Sumário: 1. Introdução. 2. Realização do risco e explicação do dano. 3. Determinação da realização de riscos: os cursos causais hipotéticos e os cursos causais reais. Casuísticas de danosidade ambiental e labor-ambiental. 4. A figura dos riscos concorrentes na teoria da imputação objetiva: riscos concorrentes de realização apartada e riscos concorrentes de realização indistinta. 5. Aspectos finais. Os paradigmas da não-realização dos riscos. 6. Bibliografia
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo pretende demonstrar como a teoria da imputação objetiva ― e em especial um dos seus principais capítulos, que trata da realização dos riscos proibidos ― pode se aplicar, com vantagens hermenêuticas, às casuísticas próprias do Direito Penal Ambiental (e, por conseguinte, às recorrentes situações de danosidade ligadas ao meio ambiente do trabalho, que conceitualmente integra o conceito lato de meio ambiente humano, a abrigar esquematicamente as realidades do meio ambiente natural, do meio ambiente artificial, do meio ambiente cultural e do próprio meio ambiente laboral).
Consideram-se, para o desenvolvimento do texto, já adquiridos pelo leitor alguns pressupostos básicos da Teoria Geral do Direito Penal e da própria teoria da imputação objetiva em sede penal (sendo certo que, a rigor, a teoria da imputação objetiva não é propriamente uma teoria penal, mas uma teoria geral de responsabilidade jurídica). Para leitura complementar, àqueles que não estejam familiarizados com aqueles pressupostos, sugere-se a consulta a toda a vasta produção bibliográfica respeito do tema, nos idiomas português [01], castelhano e alemão.
Ao estudo, pois.
2. REALIZAÇÃO DO RISCO E EXPLICAÇÃO DO DANO
A realização dos riscos reprovados é um capítulo à parte na teoria da imputação objetiva; na dicção de Jakobs [02], corresponde ao segundo nível de imputação objetiva (imputação objetiva do resultado). Freqüentemente, embora o indivíduo tenha criado ou majorado riscos de modo reprovável, o juízo de imputação objetiva revela-se inadequado, porque o resultado penalmente relevante não guarda relação com as condutas geradoras ou potencializadoras daqueles riscos; noutras palavras, o resultado desvalido não é concreção do risco reprovado, relacionando-se com outro risco, lícito ou não.
Valiosa, aqui, a ilustração de Alvarado [03], tomada de Karl Engisch: ao proprietário de loja de fogos de artifício que necessita ausentar-se por alguns minutos, confiando ao seu pequeno filho, nesse interregno, a gestão do comércio, sem adverti-lo da necessidade de instruir os clientes sobre a correta manipulação dos fogos, não se imputam os danos físicos sofridos por um seu cliente que adquiriu determinado produto naquele interstício - conquanto a negligência do proprietário tenha, de fato, criado risco juridicamente reprovado - se na verdade o menino, a par da omissão paterna, explicou satisfatoriamente ao comprador sobre como deveria manipular tal produto. Feitas as devidas explicações ao consumidor, o acidente cinge-se à concreção de um risco social tolerado ou permitido - aquele a que se submete todo indivíduo quando, devidamente informado, adquire e deflagra fogos de artifício - e não do risco reprovado a que deu origem o proprietário da venda com sua incúria.
Outro exemplo, agora no plano ambiental: o conselho administrativo de uma sociedade delibera autorizar, durante o interregno de cinco meses, a emissão de poluentes gasosos em níveis superiores aos regulamentares, como medida necessária para a duplicação dos patamares de produção de seu complexo industrial e o conseqüente atendimento de uma demanda imprevista; nas dois primeiros dias verifica-se o excesso, mas no tempo restante (quatro meses e vinte e oito dias) e a despeito dessa autorização documentada, os níveis de emissão acabam por não suplantar os limites regulamentares, apesar do aumento de produção. A população local experimenta, durante os cinco meses, irritação nos olhos idêntica à suportada em meses anteriores. Significa dizer que a autorização administrativa engendrou um risco que, concretamente, teve vida efêmera e não se materializou no resultado desvalido, porque a irritação ocular da comunidade vizinha era aquela inerente aos índices regulamentares de emissão gasosa [04].
Não se há de confundir tal hipótese com outras similares, em que sequer existe um juízo positivo de causalidade adequada (razão pela qual o processo intelectivo de subsunção é coarctado antes mesmo da etapa de imputação objetiva): assim, e.g., o caso do pólo petroquímico que, desobedecendo normas de proteção ambiental, passa a verter material tóxico para águas próximas, em níveis tais que poderiam resultar no perecimento maciço de espécimes da fauna aquática da baía adjacente; semanas depois, constata-se elevada mortandade de peixes, que a perícia demonstra estar relacionada com súbita elevação de salinidade decorrente de fatores exclusivamente climáticos. Na ótica de Yesid Alvarado (inerente ao exemplo precitado, do comerciante de fogos) e de outros autores que não vislumbram, no processo de subsunção típica, espaço ou momento para um juízo de causalidade física (eis que tudo se resumiria ao âmbito normativo e à imputação objetiva), teríamos aqui autêntica inadequação resultante da desconformidade jurídica entre risco criado e resultado desvalido.
Com maior acerto, todavia, põe-se a questão antes mesmo daquela asserção axiológica, para ubicá-la no âmbito ontológico; com efeito, despiciendo analisar se o resultado típico (no Brasil, artigo 33, caput, da Lei 9.605/98) representa, enquanto entidade jurídica, a concreção do risco criado, uma vez que:
a.) do ponto de vista naturalístico, aquele resultado, enquanto entidade física, não corresponde à conduta que o precedeu (sucessão de atos desenrolados no tempo), segundo a lei natural de causa e efeito que rege a espécie e à luz da adequação estatística (porque admitir uma lei causal imperfeita, ali, seria contradizer outra lei causal perfeitamente conhecida - a relativa aos efeitos deletérios da salinidade elevada e de sua etiologia climática - e, mais, ignorar a refutação científica);
b.) não se cuida, ademais, de qualquer modalidade plausível de causalidade psíquica que permita a aferição imediata da imputação objetiva. Salta aos olhos, aqui, a disparidade física (e por isso pré-jurídica) entre a conduta e o resultado desvalido, que não pode ser simplesmente ignorada com vistas a um Direito Penal reducionista, adstrito à imputação jurídica como se a realidade jurídica - mundo do dever-ser - pudesse prescindir e mesmo contradizer, circunstancialmente, a realidade da vida - mundo do ser; tal reducionismo peca ainda ao negar, obliquamente, a natureza tridimensional do Direito, em o concebendo, nesse particular, como valor e norma, abstraído o aspecto fatual - com o que, em tese e princípio, não transigimos [05].
