II – Exercício da Função Normativa pelo Executivo
a) Função Normativa e Função Legislativa
Foi afirmado nas linhas acima que a produção de normas de conduta pelo Estado é usualmente identificada com a chamada função legislativa e conferida, nos sistemas constitucionais modernos, prioritariamente aos órgãos de representação democrática dos cidadãos (parlamentos, congressos, assembléias etc). A assertiva, conquanto não exatamente incorreta, mostra-se, ao menos no que tange ao Brasil, imprecisa.
De fato, a doutrina e a jurisprudência brasileiras sempre identificaram uma competência normativa ordinariamente conferida pelos diversos textos constitucionais ao Poder Executivo, em especial ao seu chefe máximo, o Presidente da República.
Sem dúvida, a competência normativa do Executivo sempre foi encarada como secundária ou derivada, isto é, dependente e limitada por parâmetros criados, de forma mais ou menos discricionária, pela lei emanada pelo Congresso Nacional a que a norma criada pelo Executivo deve, sempre, fazer referencia.
Assim, mostra-se possível asseverar que a função normativa mostra-se, em verdade, conceito distintodo que o de função legislativa, sendo cada um destes derivados com fundamento em critérios classificatórios diversos.
A distinção, parece-nos, foi muito bem ressaltada por GRAU (2.008, págs. 240-242) que, valendo-se de proposta da doutrina italiana, assim colocou o tema:
"Ao referir a função legislativa, Alessi (1978/6-7 e 14) indica ser ela construída – tal como venho afirmando – a partir de uma perspectiva subjetiva, decorrente da adoção do sistema de divisão dos poderes. Consagrada tal adoção, resta confiada a determinados órgãos a tanto predispostos a tarefa suprema de constituir (integrar) o ordenamento jurídico. A tais órgãos –que constituem o Poder Legislativo -, pois, na colocação de Alessi, resulta confiada a tarefa de emanar estatuições primárias, isto é, que valem por força própria. Mas – continua Alessi – ao Poder Legislativo está atribuída também a emanação de certos atos que não estão efetivamente voltados à integração do ordenamento jurídico, albergando, portanto, diverso conteúdo e diversa finalidade. Cumpre mencionar, neste passo, os atos legislativos que se refere como lei em sentido formal. Trata-se de estatuições primárias, na medida em que emanadas do Poder Legislativo, ainda que sem conteúdo normativo; leis, embora não possam ser caracterizadas como normas jurídicas. (...)
Alessi conclui sua exposição contrapondo as noções de lei e de norma. Norma é todo preceito expresso mediante estatuições primárias (na medida em que vale por força própria, ainda que eventualmente com base em um poder nao originário, mas derivado ou atribuído ao órgão emanente), ao passo que lei é toda estatuição, embora carente de conteúdo normativo, expressa, necessariamente com valor de estatuição primária, pelos órgãos legislativos ou por outros órgãos delegados daqueles. A lei não contem, necessariamente, uma norma. Por outro lado, a norma não é necessariamente emanada mediante uma lei. E, assim, temos três combinações possíveis: a lei-norma, a lei não-norma e a norma não-lei. (...)
A partir das colocações de Alessi podemos referir a função legislativa como aquela de emanar estatuições primárias, geralmente – mas não necessariamente – com conteúdo normativo, sob a forma de lei. A noção de função legislativa, assim, é tautológica, fundada sobre um conceito formal. (...)
É necessário apontar, de toda sorte, neste passo, que a distinção entre função normativa e função legislativa impõe-nos a manipulação de critérios distintos: a noção de função normativa pode ser alinhada desde a consideração de critério material; a de função legislativa apenas se torna equacionável na consideração de critério formal. (...)
Mais ainda – cumpre reter também -, entende-se como função normativa a de emanar estatuições primárias, seja em decorrência de exercício do poder originário para tanto, seja em decorrência de poder derivado, contendo preceitos abstratos e genéricos".
