com um hard case, pois, nos parece nítido, e como relatado, a solução que se construiu buscou resolver a seguinte questão: a natureza do contrato de depósito bancário, permitindo-se concluir se há ou não a transferência de propriedade dos recursos do correntista ao banco. Neste ponto, colacionamos alguns trechos das doutrinas trazidas pelas partes, de um lado:

Depósito Bancário – O depósito Bancário é a mais relevante das operações dos bancos. Por ele, põe-se à disposição do depositante a provisão, o fundo disponível a que se refere a lei sobre cheques. (...). O depósito bancário é depósito irregular, que é subespécie do contrato e não do mútuo. No depósito bancário, como em todo depósito irregular, o depositário tem o dever de restituir o tantundem, quando o exija o depositante, ainda que o contrato seja a prazo. (...). Ninguém pode deixar de ver a diferença entre o empréstimo de x feito ao banco e o depósito de x feito no mesmo banco. (...). No mútuo, a disponibilidade da coisa pelo depositário é essencial; no depósito irregular, inclusive no depósito bancário, a disponibilidade, pelo depositário há de ser tal que não exclua a disponibilidade pelo depositante: o depositário pode dispor, desde que assegure a disponibilidade pelo depositante. Ora, esse elemento é de guarda, de custódia, se bem que a organização e as operações bancárias permitam custodiar a despeito da fungibilidade do bem depositado e da sua disponibilidade técnica. (...). O depósito bancário, que permite a emissão de cheques, é o contrato de depósito irregular, pelo qual alguém dá ao banco, ou o banco considera entregue, quantia sobre a qual o depositante tem o poder de dispor, portanto – de atribuir a outrem o direito à provisão, ou parte dela. A disponibilidade pelo depositante coexiste com a disponibilidade pelo banco, mas passa-lhe a frente quando o depositante o entenda. Se o depositário tem a propriedade, é propriedade limitada pelo poder de dispor, que tem o depositante. Situação semelhante à do marido, que pode dispor dos bens móveis comuns, sem que se possa dizer que a mulher perdeu a propriedade. É bem exígua a propriedade que se transfere, retendo-se a disponibilidade (depositum regulare); porém não no é menos a da mulher casada quanto aos bens móveis de que o marido pode dispor. O direito depositado é dinheiro que se transferiu, retido o poder de dispor. De nenhum modo se poderia pensar em espécie de mútuo. O depositante pode dispor e dispõe, a despeito da entrega, sem ser em depósito simples; o depositário pode dispor e dispõe, a despeito de estar exposto ao ato de disposição por parte do depositante. Em relação a outros depósitos irregulares, o depósito bancário tem a característica – subjetiva – de ser feito com depositário profissional, que se dedica a tais operações em massa, o que lhe facilita a solução prática do problema técnico-econômico dos dois poderes à disposição. O banco tem o poder de disposição sobre x, x’, x’’; cada depositante, sobre x, ou sobre x’, ou sobre x’’; e modo que, se só dispõe de fração de x+x’+x’’, o seu poder de dispor dos que depositaram x+x’+x’’, pois que nem todos os depositantes dispõem simultaneamente. (...) Na dimensão econômica, o depositário banqueiro, pois tem consigo o depósito, dele dispõe, com preterição eventual do depositante; na dimensão jurídica, o poder de dispor que tem o depositário, passa a frente. [03]

Já no outro posicionamento, os argumentos e doutrina apresentados são também de extrema monta, nesse sentido: "Eis ai caso típico de depósito bancário chamado de irregular e que tem por objetivo o uso da coisa, pelo depositário, e a restituição do equivalente", ou seja, "o depositário adquire assim a propriedade da coisa, de que pode, pois, dispor jure domine, com a obrigação apenas de restituir o equivalente." [04] Também nesse mesmo sentido a opinião de Fran Martins que define contrato bancário como o "contrato pelo qual alguém entrega em propriedade valores monetários ao banco para que este restitua a importância equivalente no prazo e nas condições avençadas". [05]