Alvarado anota que a terminologia, em tema de realização de riscos, variou no tempo conforme as teses predominantes em doutrina. Quando vicejavam as teorias causais, falava-se em relação de causa, causalidade da culpa, causalidade da lesão ao dever de cuidado ou causalidade da evitabilidade (o que, acrescentamos, não significa imponha-se abnegar o uso da expressão "relação de causalidade", que tem sua sede própria no juízo de causalidade física); com o desenvolvimento da noção de dever de cuidado nos delitos culposos, passou-se a falar em relação de contrariedade ao dever de cuidado. Com Karl Engisch ("Die Kausalität als Merkmal der Strafrechtlichen Tatbestande"), finalmente, a doutrina começa a distinguir entre criação e realização de riscos (embora o próprio Engisch utilizasse a expressão relação de antijuridicidade, assimilada por alguns dos que a ele se seguiram), cunhando a expressão relação de realização de riscos, ou resumidamente relação de risco. Com o advento da teoria do fim de proteção da norma (Claus Roxin), falou-se ainda em relação do fim de proteção, relação do fim da norma ou eficácia da proteção - todas, porém, expressões com a mesma significação: relação de realização de riscos. Perquire-se, nesse ínterim, o vínculo jurídico (e não físico-causal) entre o risco (entidade jurídica) criado ou incrementado pela conduta (entidade natural) e o resultado desvalido (também enquanto entidade jurídica).
Na doutrina teutônica, a discussão ganhou fôlego por obra da jurisprudência, com o que seria o mais significativo marco histórico da imputação objetiva nas cortes daquele país: em 1958, a Suprema Corte alemã absolveu o condutor de um caminhão que deu morte a um ciclista ébrio que caiu debaixo das rodas traseiras do veículo, quando o acusado executava uma manobra irregular de ultrapassagem (não observara a distância lateral mínima exigida por lei [06]; a investigação posterior à fatalidade demonstrou que o ciclista, alcoolizado, poderia ter sofrido o mesmo acidente, ainda que o motorista houvesse resguardado a distância regulamentar). Na oportunidade, o tribunal declarou que, se inequívoca a relação de causalidade entre a conduta do acusado e o resultado produzido (assinalando, em caráter implícito, que o juízo de imputação objetiva não absorve o juízo de causalidade e tampouco pode substituí-lo), uma "causalidade em sentido penal" (leia-se: imputação jurídica do resultado) deveria ser negada, se a morte do ciclista era conseqüência da manobra imprudente de ultrapassagem do acusado ou do próprio estado de ebriedade da vítima.
A par da terminologia infeliz, justo é reconhecer à corte, tal como Alvarado [07], o mérito de ter admitido o nexo causal (porque inegável que a morte da vítima, enquanto fenômeno físico, deveu-se ao esmagamento do ciclista sob as rodas do caminhão e não ao álcool que pouco antes ingerira) mas negar (ou mais propriamente por em dúvida) a existência da relação jurídico-penal entre a conduta e o resultado (ou, ainda uma vez com maior propriedade, relação jurídico-penal entre o risco ínsito à conduta do acusado e o resultado desvalido); em suma, absolveu-se o réu (motorista do caminhão) à vista do "favor rei", porque não havia provas idôneas à constatação de que a morte do ciclista era a concreção do risco criado pelo motorista (ultrapassagem irregular) e não do risco criado pelo próprio ciclista, ao pedalar ébrio em pista de rolamento automotivo. E porque nesse caso era indubitável a criação de um risco reprovado pelo réu, a quem, no entanto, não se imputou o resultado, introduzia-se em definitivo a problemática da realização do risco.
Quanto à determinação da realização de riscos, Alvarado [08] aduz que, à diferença do juízo de desaprovação de um risco social (que parte de considerações "ex ante", porque não é possível estabelecer se o indivíduo atuou ou não de acordo com as expectativas de comportamento que dele se têm, senão mediante a determinação da conduta que lhe era de antemão exigível), o juízo de realização do risco juridicamente reprovado exige uma valoração "ex post", tendo-se em conta que, se no plano ôntico a relação de causalidade é impensável antes que se produza uma modificação do mundo exterior (resultado físico), no plano axiológico também a relação de risco é impensável sem que se tenha verificado o quebrantamento da norma penal (resultado jurídico). Pacífica a doutrina quanto a esse aspecto, diverge quanto a todos os outros, e particularmente no que atine aos critérios de determinação da realização de riscos. Nesse particular, Alvarado faz referência à "solução de omissão", que impõe a distinção prévia entre ações e omissões (no Brasil, a distinção é clássica [09]) antes de se determinar se entre a conduta e o resultado existe um vínculo que permita a sua imputação ao autor, como sua obra; para os que advogam essa tese, o critério de determinação não seria o mesmo, variando conforme a modalidade de conduta: nas omissões, a imputação pressuporia a demonstração de que a conduta exigível evitaria, com probabilidade tangente à certeza, o resultado desvalido; já nas ações em sentido estrito, a imputação aperfeiçoar-se-ia mesmo em se demonstrando que, omitida a conduta reprovável, ainda assim o resultado provavelmente (não se exigindo, aqui, probabilidade tangente à certeza, mas a mera probabilidade) não poderia ter sido evitado - i.e., irrelevância dos cursos causais hipotéticos, apenas para as ações "stricto sensu". O autor consigna, em seguida, que a doutrina majoritária rechaça, atualmente, qualquer aplicação para a denominada "solução de omissão", seja do ponto de vista estritamente causal, seja do ponto de vista da imputação objetiva; prossegue assinalando que, a seu modo de ver, nem no plano naturalístico e tampouco no âmbito da imputação objetiva justifica-se manter a artificiosa distinção entre ações e omissões (como de resto é a tendência universal da teoria da imputação objetiva, tal como reconhecem os doutos). De nossa parte, reconhecemos utilidade à distinção clássica entre ações e omissões, irrecusável "de lege lata" no ordenamento pátrio [10] (conquanto se possa alvitrar, "de lege ferenda", a sua abolição para um futuro algo remoto), mas aderimos à crítica de Alvarado e ao repúdio generalizado da doutrina, pelo que tem de anti-científica e imprecisa a "solução de omissão", pretendendo estatuir regras diversas de atribuição ou imputação para fenômenos ontologicamente idênticos (eis que a ação, como a omissão, estão radicadas, enquanto entidades, ao plano ôntico - mundo do ser).
3. DETERMINAÇÃO DA REALIZAÇÃO DE RISCOS: OS CURSOS CAUSAIS HIPOTÉTICOS E OS CURSOS CAUSAIS REAIS. CASUÍSTICAS DE DANOSIDADE AMBIENTAL E LABOR-AMBIENTAL
Destrinçando os diversos critérios augurados pela doutrina para a determinação da realização de riscos, Alvarado reporta-se ao fim de proteção da norma de Claus Roxin, aos cursos causais hipotéticos e aos cursos causais reais (com os conceitos de evitabilidade, conducibilidade e dominabilidade [11]).Ora examinaremos, por importante, esses dois últimos critérios.
