Possibilidade de aplicação analógica das medidas protetivas da lei em favor do homem
Nos dizeres de Zaffaroni e Pierangeli [23] "[...] analogia, em direito penal, entende-se completar o texto legal de maneira a estendê-lo para proibir o que a lei não proíbe, considerando antijurídico o que a lei justifica, ou reprovável o que ela não reprova ou, em geral, punível o que não é por ela penalizado [...]".
A analogia no Direito Penal é proibida, em virtude do Princípio da Reserva Legal (ou Princípio da Legalidade), quando for utilizada de modo a prejudicar o agente (analogia in malam partem), seja ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador, uma vez que um fato não definido em Lei como crime estaria sendo considerado como tal.
No Mato Grosso decidiu-se pela primeira vez a favor da aplicação por analogia das medidas protetivas da Lei Maria da Penha em favor de um homem vítima de violência doméstica [24].
Constatada alguma analogia fática, nada impede que as medidas protetivas da Lei Maria da Penha seja aplicada em favor, nesse caso, ao homem. Se a violência, nas suas modalidades, estiver sendo utilizada, não há dúvida que as medidas protetivas da Lei Maria da Penha podem ser aplicadas para favorecer o homem, impondo-se a analogia in bonam partem. As medidas protetivas da Lei podem ser aplicadas em favor de qualquer pessoa desde que comprove que a violência teve ocorrência dentro de um contexto doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo, pois tais medidas não têm um caráter efetivamente penal e, sim, cível com abrangência no direito de família e administrativo, não alcançando a vedação da analogia no Direito Penal. Não havendo impedimentos que faça que o Judiciário não atenda quem está sendo ameaçado ou lesado de seus direitos, fazendo bom uso da Lei e do poder geral de cautela.
De acordo com as decisões surgidas, a aplicação das medidas protetivas da Lei em favor do homem hoje é tema discutido em todo o Brasil e interpretado de forma justa e coerente, a partir do momento em que o necessitado de proteção do Estado (nesse caso o homem) requer tais medidas e as autoridades competentes as deferem, cumprindo o dever constitucional de assegurar assistência a família na pessoa de cada um dos membros necessitados que a integre, com os mecanismos possíveis para coibir a violência no âmbito de suas relações. A concessão de tais medidas em favor do homem caminha de forma gradativa, percorrendo vários Estados do Brasil. A primeira Sentença proferida nesse sentido foi em Cuiabá, Mato Grosso, e, em decorrência dela, no mesmo Estado, surgiu um posicionamento jurisprudencial, que caminhou de forma inovadora quando confirma e justifica até uma proteção futura para as partes, quando coíbe desde logo com as medidas protetivas da Lei, posteriores e possíveis violências e ameaças que possam surgir à vítima.
Temos decisão nesse sentido em Minas Gerais, parecer do Ministério Público de Santa Catarina, decisão do Juiz da mesma localidade, bem como no Espírito Santo e Rio Grande do Sul. Hoje a extensão da aplicação da Lei Maria da Penha é bem grande. No Rio Grande do Sul fora aplicada a Lei em favor de dois homens, que mantinham uma união homoafetiva. As medidas foram deferidas ao homem, porque sofria ameaças de seu companheiro.
Vê-se que, com o passar do tempo, a aplicação das medidas protetivas da Lei Maria da Penha em favor do homem, que não é o sujeito passivo tutelado pela Lei, torna-se constante, se alastrando por todo o Brasil.
Na decisão do Espírito Santo, a juíza argumentou que a sua decisão foi tomada com base no poder geral de cautela do juiz. "Se ao juiz coubesse uma aplicação fria da lei, sem uma análise do caso concreto, bastaria ele lançar o problema para um computador resolve-lo matematicamente", justificou a magistrada. [25]
Corroboramos com tal entendimento, pois o poder geral de cautela tem como finalidade afastar situações periclitantes e perigosas que poderiam por em risco o desenvolvimento ou resultado finalístico do processo no qual se busca a satisfação material. Por meio do poder geral de cautela, está o juiz autorizado a deferir medidas protetivas da jurisdição, sempre que presentes o fumus boni iuris e o periculum damnum irreparabile, a determinado caso fático, cuja previsão específica escapou ao legislador [26]. Ademais, o poder geral de cautela é "norma em branco", da qual não se pode abrir mão para bem de assegurar à efetiva frituosidade da prestação jurisdicional que de depara com casos dos mais diversos e amplos, certamente com peculiaridades que, mesmo que o legislador pudesse prever, dificilmente os positivaria em face da particularidade, não ensejando interesse normativo a coletividade.
Na Espanha existe uma Lei sobre violência familiar que gera muito debate e polêmica sobre sua constitucionalidade, como a Lei Maria da Penha vigente no Brasil. A Lei prevê penas mais rigorosas para homens que agridem mulheres. Já o contrário (mulheres que agridem homens) existe também punição, só que menos rigorosa. Há grande discussão acerca da sanção penal em relação aos sexos, que muitos dizem ser discriminatória. Lá, diferentemente do Brasil, existe legislação aplicável aos casos de violência contra o homem.