Este é, sem dúvida, um aspecto que merece crítica, visto que o objetivo das decisões judiciais é aplicar normas jurídicas e não definir a natureza jurídica de um contrato, objetivo alheio à hermenêutica destinada a aplicação do direito. Em verdade, neste aspecto, e pelo rigoroso tratamento lógico, preferimos a lição de Kelsen, que classifica os objetos jurídicos facilitando sua utilização no plano discursivo. Segundo as lições do jurista de Viena hauridas por Fábio Ulhoa Coelho, que assim dispôs:

Uma das distinções mais importantes da teoria kelseniana diz respeito à norma jurídica (Rechsnorm), de um lado, e à proposição jurídica (Rechtssatz), de outro. (...) Com tais categorias, pretendeu-se acentuar a diferença entre a atividade de aplicação do direito e a desenvolvida pelo cientista jurídico. (...) O pensamento Kelseniano rejeita firmemente a possibilidade de relacionamento lógico entre as normas jurídicas, que são enunciados de dever ser com sentido prescritivo. Não cabe aplicar os princípios lógicos, porque suas funções são de validade/invalidade e não de veracidade (verdadeira/falsa). As proposições jurídicas, juízos sobre o mundo do dever ser com sentido descritivo, são verdadeiras ou falsas, e, portanto, submetem-se aos princípios do raciocínio lógico. Assim, as normas jurídicas não se podem contradizer senão de modo reflexivo, isto é, através da contradição entre as proposições jurídicas correspondentes. [06]

Com tal norte, entendemos que a crítica sobre tudo o que ocorreu no caso relatado deve redundar em uma proposição jurídica, que evite argumentos alheios ao direito ou impertinentes que dificultem a busca da mais razoável conclusão. Nesse sentido é o que dispõe Celso Antonio Bandeira de Mello:

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Se o que importa ao jurista é determinar em todas as hipóteses concretas o sistema de princípios e regras aplicáveis – quer seja a lei clara, obscura ou omissa -, todos os conceitos e categorias que formule se justificam tão-só na medida em que através deles aprisione logicamente uma determinada unidade orgânica, sistemática, de normas e princípios. A razão de ser destes conceitos é precisamente captar uma parcela de regras jurídicas e postulados que se articulam de maneira a formar uma individualidade. O trabalho teórico do jurista, construído, como é, à vista de aplicações práticas, resume-se e explica-se na tentativa de descobrir a rationale que congrega e unifica um complexo de cânones e normas. (...) Não há como formular adequadamente um conceito jurídico fora deste rigor metodológico. Com efeito, se o conceito formulado não se cinge rigorosamente ao propósito de captar um determinado regime- cuja composição admite apenas as normas editadas pelo Direito positivo e os princípios acolhidos na sistemática dele-, será desconforme com sua própria razão de ser (identificação da disciplina que preside um dado instituto). Esta deformação sucederá sempre que se agreguem ao conceito traços metajurídicos, isto é, quaisquer ingredientes ou conotações que não sejam derivados das próprias normas ou dos princípios por elas encampados. [07]

Com isso, buscaremos não a fixação da natureza jurídica de um ente, objeto da filosofia, mas antes, a criação de uma proposição jurídica própria que nos sirva de parâmetro para a análise de todo o caso.

Como se vê, pois, as questões trazidas a lume não são de simples entendimento, mas suscitam série de indagações que, para um parecer razoável, devem ser consideradas. Mas fixado o parâmetro metodológico, e com os elementos disponíveis, pareceu-nos possível, a despeito de ousada, concluir a tarefa de crítica do caso com base nos argumentos que reunimos.

Para tanto, em princípio, vale novamente demonstrar as principais normas cuja aplicação foi debatida durante toda a lide, pois, identificados os comandos aplicáveis poderemos, com mais segurança, erigir nossa interpretação.

Assim, temos o mencionados artigos:Artigo 76 da Lei Falências, caput,"Pode ser pedida a restituição de coisa arrecadada em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade".Art. 1.256 do Código Civil de 1916, "O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisas do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Art. 1.257, "Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição."Art. 1.280,"O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo (arts. 1256 a 1264)."

A perplexidade ante ao caso concreto e à subsunção deste às normas é plenamente justificável. Tudo porque, como fica claro, a Lei de Falências determina a restituição de coisa arrecadada em poder do falido sobre a qual este não detém a propriedade ou a disponibilidade. Ou seja, é perfeitamente possível dizer que o depositante de dinheiro em banco pode pedir a restituição do mesmo em caso de falência da instituição depositária. Ora, dinheiro em conta é patrimônio do correntista, integra o acervo de bens do indivíduo e é, indubitavelmente, propriedade sua.