Os cursos causais hipotéticos, como método para se aferir a realização do risco, é objeto de críticas na medida em que traslada, para a teoria da imputação objetiva, a inevitabilidade hipotética das teorias causais (vide a "conditio sine qua non" e a hipótese do pai que mata o assassino de seu filho momentos antes de sua execução pelo carrasco). Assim, na imputação objetiva, a forma de determinar se um risco realizou-se ou não em um resultado consistiria em se imaginar o que teria ocorrido se o autor houvesse se comportado de forma diversa. Como exposto linhas acima, a Suprema Corte alemã fiou-se no critério dos cursos causais hipotéticos e no conceito de evitabilidade para absolver o motorista que, em manobra de ultrapassagem irregular, causou a morte de um ciclista embriagado que caiu sob as rodas traseiras do caminhão. De se observar, contudo, que esse caso difere essencialmente do primeiro mencionado (pai que tira a vida do assassino de seu filho no patíbulo): aqui, não há certeza a respeito da etiologia do evento letal, é dizer, não é possível afirmar se a morte ocorreu pela aproximação irregular do caminhão ou pela embriaguez do ciclista, o que significa dizer - com melhor técnica - que não há como determinar qual dos riscos concorrentes materializou-se no resultado desvalido (daí, como dito, impor-se a absolvição como consectário do "favor rei"); ali, sabe-se que a morte do assassino deve-se exclusivamente à ação do pai, sem qualquer participação do verdugo. Por conseguinte, se no último exemplo (ciclista e condutor) viceja grau elevado de incerteza quanto à realização do risco, incompatível com a condenação, no primeiro é inegável o incremento do risco reprovado (princípio da intensificação), que guarda relação óbvia com o resultado letal. Dessarte, imputa-se ao pai vingador o evento desvalido, embora não se o impute ao motorista negligente.
A respeito dos cursos causais hipotéticos, diversas teses foram formuladas; mencionaremos, aqui, as únicas duas constantes do elenco de Yesid Alvarado, que correspondem às de maior penetração junto à doutrina e à jurisprudência, a saber: cursos causais hipotéticos com valor cognitivo próprio (Juan Bustos Ramirez e Erich Samson) e cursos causais hipotéticos como fator de regulação punitiva (Arthur Kaufmann).
Amplo setor da doutrina considera que a única forma de se determinar se um risco juridicamente reprovado realizou-se ou não em um dado resultado é empregando condutas alternativas ou cursos causais hipotéticos, agora não como recurso de aferição de causalidade, mas como mecanismo que, ínsito à teoria da imputação objetiva, permite estabelecer o vínculo jurídico entre o risco reprovado e o resultado desvalido. As condutas alternativas e os cursos causais hipotéticos teriam, então, função cognitiva exclusiva - daí o valor cognitivo próprio - consistente em determinar a realização dos riscos "in concreto".
Um exemplo extraído da jurisprudência alemã, que guarda íntima relação com a temática labor-ambiental (i.e., com supostos fáticos próprios do meio ambiente do trabalho), celebrizou no mundo o uso judicial dos cursos causais hipotéticos. O caso noticiaa aquisição, por um fabricante de pincéis, de pêlos de cabra para a confecção de seus produtos, entregues à linha de produção sem prévia desinfecção; expostos ao material, várias trabalhadoras morreram infectadas pelo bacilo do carbúnculo, mas no curso do processo criminal demonstrou-se que os desinfetantes à época disponíveis não garantiriam a eliminação daquela classe de bacilo, de maneira que a eliminação hipotética da negligência patronal - i.e., imaginando-se que os pêlos houvessem sido desinfetados - não excluiria a possibilidade de contágio. Diante de tal raciocínio, absolveu-se o fabricante [12].
Para estabelecer a realização de riscos com fulcro nos cursos causais hipotéticos de função cognitiva, diversas proposições vieram a lume. A proposição clássica, haurida diretamente das discussões outrora travadas acerca da relação de causalidade, é a que recorre às causas de substituição, contrapostas àscausas reais: aquelas efetivamente geram o resultado, essas o produzem apenas hipoteticamente, fossem diversas as circunstâncias. Ante os problemas que essa ordem de considerações trouxe para as teorias causais, compreende-se que se deva ter em conta apenas o resultado em sua forma concreta (e.g., suponha-se que "A" subministra a "B" veneno que lhe ceifaria a vida três horas depois, mas no curso da segunda hora "C" investe contra "B" com arma de fogo, causando-lhe a morte; o evento letal, nessa hipótese, é a morte por hemorragia interna desencadeada pela penetração dos projéteis, sendo irrelevante a conduta anterior de envenenamento, porque o resultado em sua forma concreta não foi a morte por envenenamento); nada obstante, a proposição causa perplexidade em situações mais complexas, mormente nas que envolvem variação interna de riscos (cfr. supra), que nela não encontram solução plausível (e.g., "A" alerta "B" do golpe letal que "C" subitamente desfere contra sua cabeça; "B" volta-se para o agressor e recebe o golpe em sua fronte, com resultado igualmente letal; o resultado em sua forma concreta decorreu da conduta de "A", e nem por isso a morte se lhe há de imputar, exatamente porque não houve alteração do risco originário - i.e., criação ou incremento - mas apenas variação interna).
Curioso observar que a Corte Suprema alemã reconheceu validez à retórica das condutas alternativas no rumoroso caso do ciclista e do condutor, mas não a admitiu noutro caso, em que o resultado se teria produzido de qualquer modo mas por obra de terceiro, entendendo que as causas de substituição devem ser tomadas em consideração apenas quando resultam da relação material entre autor e vítima, mas hão de ser rechaçadasquando provém de uma pessoa diversa; noutras palavras, acolhe-se a causa de substituição desde que imanente à relação entre os sujeitos intervenientes no evento concreto, mas não se a acolhe quando transcendente àquela relação (inadmissibilidade do autor de reserva). Eis outra razão, quiçá mais contundente, para que o emprego de cursos causais hipotéticos exclua a imputação pretendida para o condutor negligente, ainda no caso do ciclista ébrio, mas não a exclua no caso do pai que dá a morte ao assassino de seu filho no patíbulo, porque agora a causa de substituição - morte pelas mãos do carrasco - envolve terceira pessoa (autor de reserva). Com razão, no entanto, Alvarado [13], ao observar que o critério não é seguro: em que pese seja eficiente, circunstancialmente, para emitir juízos negativos de imputação, não o é para a emissão de juízos positivos; ademais, nem todo curso causal hipotético imanente à relação material entre autor e vítima enseja a exclusão da imputação. Assim, por exemplo, aquele que propositadamente lança seu veículo contra pedestre que, no mesmo instante, dispunha-se a se atirar na pista de rolamento, responde pela morte causada, apesar da causa de substituição imanente à relação entre os protagonistas (impulso suicida da vítima) que terminaria ocasionando a morte da vítima, ainda que o autor agisse adequadamente. A imputação, aqui, justifica-se pela consideração, haurida da Teoria Geral do Direito Penal, de que a "cogitatio" da vítima - como seria, noutras condições, a do sujeito ativo - não detém relevância penal [14] (o que importa afirmar, mercê da teoria da imputação objetiva, que a mera cogitação não cria ou incrementa riscos sociais juridicamente relevantes); por conseqüência, se a vítima apenas pretendia atirar-se na pista de rolamento, mas não teve oportunidade de fazê-lo ante a investida letal do motorista, o resultado morte é a concretização do risco reprovado que o condutor gerou, porque a vítima - apesar da cogitação - não criou ou incrementou risco algum. Nesse diapasão, constata-se que as condutas alternativas e os cursos causais hipotéticos não podem ser utilizados com açodamento ou absoluta exclusividade, porque o uso indiscriminado conduz, não raras vezes, a incoerências e injustiças. Antes, devem ser empregados à guisa de método auxiliar, paralelamente à aferição da realização de riscos segundo os âmbitos de competência de cada sujeito interveniente - na trilha de Günther Jakobs - e em consonância com os princípios inerentes à Teoria Geral do Direito Penal.