Infelizmente, as distinções ora traçadas não parecem ser comuns no direito constitucional norte-americano que, seja pela singeleza do texto de sua constituição seja pelas particulares formas de pensamento típicas em um sistema de common law, decide identificar os dois conceitos aqui traçados sob o nome de função (ou poder) legislativo, e reconhecê-la como atribuição típica do Congresso norte-americano.
A recusa em admitir a distinção entre função normativa e função legislativa nos EUA gerou um particular abalo no entendimento clássico sobre a teoria da separação dos poderes naquele país com a proliferação de órgãos e entes administrativos com uma acentuada competência normativa a partir da primeira metade do século XX, fenômeno a ser examinado no item precedente.
b) A Experiência Americana com as Agências Reguladoras Independentes
Como visto linhas acima, ainda que admitindo certo compartilhamento (ou cogerência) de funções típicas pelos diversos departamentos do governo (Poderes) da República, tanto a Constituição americana quanto a Brasileira trazem um claro esquema distributivo de competências. Nesse esquema básico, cabe ao Congresso o exercício da função normativa primária (legislativa ou legiferante), ao Presidente da República (Executivo), a aplicação das políticas públicas e leis traçadas pelo Congresso; aos Tribunais (Judiciário), a solução de controvérsias concretas quanto à aplicação do direito e o controle de constitucionalidade da atividade legiferante desenvolvida pelo Congresso, bem como da legalidade do exercício da função administrativa pelo Executivo.
Ocorre, todavia, que a primeira metade do século XX trouxe uma nova experiência jurídico-administrativa nos Estados Unidos da América, manifestada pela proliferação de entes administrativos com ampla competência normativa sobre determinados setores da economia americana, as chamadas agências regulatórias independentes.
Em verdade, o primeiro dos entes administrativos a possuir competência normativa sobre um setor econômico nos EUA foi criado ainda no final do século XIX, com a promulgação do Interstate Commerce Act em 1.887. A lei (act) previu a criação de uma comissão federal com poderes para regular preços máximos para tarifas cobradas por companhias que exploravam ferrovias, critérios de segurança para os serviços prestados, bem como outras competências regulatórias técnicas e econômicas [12].
Nada obstante, há consenso na doutrina americana no sentido de que as políticas trazidas no bojo do plano de recuperação econômica denominado New Deal pelo Presidente Franklin D. Roosevelt marcaram o momento crucial das chamadas agências reguladoras independentes como as entendemos hoje (BREYER, 2.008. Pág. 18).
As agências reguladoras criadas como instrumento para a efetivação das medidas jurídico-econômicas trazidas pelo New Deal foram dotadas pelo Congresso Americano com um amplo poder normativo, com competência para baixar atos que não poderiam ser tidos como mero "preenchimento de detalhes" de atos legais promulgados pelo Congresso [13].
Em verdade, o Congresso concedeu a várias agências criadas nos EUA competências amplas como estabelecer requisitos técnicos básicos para a prestação de alguns serviços, instituir preços máximos (price caps) para os serviços prestados e mesmo para impor regras de negociação de salários e benefícios com os empregados das companhias reguladas.
Sucede, contudo, que parece ter sido uma constante nos EUA o entendimento de que a interferência estatal na propriedade privada e na rotina estabelecida pelas forças de um mercado livre há de ser operacionalizada por meio de lei aprovada no Congresso, descabendo, portanto, ao Executivo imiscuir-se originalmente (e por sua conta e risco) em tais searas [14].
Perceba-se, ademais, que ao contrário da atual constituição brasileira, a constituição americana não previu a possibilidade de leis delegadas (menos ainda o instrumento das chamadas medidas provisórias), devendo toda lei provir necessariamente do Congresso.
Assim, a expressão do artigo 1º, I, da constituição norte-americana que alocou "todo o poder legislativo" no Congresso foi tradicionalmente interpretada pela Suprema Corte como incompatível não só com a criação de direitos e obrigação por entes administrativos sem respaldo direto em lei em sentido formal, mas também com a transferência (delegação) voluntária de tal poder pelo Congresso.
De fato, já no caso Shankland vs. Corporation of Washington (1.831) a Suprema Corte pronunciou-se no sentido de ser "um princípio geral de direito que o poder delegado não pode ser mais uma vez delegado [por seu delegatário originário] [15]".