Literalmente, nesta esteira, a disponibilidade do Banco não se opõe à disponibilidade assentada na propriedade que ostenta o correntista, ou melhor, em face do poder de dispor do dinheiro que assiste ao depositante, a disponibilidade da instituição financeira sucumbe.

Pontes de Miranda analisou o poder de disponibilidade de correntistas e banqueiros sobre os fundos, asseverando que: "A disponibilidade pelo depositante coexiste com a disponibilidade pelo banco, mas passa-lhe à frente quando o depositante o entenda". [08].Ora, este é exatamente o termo utilizado pela norma: "disponibilidade". E levando-se em consideração a disponibilidade que têm os correntistas, vislumbramos que a transferência da propriedade do dinheiro torna-se disposição legal antagônica ao artigo da Lei de Falências.

É razoável tal entendimento.

Lado outro temos as também muito claras disposições do Código Civil, em que sobressai a equiparação do depósito voluntário ao mútuo de coisas fungíveis, cujo teor normativo determina em casos tais a transferência da propriedade do mutuante para o mutuário e, por consequência, do depositante para o depositário. Ora, se há a transferência da propriedade, inaplicáveis se tornam as disposições da Lei de Falências, por mero raciocínio lógico. É dizer que o depositante correntista transfere a propriedade do dinheiro ao banco submetendo-se, pois, ao concurso de credores em caso de falência da Instituição Financeira.

As opiniões são mesmo divergentes:

Na própria legislação civil brasileira, não há equiparação do depósito irregular ao mútuo, como pretenderam alguns autores, mas tão-somente aplicação, por analogia legalmente determinada, das normas do mútuo ao depósito irregular (art. 1.280), que pressupõe a incidência das mesmas, tão-somente, no que couber, sem que haja identificação dos dois institutos, mas simples similaridade. Acresce que o art. 1.280 do CC é norma geral aplicável ao depósito comum de direito civil e que não se aplica sempre e necessariamente ao depósito bancário, que tem características próprias e natureza específica, sendo regido pelo Direito Comercial. [09]

Não há, pois, um mero conflito aparente de normas, mas, como bem explicitou Norberto Bobbio em sua indispensável obra "Teoria do Ordenamento Jurídico", deparamo-nos com uma antinomia, ou seja, uma colisão de regras no seio do sistema normativo em que estamos inseridos. E a dúvida nos remete ao que denomina de antinomia de segundo grau, quando o que se busca é a decisão sobre quais parâmetros se deve utilizar para solucionar o conflito.

Claramente instala-se a dificuldade interpretativa, na qual Wróblewski auxilia-nos na identificação do problema:

Três contextos apresentam importância para determinar se o texto não está claro e se ele requer uma interpretação: os conceitos linguísticos, sistêmicos e funcionais. A dúvida pode ser constatada quer quando termos vagos são aplicados em suas zonas de penumbra (contexto linguístico), quer quando o sentido desses termos poderia levar a uma contradição ou uma incoerência com as outras regras em vigor (contexto sistêmico), quer ainda quando a regra entendida da maneira direta seja injusta ou possa levar a resultados estimados inaceitáveis ou ruins (contexto funcional. [10]

A interpretação deste caso, ato contínuo, não pode se submeter a um paradigma científico positivista-dogmático, abraçando a literalidade da norma, porque estas confrontam-se em qualquer proposição que se construa, sendo que resultado de tal manobra não será, definitivamente, entre as várias intepretações possíveis, a melhor.