A segunda proposição, ainda relativa aos cursos causais hipotéticos com função cognitiva, fia-se na relação de inadequação, adaptando para o juízo de imputação as premissas dateoria da causalidade adequada. Diz-se que o resultado é a concreção do risco reprovado quando dele decorre segundo a experiência geral da vida; noutras palavras, o risco deve ser adequado à realização do resultado desvalido.Confunde-se, ao cabo das constas, adequação do risco e previsibilidade, ensejando injustiças. Alvarado [15] cita julgado do Tribunal Superior de Osnabrück em que um ciclista foi condenado por homicídio culposo, tendo se passado o seguinte: o réu, embriagado, perdeu o controle da bicicleta, caiu ao chão e foi socorrido por um casal que por ali trafegava em seu automóvel; para tanto, o automóvel permaneceu estacionado regularmente; enquanto discutiam a forma como prestariam auxílio ao ciclista, outro condutor, que dirigia com excesso de velocidade, não logrou esquivar-se do veículo estacionado e com ele chocou-se, causando a morte do cônjuge virago que prestava socorro. Ulteriormente, a Suprema Corte alemã absolveu esse mesmo ciclista, sob o argumento de que para o acusado não resultava previsível a morte de terceiros que deliberassem ajudá-lo como decorrência de seu estado de ebriedade, porque isso está além de toda e qualquer experiência geral da vida. No entanto, também o Tribunal de Osnabrück orientou-se pelo conceito de previsibilidade, aliás com maior acerto, embora a reforma da Suprema Corte fosse bem-vinda pelo seu conteúdo de justiça; com efeito, se não é provável, por infreqüente, que numa ação de socorro em vias públicas as pessoas que prestam auxílio sejam colhidas por acidentes automobilísticos, tal evento não deixa de ser previsível, tanto mais quando o automóvel dos que socorrem é deixado às margens da pista e em seu meio encontra-se a pessoa ébria. Fato é que, por ser improvável o desdobramento, o risco foi considerado inadequado para o resultado, o que valeu ao ciclista uma absolvição; em confundindo adequação e previsibilidade, porém, a jurisprudência perdia-se em sentenças tecnicamente mais exatas - como a de Osnabrück - e essencialmente mais justas - a da Suprema Corte - diametralmente opostas entre si.
Ainda hoje, há quem sustente ser a adequação mais um requisito da imputação objetiva, ao lado da criação (abrangente do incremento) e da realização de riscos reprovados [16]; para outros, o conceito equivale ao de realização de riscos, e para outros ainda serve como instrumento auxiliar. Para Alvarado, juízos de probabilidadenão devem interferir nos juízos de imputação objetiva, porque mesmo o evento improvável admite imputação objetiva, quando a conduta que o ensejou defrauda expectativas sociais dimanadas do âmbito de competência do sujeito atuante; cita, à guisa de ilustração, as trajetórias irregulares e caprichosas de projéteis de armas de fogo, e particularmente o atentado que vitimou o líder político colombiano Luis Carlos Galán, alvejado na barriga por projétil que rompeu uma sua artéria e por isso lhe deu a morte, no momento em que acenava para a multidão elevando o colete blindado que vestia poucos centímetros acima daquela artéria, vulnerada pela bala. Acompanhamos, nesse particular, o entendimento de Alvarado, por concebermos que o juízo de probabilidade, enunciado a partir do conceito de adequação, não interessa à problemática da imputação objetiva, mas tão-só à questão da causalidade adequada, sob o crivo da previsibilidade estatística. A franca improbabilidade é instância segura para rechaçar juízos de causalidade física, com esteio no "favor rei", à míngua de leis causais perfeitas; não o é, porém, para rechaçar juízos de imputação - como demonstra o bom exemplo de Alvarado - quando a causalidade material é irretorquível à vista da lei causal perfeita que rege o fenômeno (tal como no aludido assassinato do líder colombiano) ou, ainda, em face da lei causal estatística que permite o juízo positivo de causalidade.
Uma terceira proposição para os cursos causais hipotéticos com função cognitiva, da lavra de Ingeborg Puppe, reedita o conceito de causalidade normativa. Para Puppe [17], a causalidade física ou naturalística não corresponde à causalidade normativa, que não se prende às causas que geraram uma situação concreta, mas às causas que provocaram uma modificação prejudicial dessa situação(aproximando-se, nesse ínterim, do princípio da intensificação de Erich Samson, supra). Exemplifica asserindo que, se o ato de concepção do indivíduo por seus pais (que, em se relacionando, engendram sua centelha vital) é causa naturalística da morte que o vitimará (porque não há morte sem vida biológica que a preceda), assim não ocorre no plano jurídico: a concepção do indivíduo por seus pais não é causa jurídica de sua morte, mas o é a ação do terceiro que, investindo contra sua vida, provoca a modificação de sua situação original ("homem vivo") para a condição de "homem morto". Para determinar a causalidade normativa, deve o julgador suprimir mentalmente a atuação do acusado e tratar de explicar o resultado na sua ausência; se tal explicação não se faz possível, o comportamento é causa jurídica do resultado, mas se a explicação é possível, então a conduta do autor é mera causa de substituição, e por isso irrelevante juridicamente.
Os critérios de Puppe, contudo, revelam-se insuficientes para a determinação da realização de riscos, a par da imprecisão terminológica (causalidade, a rigor, é uma só: a física ou natural, traduzida nas três leis de Isaac Newton); o tratamento de casos em que a mera cogitação precipitaria resultado equivalente, como o do motorista que atropela desafeto suicida predisposto a atirar-se sob o veículo, não atenderia ao mais ligeiro senso de justiça, porque a imputação dos resultados estaria prejudicada ante a ausência de uma "causalidade normativa" (no exemplo, suprimida mentalmente a conduta do autor - investida contra a vítima com o automóvel - o resultado poderia ser explicado com a atitude da vítima em se lançar sob as rodas do veículo). Já a crítica de Alvarado, à mercê do procedimento intelectivo alvitrado por Puppe, na realidade não se põe. O autor colombiano, no afã de evidenciar as deficiências da tese de Puppe quando aplicada a casos mais complexos, modifica um exemplo concebido pelo próprio Puppe, a respeito da autoridade administrativa que nomeia funcionários públicos e nem por isso há de ser considerada, no plano jurídico, causadora dos delitos que seus agentes cometem no exercício dos respectivos cargos; Alvarado observa que, se a autoridade soubesse da cleptomania de um funcionário e ainda assim o nomeasse para cargo de tesoureiro de uma entidade oficial (circunstância que é aproveitada pelo funcionário para apropriar-se de fundos públicos), sustentar a irrelevância de sua conduta, como decorreria da tese de Puppe, seria um despropósito. O raciocínio é equivocado e atribui a Puppe uma conclusão que o autor alemão decerto não perfilharia, porque suprimida a conduta do autor - autoridade administrativa que nomeia o funcionário cleptomaníaco para a tesouraria - e mantidas as mesmas circunstâncias - conhecimento, pela autoridade responsável, da cleptomania do funcionário - o resultado não se explicaria, já que o autor não o teria nomeado e outra autoridade, em sã consciência, não o nomearia; conseqüentemente, nessa hipótese insta reconhecer, pelos critérios de Puppe, a causalidade normativa, à diferença do caso anterior em que os funcionários, não fossem nomeados pela autoridade "A", sê-lo-iam pela autoridade "B", porque desconhecida qualquer anomalia psíquica em qualquer deles. Nada obstante, remanesce nossa crítica pela insuficiência criteriológica, supra.