Mais especificamente, desde 1.892, ao julgar o caso Field vs. Clark, a Suprema Corte assentou entendimento no sentido de que o Congresso não pode delegar seu poder legislativo, sendo este princípio "universalmente reconhecido como vital para a integridade e manutenção do sistema de governo traçado pela Constituição [16]".
Assim, uma objeção teórica (e, nos EUA, bastante concreta por meio de sucessivos desafios judiciais) ao exercício de funções normativas pelas agências se deu pela chamada doutrina da indelegabilidade de poder legislativo (non-delegation doctrine), questão a ser exposta com mais detenção em seção subseqüente do presente trabalho.
b) Função Normativa do Executivo no Brasil
b.1) Idéias Gerais, Lei Delegada e Medida Provisórias com Força de Lei
No Brasil, a primeira constituição republicana e as subseqüentes promulgadas em períodos democráticos (ou seja, a de 1.946 e de 1.988) buscaram inspiração no modelo norte-americano, promovendo, contudo, sensíveis modernizações a um texto composto no final do século XVIII.
Nesse passo, a arquitetura básica para a repartição de competências da União observou de forma geral o exemplo de separação de poderes e freios e contrapesos posto em prática pelos americanos em 1.787. Nada obstante, desde a Constituição brasileira de 1.891 foi reconhecida de forma expressa ao Poder Executivo uma competência reguladora das normas gerais e abstratas promulgadas pelo Congresso Nacional [17].
Infelizmente, as aventuras autoritárias da política brasileira nos períodos entre 1.930-1.945 e 1.964-1.988 implicaram um agigantamento do Poder Executivo, de maneira que, mesmo em momentos em que a estrutura constitucional da separação de poderes permanecia formalmente vigente (como entre 1.934-1.937 ou 1.964-1.968), o uso da força coercitiva do Executivo contra os demais poderes estatais tornava qualquer estudo sobre normas constitucionais políticas inócuo face à realidade política observada.
De qualquer maneira, a última restauração do Estado de Direito no país com a promulgação da Constituição Federal de 1.988 restabeleceu a fórmula clássica de separação de poderes e freios e contrapesos tradicionalmente afirmada em nossa história constitucional [18].
De se notar, entretanto, que a atual matriz constitucional previu uma ampla atividade normativa do Poder Executivo, não apenas no que tange ao tradicional poder de regulamentar as leis com a expedição de decretos para seu fiel cumprimento (art. 84, VI), mas também hipóteses em que o Presidente participa (ou pode participar) ativamente do processo de criação de leis em sentido estrito.
De fato, resgatando uma hipótese prevista inicialmente na Constituição Federal de 1.946 em seu texto emendado, a CF/88 previu a possibilidade de elaboração leis delegadas (art. 68), um instrumento desconhecido na prática norte-americana.
A delegação prevista na atual CF/88 deve ser requisitada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional que, anuindo com o pedido, concede-a por meio de resolução própria, trazendo os parâmetros fundamentais do diploma legislativo a ser editado pelo Executivo.
Ressalta-se que, embora a delegação feita pelo Congresso Nacional seja provisória e pontual, uma vez operada, resulta em diploma legislativo com exatamente a mesma forma e natureza das leis ordinárias produzidas em conjunto pela Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Perceba-se que o modelo previsto no Brasil é frontalmente contrário ao esquema teórico traçado por Montesquieu, que divisava para o Executivo apenas competências legislativas negativas, isto é, capacidade para vetar iniciativas do parlamento que contrariassem o interesse público ou a constituição do país.
No modelo adotado para a lei delegada, há verdadeiro exercício de função legislativa positiva pelo Presidente da República, com o consentimento expresso e prévio do Congresso Nacional.