Todavia, ainda campeia alguma angústia que resulta da constatação de uma certa acomodação do pensamento diante de supostas verdades aparentemente legitimadas por uma epistemologia positivista de caráter mecanicista e determinista. [11]

Tal fato foi apreendido por Siches quando afirmou:

Tanto a concepção cartesiana quanto a dos cientistas empíricos – ou ambas reunidas – mutilam o campo da razão, posto que lhe negam capacidade para tratar dos domínios em que nem a dedução lógica nem a observação dos fatos podem fornecer-nos a solução dos problemas. A aceitar-se esta circunscrição da razão, não nos restaria, nesses domínios, outro recurso exceto o de neles entregar-nos às forças irracionais, a nossos instintos ou à violência [12]

É de se observar que as normas do Código Civil e da Lei de Falências, de longa vigência, foram recepcionadas pelo texto constitucional. Tomadas isoladamente são vigentes, válidas e eficazes. Não trazem em si, na pureza do texto, qualquer vício que possa levar à declaração de inconstitucionalidade, quer pela via difusa, quer pela via concentrada, ou seja, ambas devem igualmente ser consideradas para a interpretação que busca definir sobre a possibilidade de restituição de depósitos bancários no bojo do processo falimentar da instituição financeira.

Ora, a constitucionalidade de uma norma é a relação em tese que esta possui com a Constituição. É uma análise que se faz observando-se, hierarquicamente, os princípios e as regras do Texto Fundante da ordem jurídica em face da norma objeto das atenções do intérprete.

E não há, pela observação da pura relação entre os artigos civilistas e falênciais e a Constituição, qualquer vício que possam maculá-los com a sanção da inconstitucionalidade. Mesmo porque, em ocorrendo incompatibilidades, o texto anterior infra-constitucional teria sido revogado, ou em outras palavras, não-recepcionado.

De outro lado, é de se notar que a aplicação das supracitadas normas inferiores, em face dos fatos e do caso concreto, fica complexa ante à dificuldade de tomarmos conjuntamente tais regras, pela diversidade semântica das mesmas e pela colisão de sentidos.

É o caso em que faz-se mister a intervenção das normas superiores e dos princípios constitucionais em face de espaço lacunoso ou antinômico das normas.

São, portanto, situações completamente diversas:

- uma é aquela em que as ofensas às normas constitucionais são explícitas, diretas e verificáveis na relação em tese entre regras inferiores e Constituição;

- outra é aquela em que o julgador, buscando resolver caso concreto, abebera-se nas normas superiores e nos princípios positivados da Lei Maior para formular base teórica e sustentação coerente de sua indispensável fundamentação para solução de conflito não dirimível pelos silogismos lógicos e literais entre as normas infra-constitucionais, ou seja, que se faça a necessária interpretação sistemática entre as normas positivadas de todo o ordenamento, quer em forma de regras quer em forma de princípios.

Tal orientação deve ser considerada para solucionar o que Dworkin chamaria de "hard case".

José Alcebíades de Oliveira Junior, em seu texto, trata com tranquilidade das considerações pertinentes de Dworkin sobre os "casos difíceis", senão vejamos:

Mas o que parece essencial ressaltar é que Dworkin sustenta algo que hoje pode nos parecer um tanto óbvio, mas que nem sempre foi assim: isto é, que os sistemas jurídicos são conformados também por princípios. Em certo sentido, defende a tese de que os ordenamentos jurídicos são integrados por normas que, por um lado, são regras em sentido estrito e que, por outro, são princípios em sentido amplo. De todo modo, o que é importante perceber é que o autor americano sustenta que por trás das normas existem valores fundantes que podem servir de orientação para a aplicação delas em caso de conflito ou antinomia. [13]

E é o mestre Miguel Reale, perscrutando as dificuldades de tratar o Direito como forma interpretativa, que define com primor as necessárias intervenções daquele que debruça-se sobre um dado caso:

Destarte, alterada a visão de experiência normativa, que deixou de corresponder a mera estrutura lógico-formal, para ser entendido em termos restrospectivos de fontes e prospectivos de modelos, isto é, em razão da estrutura histórica concreta, o problema hermenêutico deve passar a ser resolvido, partindo-se do pressuposto de que toda norma jurídica é:

a) um modelo operacional que tipifica uma ordem de competência, ou disciplina uma classe de comportamentos possíveis;

b) devendo ser interpretado no conjunto do ordenamento jurídico;

c) a partir de fatos e valores que, originariamente, o constituíram. [14]

E tal amplitude que deve ser conferida à interpretação, foi confirmadapor José Rodrigo Rodriguez:

Além disso, sem esta abertura para o novo, o juiz não será capaz de , caso isso seja necessário, reconhecer a novidade dos casos difíceis que desafiam a capacidade do repertório do ordenamento jurídico de fornecer uma solução adequada. Sua racionalidade abstrata tenderá a reduzir o caso aos padrões que determinam seu raciocínio, sem que se possa perceber a originalidade radical que o caso difícil propõe. [15]

O caso concreto demonstrou que, além de haver a necessária consideração sobre a perfeita propriedade, ou disponibilidade oponível aos bancos, de todos os correntistas deste país sobre suas economias depositadas, os princípios constitucionais levados a efeito pelo TJ/MG fornecem lógica que veda a apropriação de recursos indevidamente pelo abanco em detrimento dos antigos clientes depositantes da massa falida.

Isto porque, conforme anotado, o Banco Central absorveu créditos que a Caixa Econômica Federal tinha para com a massa falida e tentou evitar a restituição do dinheiro aos clientes no intuito de satisfazer, em benefício próprio, tal crédito. E mais, o faz ao arrepio de suas próprias funções institucionais que são, justamente, as de fiscalizar e manter saneados os integrantes do Sistema Financeiro Nacional.

Há, portanto, no substrato do caso concreto analisado um fundo ético, axiológico, que demanda a consideração não somente da letra fria das leis, mas também, e necessariamente, dos supedâneos constitucionais que albergam tais valores e que vedam, por seus vetores lógicos, a apropriação indevida dos bens alheios por quem quer que seja.

Válida portanto, em nossa opinião, a aplicação dos princípios da proteção ao consumidor, da propriedade, e do não confisco, enquanto normas fundantes que, comportando a subsunção do fato concreto exposto, não permitem solução coerente diversa senão a devolução do dinheiro aos correntistas.

Avaliza tal posição José Ricardo Cunha, senão vejamos:

Como é sabido, o ordenamento jurídico é estruturado conforme suas implicações teleológicas, isto é, conforme as exigências sociais de ordem e estabilidade radicadas em valores como dignidade, liberdade, solidariedade e igualdade que conformam os fins últimos do direito. O respeito e a lealdade a esta estrutura deve ser inspiração constante no trabalho hermenêutico de inteligibilidade do ordenamento jurídico e na ação interpretativa de aplicação desse mesmo ordenamento." [16]

E não se perca de vista os próprios mandamentos constitucionais, ou seja, "Art. 5º, § 1º: as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata." Ante o que vislumbra-se um horizonte a ser desvendado, segundo o mesmo autor:

Assim, a interpretação jurídica tem como pressuposto a hermenêutica jurídica que lhe confere valores e princípios fundamentais que devem orientar a busca do sentido e do alcance das normas aplicáveis. Embora passíveis de distinção, são dois momentos complementares da experiência jurídica, em que a hermenêutica é responsável pela inteligibilidade da ordem jurídica, ou seja, pela sua compreensão a partir dos valores e princípios que são fundantes do próprio direito e das finalidades últimas da ordem jurídica. Dessa compreensão decorre que a experiência jurídica não pode reduzir-se jamais aos cânones legais e o conhecimento do direito não pode se limitar ao conhecimento do direito positivo, (...) [17]

Todo o dito até aqui, desta feita, serve tão somente para demonstrar que a necessária interpretação ampla que efetivou o TJ/MG foi fulcrada nas prementes e viscerais considerações sobre o sistema jurídico e sobre seus pilares significantes.

Especificando, temos que, na dúvida entre considerar a disponibilidade e propriedade dos correntistas, a autorizar a restituição, e entender que os bancos são donos e senhores dos depósitos bancários, acolhemos, convictos, a primeira alternativa.

E como os julgadores não puderam, por absoluta antinomia entre as normas, justificar tal decisão simplesmente com um silogismo entre normas e fatos, recorreram com acerto e argúcia à essência de nossa Constituição, buscando argumentos positivados em princípios, para superar a colisão de normas inferiores e fundamentar o decisum.