A quarta proposição desenvolve a idéia das condutas alternativas conformadas ao Direito, para substituir o curso causal real por outro alternativo, afinado com as regras jurídicas vigentes, e não por uma outra sucessão causal qualquer,como seria de se esperar em uma análise de causalidades físicas, porque isso conduziria à mais absoluta incerteza; imagine-se, v.g., o médico anestesista que, durante uma intervenção cirúrgica, toma por equívoco recipiente com substância à qual a paciente é alérgica, causando-lhe a morte com a inoculação: empregar cursos causais hipotéticos sem maiores parâmetros significa tanto reconstituir a situação imaginando o que haveria se o anestesista tomasse em mãos o recipiente correto - afirmando-se a imputação, porque o paciente sobreviveria - quanto reconstituí-la imaginando o que ocorreria se o anestesista tomasse em mão um terceiro frasco, contendo veneno - recusando-se a imputação, porque o resultado morte produzir-se-ia de qualquer forma).
Segue-se a tese, mais palatável, dos cursos causais hipotéticos como regulador punitivo, de ArthurKaufmann [18]. O autor desenvolve sua idéia de bem irremediavelmente perdido para concluirque, se é negativo o juízo de imputação em relação àquele que destrói bem jurídico portador do germe de sua própria destruição (i.e., fadado à destruição), porque o resultado não é desvalido, tampouco pode ser negativamente valorada a conduta de quem atacou um bem jurídico mas não logrou danificá-lo, como a de quem lesou um bem jurídico que, ainda sem a sua intervenção, restaria igualmente prejudicado por fatores exógenos. A avaliação de Kaufmann é construída sobre marcos implícitos de reprovação, por considerar que a reprovação social não há de ser igual para quem dá morte ao moribundo e para quem subtrai a vida de pessoa completamente sã. Sobre recusar aos cursos causais hipotéticos a nota da exclusividade na determinação da realização dos riscos, o sistema diferencial de Kaufmann revela-se como instrumento facultativo de regulação punitiva, à disposição do exegeta e do julgador, que poderá excluir ou diminuir a reprimenda conforme a idoneidade do bem jurídico atacado; eis sua faceta positiva. Por outro lado, tende a atrair, para a etapa jurídico-normativa do juízo de subsunção típica, elementos inerentes a outras instâncias gnoseológicas da infração penal, como a culpabilidade (que encerra o juízo de reprovação social) e a punibilidade (em cujo bojo tem assento a dosimetria da pena), em franca subversão metodológica; acresça-se a isso a pungente crítica de Alvarado [19], reconhecendo no sistema de regulação punitiva de Kaufmann - com reflexos na própria imputação objetiva - pernicioso vínculo de dependência com a sorte e outros fatores fortuitos, de todo alheios à atuação do autor(como é fortuita, e.g., a existência de um curso causal paralelo que produziria o resultado letal se o assassino não houvesse agido, conquanto tenha ele efetivamente agido, imbuído do mesmo "animus necandi" que informa a conduta de qualquer assassino), e por isso inadequados à formação de um juízo seguro de imputação objetiva. Eis a faceta negativa do sistema de Kaufmann, que induz Alvarado a considerar equivocado o emprego dos cursos causais hipotéticos como instrumento facultativo de diminuição punitiva, na esteira de Jürgen Baumann e Günther Jakobs, entre outros [20].
Nesse passo, insta consignar, com acréscimos, as razões de Yesid Alvarado para insurgir-se contra o emprego em geral dos cursos causais hipotéticos em sede de imputação objetiva, com as quais comungamossem reservas quaisquer [21]. O Direito Penal, como subsistema jurídico e como ciência dogmática - ali, porque deve preservar a segurança jurídica, e aqui, porque deve gozar de coerência científica - atém-se, por princípio, apenas àquilo que efetivamente aconteceu enão ao que poderia ter acontecido, exatamente porque a hipótese não verificada - notadamente nos cursos causais hipotéticos - traz consigo, indelevelmente, algum teor de arbitrariedade daquele que a formula. O arbítrio do analista revela-se mesmo quando o comportamento real é mentalmente substituído não por outra conduta qualquer,mas por uma conduta conformada ao Direito, porque é virtualmente impossível determinar com exatidão toda a cadeia de acontecimentos que teria lugar sob circunstâncias outras que não as realmente havidas (assim, se aos membros do conselho diretor de uma empresa imputam-se a deliberação de manter no mercado determinado produto tóxico e os resultados danosos para o público consumidor, substituir a conduta de um deles pela conduta ajustada ao Direito - i.e., alterar-lhe o teor do voto em favor da retirada do produto - somente excluiria o resultado desvalido, de molde a considerá-lo realização do risco criado por esse único membro, se arbitrariamente considerássemos que outros membros o acompanhariam, porque do contrário a substituição seria inócua, tendo-se em conta que as deliberações são majoritárias). Nada obstante, Alvarado admite, com Günther Jakobs,a utilização dos cursos causais hipotéticos não para definira relação de realização de riscos, mas para demonstrá-la [22]. Essa função auxiliar presta-se não apenas à judicatura, no plano jurídico-normativo (imputação objetiva), mas também à atividade legiferante, no plano físico-causal; não por acaso, os tipos penais proibitivos são construídos a partir do conteúdo empírico do elenco de experiências passadas, que aponta para as condutas tendentes à frustração de expectativas sociais por desencadearem leis causais que culminam com o menoscabo de bens jurídicos relevantes.
Dessarte, a par das críticas que lhe são feitas, o emprego dos cursos causais hipotéticos tem utilidade instrumental: no âmbito judicial, servem como subsídio retórico para a determinação da realização de riscos reprovados e, no plano legislativo, justificam a exigência de determinadas formas de comportamento, uma vez que as expectativas de comportamento social, institucionalizadas por intermédio das leis, emergem das regras de causalidade (usualmente leis causais perfeitas) apreendidas com a ajuda dos cursos causais hipotéticos, indicativos dos resultados que podem chegar a ser relevantes desde o ponto de vista jurídico-penal [23].
Registre-se, por oportuno, a opinião de alguns autores (Eberhard Struensee, Arthur Kaufmann) que fazem o juízo de imputação objetiva depender do caráter doloso ou culposo que apresente o ilícito penal investigado; nas infrações culposas, a determinação da realização de riscos haveria de ser fundamentada, invariavelmente, com o emprego de cursos causais hipotéticos, enquanto que, nas infrações dolosas, os cursos causais hipotéticos teriam uma única serventia: atenuantes de punibilidade (de cognição extrínseca, pois, à própria entidade delitual). Certamente, esse entendimento não é razoável. A uma, porque aos cursos causais hipotéticos não deve incumbir, sequer, a função de circunstância atenuante genérica, porque não são, a rigor, circunstância; são meras hipóteses, inverificáveis na prática, porque não consumados (do contrário, não seriam hipotéticos, mas reais). Se, na esteira da crítica já tecida, vincular o juízo de imputação objetiva ao emprego de cursos causais hipotéticos é relativizá-lo ao talante da fortuna - boa ou má - do acusado, pelo mesmo motivo não convém lhe seja atenuada a pena porque pendia, casualmente, um curso causal de reserva [24]. Com maior razão, e diante de tudo quanto exposto nos parágrafos anteriores, nas infrações penais culposas (como em nenhuma espécie de infração penal) a imputação objetiva independe da formalização discursiva de cursos causais hipotéticos. A duas, peca a tese por confundir instâncias intelectivas diversas: a imputação objetivadecorre de um juízo autônomo, diverso daquele que, no processo de subsunção, segue-lhe logica e cronologicamente, para a aferição do caráter doloso ou culposo do ilícito (imputação subjetiva).