Sobre a matéria, interessante a opinião dada Alexandre de MORAES (2.009, págs. 688-689) em que o ponto é abordado, verbis:
"Ressalte-se, pela importância, o caráter temporário da delegação, que jamais poderá ultrapassar a legislatura, sob pena de importar em abdicação ou renúncia do Poder Legislativo a sua função constitucional, o que não será permitido. Esta característica de irrenunciabilidade da função legiferante permite que, mesmo durante o prazo concedido ao Presidente da República para editar a lei delegada, o Congresso Nacional discipline a matéria por meio de lei ordinária. Além disso, nada impedirá que, antes de encerrado o prazo fixado na resolução, o Legislativo desfaça a delegação. Retornando a resolução ao Presidente da República, este elaborará o texto normativo, promulgando-o e determinando sua publicação, uma vez que se a ratificação parlamentar não for exigida, todo o restante do processo legislativo se esgotará no interior do Poder Executivo (delegação típica ou própria)".
(destaques no original)
Inovação ainda mais original em relação ao modelo previsto pelos norte-americanos em 1.787 se deu com a criação das chamadas medidas provisórias com força de lei pela Constituição Federal de 1.988.
Nessa espécie normativa, o Presidente da República encontra-se livre para editar unilateralmente normas primárias com eficácia vinculante imediata sem o consentimento prévio do Congresso Nacional, sobre uma gama enorme de assuntos da mais alta relevância.
A criação da medida pelo artigo 62 da CF/88 foi, como previsivelmente seria para qualquer observador atento do caráter político do Poder Executivo nacional, verdadeira porta de entrada do Presidente para o processo legislativo ativo no país.
De fato, apenas para o período compreendido entre 1999-2002, 57,8% das leis aprovadas no Brasil tiveram sua origem no Executivo, sendo 28% resultaram da conversão de medidas provisórias pelo Congresso Nacional [19].
As reformas constitucionais feitas em 2001 sobre a matéria não parecem haver surtido grande efeito sobre o ritmo de produção de medidas provisórias pelos sucessivos presidentes brasileiros, que, com o uso do instrumento, operaram verdadeiro seqüestro da agenda normativa do Congresso Nacional.
Por fim, perceba-se apenas que, se na lei delegada o Congresso Nacional exerce ao menos um critério prévio sobre a parcela de competência legislativa concedida ao Presidente, a medida provisória vige desde sua publicação unilateral, e, mesmo quando eventualmente não aprovada a posteriori pelo Legislativo, pode permanecer regendo as situações constituídas sob a sua égide por tempo indeterminado [20].
b.2) Poder Regulamentar no Brasil.
Já foi dito alhures no presente trabalho que no Brasil, distintamente do observado nos EUA, sempre foi reconhecida uma competência normativa do Poder Executivo (em especial, de seu chefe máximo, o Presidente da República) para baixar atos destinados a "detalhar" as normas gerais e abstratas estabelecidas pela lei criada pelo Congresso.
A competência normativa do Executivo ora mencionada sempre foi encarada, contudo, como dependente de um texto normativo legal (isto é, oriundo do Poder Legislativo e aprovado segundo as normas de processo legislativo constitucionalmente previstas), ao qual devia obediência.
À competência normativa do Executivo nos moldes salientados consensou-se dar o nome de poder regulamentar, sendo seu principal fruto o chamado decreto de execução baixado pelo Presidente da República.
Veja-se, por exemplo, o que dizia Hely Lopes MEIRELLES (2.009, págs. 129-130), administrativista brasileiro de inegável filiação à escola clássica sobre a função normativa do Executivo desempenhada por meio do poder regulamentar:
"O poder regulamentar é a faculdade de que dispõem os Chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) de explicar a lei para sua correta execução, ou de expedir decretos autônomos sobre a matéria de sua competência ainda não disciplinada por lei. É um poder inerente e privativo do Chefe do Executivo (CF, art. 85, IV), e, por isso mesmo, indelegável a qualquer subordinado. No poder de chefiar a Administração está implícito o de regulamentar a lei e suprir, com normas próprias, as omissões do Legislativo que estiverem na alçada do Executivo. Os vazios da lei e a imprevisibilidade de certos fatos e circunstâncias que surgem, a reclamar providências imediatas da Administração, impõem se reconheça ao Chefe do Executivo o poder de regulamentar, através de decreto, as normas legislativas incompletas, ou de prover situações não previstas pelo legislador, mas ocorrentes na prática administrativa. O essencial é que o Executivo, ao expedir regulamento – autônomo ou de execução da lei – , não invada as chamadas ‘reservas da lei’, ou seja, aquelas matérias só disciplináveis por lei, e tais são, em princípio, as que afetam as garantias e os direitos individuais assegurados pela Constituição (art. 5º)".