Recorremos novamente ao mestre Miguel Reale:

Muitas e muitas vezes, porém, as palavras das leis conservam-se imutáveis, mas a sua acepção sofre um processo de erosão ou, ao contrário, de enriquecimento, em virtude de interferência de fatores diversos que vêm amoldar a letra da lei a um novo espírito, a uma imprevista ratio juris. Tais alterações na semântica normativa podem resultar: a) do impacto de valorações novas, ou de mutações imprevistas na hierarquia dos valores dominantes; b) da superveniência de fatos que venham modificar para mais ou para menos os dados da incidência normativa; c) da intercorrência de outras normas, que não revogam propriamente uma regra em vigor, mas interferem no seu campo ou linha de interpretação; d) da conjugação de dois ou até mesmo dos três fatores discriminados [18]

Extreme de dúvidas o fato de as normas infraconstitucionais aplicadas serem anteriores à Constituição de 1988. Destacando a imperiosa necessidade de atualização do sentido das mesmas, se recepcionadas pelo novel ordenamento, não há como compreendê-las e aplicá-las segundo os novos cânones senão atualizando-as pela interpretação conjugada entre tais normas e as disposições constitucionais.

Com esta extensa, mas necessária, exposição, entendemos corretas a aplicação dos princípios constitucionais como parâmetros e norte interpretativos em auxílio à solução da antinomia das normas civilistas e falenciais. E só mesmo abraçando o princípio da segurança jurídica, da proteção à propriedade e ao consumidor e ainda do não-confisco é que se tem maneira adequada de construir decisão justa e atual.

A provisoriedade e o limite de conceitos e decisões implica constante debate para reafirmações do sentido e cabimento das normas jurídicas, tornando possível manter o coerente e superar o insustentável em cada caso e em cada momento histórico; (...) A objetividade da norma não pode ser convertida em fetiche da segurança jurídica e deve, também, ser tomada no âmbito da consciência hermenêutica segundo sua historicidade intrínseca." [19]

Superado, assim, o argumento lançado pelo BACEN quanto ao desacerto da aplicação dos princípios materias da Constituição no caso, conforme explicitado, temos, como corolário, a inexistência de malferimento às normas de ordem formal e de competências, eis que o TJ/MG, no acórdão impugnado, não utlizou-se de interpretação conforme e nem declarou inconstitucionalidade das normas inferiores, mas procedeu sob o pressuposto de que "o Direito é um processo aberto exatamente porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções de caráter definitivo." [20]

Por tudo, a decisão final do STJ, que considerou simplesmente que o depósito bancário é equiparado ao mútuo, havendo transferência de propriedade dos valores depositados e negando a restituição, foi tomada talvez por motivações supra-legais, políticas, mas não demonstrou o necessário embasamento rigoroso e princpiológico que deve, imperiosamente, ser construído no caso, ante à sua óbvia complexidade. Discordamos, em conclusão, da mencionada decisão e entendemos, pelo exposto, que a restituição é devida aos correntistas de insituições bancárias falidas.

Sobre os autores
Júlio Moraes Oliveira

Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela Universidade FUMEC (2011), Especialista em Advocacia Civil pela Escola de Pós-Graduação em Economia e Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas EPGE/FGV e EBAPE/FGV. (2007), Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos - FDMC (2005). Membro da Comissão de Defesa do Consumidor - Seção Minas Gerais - OAB/MG. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Membro Suplente do Conselho Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor - Comdecon-BH. Professor da FAPAM - Faculdade de Pará de Minas. Professor da Faculdade Asa de Brumadinho. Parecerista da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) Qualis B1, Parecerista da Revista Quaestio Iuris da Universidade do Estado Rio de Janeiro (UERJ) Qualis B1. Pesquisador com diversos artigos publicados em periódicos. Autor dos Livros: CURSO DE DIREITO DO CONSUMIDOR COMPLETO, 4ª edição e CONSUMIDOR-EMPRESÁRIO: a defesa do finalismo mitigado. Advogado, com experiência em contencioso e consultivo, em direito civil, consumidor, empresarial e trabalhista. juliomoliveira@hotmail.com

Fernando Benevides de Souza

Especialista em Advocacia Cível pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV-EDESP - Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Advogado.

Mara Carolina Almeida Rabelo

Especialista em Advocacia Cível pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV-EDESP -Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Júlio Moraes; SOUZA, Fernando Benevides et al. A restituição de depósito de coisa fungível em instituição financeira falida.: Estudo de caso através da análise de um dos pedidos de restituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2878, 19 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19139. Acesso em: 18 mai. 2024.

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