Sob a locução "emprego de cursos causais reais" reúnem-se todas as teses desenvolvidas para determinar a realização de riscos com base na avaliação dos fatos tal como ocorridos, prescindindo, no âmbito da imputação objetiva, dos cursos causais hipotéticos (que, nada obstante, seguem predominando em doutrina e jurisprudência alemãs). Nesse ambiente, ganharam força conceitos como os deevitabilidade,conducibilidadeedominabilidade, neologismos que significam, respectivamente, a capacidade de o agente evitar, conduzir e dominar a sucessão fenomenológica. Um resultado não poderia ser imputado à pessoa senão quando essa tivesse a possibilidade de dominar o acontecimento e de conduzi-lo até o resultado finalmente produzido, o que equivaleria à possibilidade de, em o desejando, evitar tal resultado (daí porque, v.g., não se imputa ao sobrinho a morte do tio que morre em desastre aéreo a que não deu causa o primeiro, e que tampouco poderia evitar, ainda quando tenha convencido seu tio a viajar com a única intenção de vê-lo morto em ocasional acidente). Sobre a dominabilidade, põe-se a crítica de que, em sede de imputação objetiva, interessa não o que o agente podia fazer, mas o que devia fazer, à luz dos conteúdos de exigibilidade pessoal; essa crítica, porém, merece algum reparo, mormente em tema de autoria mediata e à vista da teoria do domínio do fato [25]. Os três conceitos são refutados por Alvarado, a despeito de seu interesse para o legislador penal, ante sua inaptidão para a determinação de realização de riscos [26].
A par daqueles conceitos, vem à baila, no estudo dos cursos causais reais e suas implicações, a noção de previsibilidade, opondo-se a objetiva - referível ao "homo medius" - à subjetiva. Na imputação objetiva, como alhures esclarecido, tem assento o aspecto axiológico da previsibilidade objetiva, à qual recorrem diversos autores (Jürgen Baumann, von Buri, Jesús-María Silva Sánchez, Torio López etc.), remanescendo no âmbito da relação de causalidade, segundo propugnamos, o seu aspecto puramente estatístico e empírico. Cumpre distinguir, porém, entre previsibilidade do resultado e previsibilidade do curso causal do evento;são conceitos diferentes, ambos relevantes para a determinação da realização do risco [27]. Assim, quem atropela alguém pode objetivamente prever a morte da vítima (resultado), mas não pode prevê-la como decorrência de uma infecção hospitalar causada por rara bactéria (curso causal do evento). A doutrina tende a considerar unicamente a previsibilidade do resultado, de caráter genérico,tomando-a como elemento essencial do dever objetivo de cuidado nos crimes culposos; todavia, essa forma de previsibilidade nada tem a ver com a criação de riscos em si mesma, porque - já se o disse - o improvável é, não raras vezes, previsível, cabendo aqui a mesma crítica antes feita à tese da relação de inadequação proposta para o emprego de cursos causais hipotéticos com função cognitiva. Tal consideração precipita, amiúde, a confusão de momentos lógicos que não podem ser identificados, como são os de criação de riscos reprovados e de realização desses riscos: se o motorista imprime velocidade excessiva ao seu veículo, cria risco juridicamente relevante, que todavia não se materializa no resultado desvalido, se é a vítima quem, num impulso suicida, lança-se da calçada para a pista de rolamento com a intenção de se ver atropelada (a morte é a concreção do risco criado pela própria vítima, não do risco criado pelo condutor; conseqüentemente, não será imputada ao motorista, apesar da condução irregular); nada obstante, em termos de previsibilidade, insta reconhecer que, dirigindo em alta velocidade, ao condutor era previsível um atropelamento, o que redundaria em imputar-lhe o homicídio culposo.
Vê-se, desde logo, que o recurso à previsibilidade objetiva é inseguro e de pouca conveniência. Interessa averiguar, em tema de imputação objetiva, se o comportamento do agente defraudou legítimas expectativas sociais, conforme seu âmbito de competência e o respectivo conteúdo de exigibilidade pessoal, de maneira a criar ou incrementar um risco juridicamente reprovado; num segundo esforço, interessa averiguar se o resultado desvalido corresponde à concreção fenomênica - nos delitos de resultado - daquele risco. Nesse contexto, perde qualquer serventia a noção de previsibilidade objetiva do resultado lesivo. Ainda com respeito à previsibilidade, a jurisprudência alemã compendia curioso caso em que a vítima, empurrada por seu sobrinhode um sítio elevado,sofreu fratura do tornozelo; ato contínuo, internada em hospital por longo tempo, apresentou embolia pulmonar e morreu devido ao erro médico em diagnosticar esse mal. A Suprema Corte alemã imputou a conduta do réu ao tipo penal de homicídio culposo, por entender previsívela morte naquelas circunstâncias.
Observa-se, a propósito, que afirmar a previsibilidade objetiva de um resultado, em relação ao autor, depende em larga medida da pergunta formulada durante o processo de intelecção. Vem à baila, para melhor dizê-lo, novo caso extraído da jurisprudência alemã: à noite, um caminhão avançava pela rodovia com a lanterna esquerda posterior danificada; uma patrulha policial, apercebendo-se da irregularidade, perseguiu o caminhão e determinou ao condutor que se detivesse no acostamento direito da rodovia; uma vez detido o veículo, um dos policiais multou o condutor, enquanto outro providenciou, para a sua retaguarda, luz vermelha de sinalização; ordenou-se que o motorista, escoltado, avançasse até o próximo posto de serviços, onde a lanterna deveria ser reparada; entretanto, antes que o caminhão iniciasse sua marcha, um dos policiais retirou a luz de alerta que havia sido antes colocada, ensejando, ato contínuo, que outro caminhoneiro, imaginando tratar-se de uma motocicleta estacionada ao lado da pista (porque se observava um único foco de luz vermelha, em virtude do comportamento açodado do policial), colidisse violentamente contra a traseira do veículo detido, com vítima fatal [28]. Alvarado observa, com razão, que a imputação dessa morte ao motorista, segundo o critério de previsibilidade objetiva, dependeria fundamentalmente da pergunta formulada: perguntássemos se conduzir à noite sem uma das lanternas traseiras pode produzir, conforme a experiência comum, acidentes mortais, dir-se-á que sim, sendo então previsível o resultado e por isso mesmo imputável ao condutor; perguntássemos, porém, se de acordo com a experiência comum um agente policial portar-se-ia de tal modo insensato, retirando a luz de alerta antes mesmo da manobra do caminhão, dir-se-á que não, sendo o resultado imprevisível e por isso impassível de imputação ao condutor. O Supremo Tribunal Federal alemão optou pela primeira formulação, condenando o condutor por homicídio culposo (revelando-se, nessa passagem, o elevado grau de arbítrio que inspira as decisões calcadas na previsibilidade objetiva, de modo a assimilar, no que tem de temerário, esse critério - de cursos causais reais - e todos aqueles de cursos causais hipotéticos).