(destaques no original)
Nesse passo, e resgatando as idéias já desenvolvidas no presente trabalho, pode-se ter como premissa que o chamado poder regulamentar do Executivo, pode ser enquadrado no conceito de função normativa descrito linhas acima. De se notar, contudo, que sua natureza é consensualmente tida como subordinada ao produto da função legislativa exercida pelo Congresso, isto é, as leis em sentido formal devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo.
b.3) A Criação de Agências Reguladoras no Brasil: Nova Forma para um Velho Problema
As agências reguladoras independentes são, ao menos formalmente, fenômeno recente no Brasil.
Em verdade, a idéia de entes administrativos dotados de poder normativo sobre determinados setores econômicos não é exatamente nova no pais, mas apenas a reunião em um só ente de uma competência mais ampla, anteriormente dispersada por vários órgãos da Administração Pública brasileira. Veja-se, a propósito, a breve observação de Marçal JUSTEN FILHO (2.009, pág. 584) sobre o ponto ora destacado:
"A figura das agências reguladoras se insere no processo de dissociação entre a prestação de serviços públicos e sua regulação. Mais ainda, é resultado da proposta de assegurar que a disciplina dos serviços públicos seja norteada por critérios não exclusivamente políticos. É usual considerar as agências reguladoras como fenômeno inovador. E alguns reprovam tais novidades, imputando-lhe o cunho de inconstitucionalidade. No entanto, as inovações trazidas, isoladamente consideradas, são muito reduzidas. A maior parte das ‘novidades’ já se encontrava em instituições administrativas brasileiras muito antigas. Talvez, a grande inovação trazida pela proposta das agências reguladoras seja a concentração em uma única instituição autárquica de diversas características que existiam isoladamente em certos órgãos".
De qualquer forma, as chamadas agências reguladoras independentes foram criadas no Brasil em movimento contemporâneo ao processo de "retirada do Estado" do desempenho direto de várias atividades econômicas e serviços públicos, comumente denominado "privatização [21]".
As primeiras agências reguladoras foram criadas para disciplinar um setor de prestação de serviços públicos (os geração, transmissão e distribuição de energia elétrica) e uma atividade até então desenvolvida em regime de monopólio público (a prospecção e refino de petróleo e seus derivados) na segunda metade dos anos 1990.
Nesse passo, ainda que sem uma uniformidade na sua conformação jurídica, o Legislador brasileiro definiu um parâmetro mais ou menos similar para as várias agências criadas no impulso de "privatização". Primeiro, foram todas criadas como autarquias federais incumbidas de um setor específico (energia elétrica, telecomunicações, petróleo e gás etc.). Segundo, foram dotadas de diretorias colegiadas, formadas por membros com mandato fixo e estabilidade relativa, apontados pelo Presidente e submetidos à aprovação do Senado Federal.
Por fim, todas as agências reguladoras foram dotadas de competência normativa (de grau bastante variável de acordo com cada lei de criação específica) para disciplinar seus setores, sempre tendo como parâmetro as balizas trazidas em suas leis de criação.
A adoção no Brasil de sistema semelhante (na forma e denominação, mais do que no conteúdo) ao praticado nos Estados Unidos levou, previsivelmente, a um profundo questionamento sobre a compatibilidade do exercício de poder normativo por entes administrativos com a realidade constitucional brasileira.
Perceba-se, nesse passo, que, como já visto acima, o reconhecimento do chamado poder regulamentar do Executivo no Brasil é fato incontroverso em nossa doutrina e expresso no texto constitucional vigente no país, diferente do que ocorre nos EUA, onde não há disposição expressa neste sentido na Constituição de 1.787.