Na verdade, a tese da previsibilidade acabou por amparar diversos julgados que, na realidade, revisitavam o vetusto princípio do "versari in re illicita"; assim, por exemplo, no caso em que o condutor, em realizando ultrapassagem irregular, foi surpreendido por defeito oculto em uma das rodas durante a manobra, tendo ocasião, apenas por isso, grave acidente com vítimas fatais: a Suprema Corte alemã condenou o motorista sob o argumento de que o resultado era previsível, abstraindo o fato de que, na realidade, os eventos letais não eram a materialização do risco criado (ultrapassagem irregular), mas a concreção de um fortuito (defeito oculto da roda), classificável como risco geral da vida, inerente à sociedade tecnológica. Puniu-se o motorista, à vista da inegável relação causal (porque é indubitável que a conduta do motorista, em dirigindo seu veículo, foi a causa física de todas as mortes), apenas porque incorreu em coisa ilícita - manobra de trânsito indevida - ainda que os eventos letais não guardassem qualquer relação com o ilícito, sendo meras concreções do fortuito [29]. Sobrevém ainda a crítica de que a previsibilidade objetiva, como critério para determinação da realização de riscos,faz apenas trazer para a imputação objetiva vezos próprios da teoria da causalidade adequada,que de maneira vaga buscava identificar a causa adequada mediante a experiência geral da vida [30]. Como último argumento, evoca-se ainda o princípio da incerteza, hauridoda Física teórica, que deita raízes no mundo subatômico [31] mas se projeta para a realidade das relações sociais, assinalando as intransponíveis dificuldades que se apresentam ao ser humano no ato de prever o comportamento do universo e de tudo quando nele se encontra. Por tudo isso, se reconhecemos que elementos antes afeitos à teoria da causalidade adequada tal como concebida por von Bar e von Kries - nomeadamente, a manifestação ético-normativa da previsibilidade objetiva e o requisito da diligência devida - devem estar radicados, implicitamente, no juízo de imputação objetiva, pontificamos, de outra parte, sobre a inconveniência da previsibilidade objetiva como critério para a determinação de realização de riscos, por sua insegurança e dubiedade; e, nesse pormenor, acompanhamos, ainda uma vez, Yesid Alvarado.
Refutados, em sua utilidade e conveniência, todos os critérios de cursos causais hipotéticos e os dois primeiros critérios de cursos causais reais (evitabilidade - como consectário da conducibilidade e da dominabilidade - e previsibilidade objetiva), apresenta-se-nos um terceiro critério, também assentado na análise de cursos causais reais, que haveremos de perfilhar, doravante, para a determinação da realização do risco. Esse terceiro critério - o da explicação do dano - suplanta qualitativamente todos os anteriores, mormente porque, a par de abolir o temerário raciocínio hipotético, fia-se no discernimento lógico do exegeta, reduzindo ao máximo seu espaço de arbítrio (conquanto não se negue que, assim como qualquer interpretação é inspirada, ainda que perfunctoriamente, por uma ideologia ou por um arcabouço ético-cultural, também qualquer julgamento, ainda que veladamente, encerra alguma discricionariedade do magistrado [32]). Superada a instância causal (e emitido, a respeito, um juízo positivo), não mais se pergunta qual foi a "causa" do resultado; põe-se, ao contrário, a seguinte indagação: o resultado desvalido é a concretização de um risco juridicamente reprovado vinculado a alguma conduta? A questão insere-se pragmaticamente, nas análises de imputação objetiva, quandoa criação de riscos reprovados por parte da vítima concorre com a o autor;e aqui, observe-se, tem lugar uma avaliação legítima que, em leituras mais canhestras, seria assimilada à compensação de culpas, por princípio impraticável em Direito Penal [33]. Diante desse quadro, caberá ao operador jurídico estabelecer qual dos riscos realizou-se no resultado desvalido, o que importa em sacar do plano subjetivo todo o teor analítico do processo intelectivo; se, no entanto, para o resultado concorreram ambos os riscos criados e/ou recrudescidos, então a subsunção típica tomará em consideração apenas as manifestações fenomênicas que correspondem à concreção do risco derivado da conduta do acusado.
Salta aos olhos a diversidade entre os planos ontológico e jurídico-normativo, a partir dessa inferência, no seguinte exemplo: "A", numa altercação, atinge seu desafeto, "B", com arma branca - pouco importando se o autor tinha ou não intenção de causar-lhe a morte (o que desata, nesse ínterim, qualquer vínculo analítico com o plano da imputação subjetiva) - sem ter conhecimento de que uma terceira pessoa ("C"), também desgostosa com a pessoa da vítima, embebeu sua lâmina em potente veneno, em função do qual a vítima vem a falecer dias depois. Não está em dúvida que, do ponto de vista naturalístico, o evento letal - e não apenas as lesões corporais - é o efeito de que a investida de "A" é a causa [34]; inegável, pois, que "A" deu causa à morte de "C" ao atingi-lo com a arma branca envenenada (e a instância causal é imprescindível porque, numa variação do exemplo, se o veneno houvesse sido inoculado em "B" antes da altercação, mediante ingestão induzida por "C", então sequer haveria relação de causalidade entre a conduta de "A" e a morte de "B", o que definiria o juízo negativo de subsunção ao tipo penal de homicídio, antes mesmo de qualquer cogitação em torno da imputação objetiva do resultado desvalido, por não atribuível o evento letal a "A"). Nada obstante, apenas as lesões corporais corto-perfurantes, inidôneas (em nosso exemplo) para a causação da morte, são a concreção do risco ilícito criado por "A"; o resultado morte, à sua vez, é concreção do risco reprovado a que deu origem "C" e, por conseguinte, não admite imputação a "A". Apenas as lesões corporais são manifestações fenomênicas correspondentes à concreção do risco derivado da conduta do autor.
O exemplo também permite pôr à prova a independência entre os momentos lógicos da imputação objetiva e da imputação subjetiva: imagine-se, em uma nova variação, que "A" tivesse franca intenção de matar "B", sem no entanto lograr feri-lo mortalmente com a arma branca; todavia, em face do veneno em que a lâmina havia sido embebida por "C", "B" vem a falecer - não por hemorragia ou falência de órgãos internos, mas por envenenamento. No plano subjetivo, havia o "animus necandi" (dolo genérico para a imputação subjetiva da conduta ao tipo penal de homicídio); ocorre, porém, que no momento lógico anterior, quando se afere a imputação objetiva, o mesmo raciocínio antes expendido - sobre a concreção dos riscos criados - permite imputar a "A", tão somente, as lesões corto-perfurantes, mas não o evento letal. Essa imputação (objetiva), aliada àquela imputação subjetiva, ensejará, atendidos os demais pressupostos, a condenação por tentativa de homicídio; jamais, porém, por homicídio consumado - conclusão lógica que não se alcança, como visto, nem pela via da causalidade, nem pela via da imputação subjetiva, pois numa ou noutra abordagem o evento letal é referível à pessoa de "A". "C", de outra parte, poderá ser condenado por homicídio culposo, porque o evento letal é a concreção do risco ilícito que gerou; e nem se diga que essa solução é ambígua ou contraditória, porque o pensamento doutrinal brasileiro admite, de há muito, que nas hipóteses de autoria colateral em tema de homicídio - similar ao exemplo narrado, embora não idêntica, porque na narração "C" tinha conhecimento da conduta de "A", conquanto a recíproca não se verificasse - um indivíduo há de responder por homicídio consumado e outro, por homicídio tentado (é que, não havendo unidade de desígnios, não se impõe ao julgador reconhecer, para ambos, a mesma subsunção típica). Essa ordem de ponderações é ainda significativa em Direito Penal Ambiental, visto como a concorrência de riscos é, nesse âmbito, uma constante, notadamente em tema de poluição (tal como se vê nos fenômenos de adição, acumulação e sinergia).