De fato, o artigo 84, IV da Constituição Federal de 1.988 traz como competência do Presidente da República expedir decretos destinados a dar fiel execução das leis promulgadas pelo Congresso Nacional.
Nesse diapasão, e em consonância com a tradição jurídica brasileira, o exercício de função normativa derivada [22]destinada a trazer regras de operacionalização do direito criado pela lei elaborada pelo Congresso, sendo tal capacidade presumida e dispensada mesmo da necessidade de previsão expressa nos textos legais.
Veja-se, no sentido aqui comentado, trechos de duas decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria:
"Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (art. 84, IV, da CF/1988). A EC 8 de 1995 – que alterou o inciso XI e alínea a do inciso XII do art. 21 da CF – é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige. A Lei 9.295/1996 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto [23]".
"Trata-se de ação direta na qual se pretende seja declarada inconstitucional lei amazonense que dispõe sobre a realização gratuita do exame de DNA. (...) Quanto ao art. 3º da lei, a ‘autorização’ para o exercício do poder regulamentar nele afirmada é despicienda, pois se trata, aí, de simples regulamento de execução. Em texto de doutrina anotei o seguinte: ‘(o)s regulamentos de execução decorrem de atribuição explícita do exercício de função normativa ao Executivo (Constituição, art. 84, IV). O Executivo está autorizado a expedi-los em relação a todas as leis (independentemente de inserção, nelas, de disposição que autorize emanação deles). Seu conteúdo será o desenvolvimento da lei, com a dedução dos comandos nela virtualmente abrigados. A eles se aplica, sem ressalvas, o entendimento que prevalece em nossa doutrina a respeito dos regulamentos em geral. Note-se, contudo, que as limitações que daí decorrem alcançam exclusivamente os regulamentos de execução, não os 'delegados' e os autônomos. Observe-se, ainda, que, algumas vezes, rebarbativamente (art. 84, IV), determinadas leis conferem ao Executivo autorização para a expedição de regulamento tendo em vista sua fiel execução; essa autorização apenas não será rebarbativa se, mais do que autorização, impuser ao Executivo o dever de regulamentar’. No caso, no entanto, o preceito legal marca prazo para que o Executivo exerça função regulamentar de sua atribuição, o que ocorre amiúde, mas não deixa de afrontar o princípio da interdependência e harmonia entre os poderes. A determinação de prazo para que o chefe do Executivo exerça função que lhe incumbe originariamente, sem que expressiva de dever de regulamentar, tenho-a por inconstitucional. Nesse sentido, veja-se a ADI 2.393, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 28-3-2003, e a ADI 546, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 14-4-2000. Quanto ao parágrafo único do art. 3º, credencia ‘um Órgão Público’ para o efetivo cumprimento do objeto da lei, ‘mediante dotação orçamentária governamental’. Esse ‘credenciamento’ de ‘um órgão público’ indeterminado é tecnicamente incorreto, não me parecendo, todavia, inconstitucional. Inova o ordenamento jurídico no sentido de prover a efetividade material ou eficácia social do preceito veiculado pelo art. 1º da lei estadual. O texto desse parágrafo único do art. 3º conforma a regulamentação da lei pelo Executivo, que a desenvolverá de acordo com a conveniência da Administração, no quadro do interesse público. Ante o exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado e declaro inconstitucionais os incisos I, III e IV, do art. 2º, bem como a expressão 'no prazo de sessenta dias a contar da sua publicação', constante do caput do art. 3º da Lei 50/2004 do Estado do Amazonas [24]."
Tal como já exposto acima e evidenciado pelos precedentes do STF ora apresentados, o poder regulamentar do Executivo no Brasil é tradicionalmente visto como competência própria, não se questionando sobre delegação (implícita ou explícita) de parcela de competência do Poder Legislativo. Existe, antes, para dar efetivo cumprimento às normas gerais e abstratas definidas pelo Congresso Nacional por meio de leis.
Esclarecido tal ponto, cumpre-nos agora apresentar as posições americana e brasileira sobre a possibilidade de real delegação de função normativa pelo Legislativo ao Executivo.