Não se trata, insista-se, de autêntica compensação de culpas, tal como divisada pela doutrina tradicional, porque essa não tem aptidão para influir no juízo de imputação objetiva (ínsito ao fato típico), autorizando, quando muito, a atenuação da pena no âmbito da punibilidade, que não é elemento constitutivo do ilícito penal [35]. Nada obstante, certa doutrina mais recente não tem pudores em cuidar da compensação de riscos, no âmbito de subsunção típica. Nesse sentido, não sem alguma restrição, Günther Jakobs [36].
Pelo critério da explicação do dano, pode-se determinar a realização dos riscos, independentemente dos cursos causais hipotéticos,a partir da seguinte enunciação, tomada de Alvarado [37]: "quando sem a conduta geradora de um risco reprovado é impossível explicar o resultado penalmente relevante, estaremos diante de um comportamento que, havendo produzido um risco juridicamente reprovado, realizou-se no resultado"; por outro lado, se não é possível determinar a realização do risco juridicamente reprovado em um resultado penalmente relevante - por ser, "a contrario sensu", possível explicar o resultado penalmente relevante sem a conduta e o risco por ela gerado ou incrementado - impõe-se a absolviçãodo réu, ainda que não se possa identificar, com certeza, qual outro risco (que pode ser um risco geral da vida, um risco permitido ou mesmo outro risco reprovado, porém dimanado de conduta alheia) materializou-se naquele resultado ("in dubio pro reo"). Nesse diapasão, para estabelecer se o risco reprovado concretizou-se em um resultado penalmente relevante, ao julgador cumpre, em seu processo intelectivo, ter em conta: a.)a conduta do réu;b.)a conduta da vítima(o que revitaliza e acresce em importância os subsídios hauridos da vitimologia) [38]; c.)os riscos gerais da vida (de que o resultado desvalido pode, conforme as circunstâncias, ser a concreção), que compreendem as hipóteses de caso fortuito e força maior em Direito Penal, agora devidamente situadas na Teoria do Crime.
Segue-se, a propósito, novo exemplo de Alvarado [39], com feitio ambiental (ainda uma vez, meio ambiente do trabalho), extraído da jurisprudência alemã (Tribunal Superior de Karlsruhe): empresa coletora de lixo contrata, por intermédio de seu encarregado, menor de idade para a recolha do lixo, atividade insalubre e por isso vedada a menores [40], criando risco juridicamente relevante;no entanto, sobrevinda a morte do menor, constata-se que ela não se deveu à sua inexperiência ou à sua condição somática, mas apenas porque o motorista que conduzia o caminhão de lixo retrocedeu bruscamente com o veículo, derrubando-o ao chão e esmagando-o (tal como teria ocorrido com qualquer outro trabalhador, nas mesmas circunstâncias, a despeito da idade). Óbvio é que o resultadonão é materialização do risco reprovado gerado pelo encarregado ou pela própria empresa,mas do risco criado pelo motorista; aos primeiros, por conseguinte, não se imputa o resultado lesivo; do contrário, falecesse o menor por moléstia adquirida na manipulação do lixo, devido à sua baixa resistência orgânica, e a conduta negligente do encarregado, do empresário e/ou da pessoa jurídica, nos sistemas que a admitem, seria imputada ao tipo penal de homicídio culposo. Elucidativos, ainda, os seguintes exemplos, do mesmo autor: médico realiza intervenção ilícita para abortamento, ocorrendo em seu curso à morte da paciente, sem que houvesse, da parte do esculápio, negligência, imprudência ou imperícia, porque se ateve a todas as técnicas médicas aconselháveis ("Lex antes"); sua conduta será imputada ao tipo penal de aborto, nos sistemas que o prevêem, mas não ao tipo penal de homicídio. Se, por outro lado, houvesse o médico agido de maneira imprudente ou negligente, criando com sua intervenção desastrada risco ilícito em detrimento da vida alheia, a morte subseqüente seria concreção desse risco (desde que não decorresse, evidentemente, do fortuito - risco geral da vida), pelo que lhe seria imputável o evento letal extra-uterino (e não apenas a morte intra-uterina, nos países que a condenam).
Da mesma maneira, se "A", alvejado por "B" com disparos de arma de fogo, é encaminhado para hospital ante a alarmante perda de sangue, sobrevindo sua morte em virtude de inesperada infecção hospitalar (embora a bala tenha sido extraída normalmente), indagar-se-á então se a infecção era tal que somente acarretaria a morte de pacientes debilitados ("in caso", com a perda de sangue), ou se detinha letalidade bastante para vitimar qualquer paciente, ainda que não debilitado. Positiva a primeira resposta, tem-se que o resultado letal é concreção indireta do risco criado, sendo objetivamente imputável a "A";se, no entanto, é positiva a segunda resposta (sendo, por conseguinte, negativa a primeira), então a imputação não tem lugar, porque o evento letal é a concreção de um risco alheio (não derivado da conduta do autor), seja ele fortuito (infecção hospitalar inevitável - risco geral da vida) ou reprovado (infecção hospitalar evitável, adquirida ante a inobservância da "lex artis" pelo esculápio). À mercê do Código Penal brasileiro, dir-se-ia, ainda nesse exemplo, que se positiva a primeira resposta, a infecção seria causa dependente da ação original (disparos de arma de fogo), firmando-se o vínculo causal (art.13, caput, do Código Penal); todavia, positiva a segunda resposta, cuidar-se-ia de causa superveniente relativamente independente que produziu, por si só, o resultado (como no célebre exemplo da ambulância que, conduzindo o alvejado ao hospital, é violentamente abalroada no trânsito, com a morte do socorrido), elidindo o nexo causal. Sobressalta a superficialidade dessa solução, porque é patente que a relação de causalidade subsiste, num caso como noutro; sem os disparos de "B", "A" jamais teria sido vitimado, naquelas circunstâncias, por uma infecção hospitalar (fosse ela letal ou não, evitável ou não). O problema, insista-se, é de imputação - porquanto estamos convictos de que tanto o parágrafo 1º como o parágrafo 2º do artigo 13 do Código Penal brasileiro encerram regras de imputação objetiva e não regras de causalidade (que devem ser perquiridas pela doutrina, porque o caput limitou-se a enunciar a lei física de causa e efeito, com redação personalizada). E o derradeiro exemplo sobre realização de riscos, desta feita com Günter Jakobs [41]: se "A" subministra a "B" pílula venenosa para vê-lo morto, mas "B" morre engasgado com a pílula antes mesmo de ingeri-la por completo, então a conduta de "A" é imputada ao tipo de penal de homicídio com adequação típica de subordinação mediata por ampliação temporal (tentativa), não ao homicídio consumado.