Na ausência de lei aplicável aqui no Brasil, por que não nos valermos da analogia para tutelarmos os necessitados de proteção e assistência?
A Lei Maria da Penha trouxe medidas inéditas de proteção para a mulher em situação de violência ou sob risco de morte. Tais medidas têm natureza cível, com abrangência no direito de família e administrativo, bem como natureza penal. As penas pecuniárias, por exemplo, que puniam os agressores com multas ou cestas básicas, foram extintas. Dependendo do caso, o sujeito pode ser proibido de se aproximar da mulher e dos filhos. Em outras, a vítima pode rever seus bens e cancelar procurações feitas para o agressor e etc.Vemos também que com a entrada da no ordenamento jurídico brasileiro, buscou-se a adoção de um regime penal mais gravoso, diante das vedações trazidas pela Lei em seus artigos 17 e 41.
A não aplicação da Lei 9.099/1995 impossibilitou a substituição de penas de caráter pessoal (como, por exemplo, de pena privativa de liberdade e algumas penas restritivas de direitos) por pagamento de cesta básica, outras de prestação pecuniária e multa, buscando punir de forma efetiva o agressor, afastando todos os institutos "despenalizadores", bem como o instituto "descarceirizador" trazidos pela Lei dos Juizados.
Conclusão
A possibilidade de aplicação analógica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha em favor do homem tornou-se possível diante da atribuição da analogia in bonam partem, não ferindo, assim, o ius libertati do indivíduo, bem como o Princípio da Reserva Legal ou Princípio da Legalidade, pois não se está diante de uma analogia in malam partem. Essa aplicação de forma analógica tornou-se possível com base no poder geral de cautela que o juiz tem de conceder medidas cautelares inominadas aos necessitados de proteção do Estado, desde que venha a requerê-las.
Não se pode confundir com a possibilidade de concessão das medidas protetivas cautelares em sede de decisão interlocutória proferidas pelos juízes ou até mesmo a possibilidade de concessão das medidas protetivas cautelares concedidas pelo Ministério Público com as vedações trazidas pelos artigos 17 e 41 da Lei 11.340/2006.
As proibições trazidas pelos artigos (diga-se, a não substituição de penas privativas de liberdade – reclusão e detenção (artigo 33 do Código Penal), cesta básica, outra de prestação pecuniária e multa) são dirigidas ao Juiz de Direito, no momento em que irá proferir a sentença condenatória. Pois, quando se inadmite, por exemplo, o benefício da transação penal, evidente que o dispositivo ao qual se comenta refere-se à sentença condenatória em sede de audiência, que é completamente diferente quando se trata da concessão ao requerente de medidas protetivas da Lei de caráter cível, com abrangência no direito administrativo e no direito de família, concedidas cautelarmente.
Tais medidas protetivas da Lei possuem um caráter cautelar, pois asseguram a eficácia da prestação jurisdicional, afastando situações periclitantes e perigosas que poderiam por em risco a vida da vítima, buscando-se o desenvolvimento ou resultado final com as medidas ao qual se busca a satisfação. Conceder tais medidas de proteção a mulher, que é a única tutelada expressamente pela Lei, bem como ao homem em situações que requeira do Poder Judiciário por ser, naquela ocasião excepcional, vulnerável, é garantir segurança a esses indivíduos, cessando futuras ameaças, lesões e até mesmo um homicídio. O que se busca é que por meio do deferimento das medidas de proteção da Lei Maria da Penha pelo juiz, a vítima se resguarde do bem maior que ela tem que é a vida.
Podemos deduzir que a aplicação das medidas protetivas cautelares, em sede de decisão interlocutória em favor do homem (que não é o sujeito passivo tutelado pela Lei) não chegam a seguir o procedimento específico garantido pela Lei, senão estaríamos diante de uma analogia in malam partem, que é terminantemente proibida pelo Direito Penal. Pois, se no curso de um julgamento de um processo principal com a aplicação, por exemplo, de toda a Lei Maria da Penha em favor do homem e em desfavor da mulher, mais especificamente, retirando-lhe (à mulher ofensora) a possibilidade de composição civil dos danos, transação penal com a possibilidade de cumprimento de penas não privativas de liberdade, bem como a suspensão condicional do processo, estaríamos retirando direitos conferidos aos crimes de menor potencial ofensivo, com a inserção de um não legitimado de tal tutela, restringindo-lhe garantias e prerrogativas conferidas pela Lei 9.099/1995 que seria competente para o julgamento. E não é isso que queremos!
Exceção ao exposto, onde não se aplicaria a Lei 9.099/1995 com todos os seus benefícios a ela inerentes, independentemente do sujeito passivo ser homem ou mulher, seria no caso da violência doméstica tratada no art. 129, § 9º do Código Penal, que não limita os sujeitos passivos vítimas de violência doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo, cominando pena de três meses a três anos. Aí está a impossibilidade de aplicação da Lei 9.099/1995, pois a pena máxima cominada é de três anos, vedando a possibilidade de transação penal e composição civil dos danos, que somente é cabível para infrações penais com pena máxima não superior a dois anos (art. 61 da Lei 9.099/1995).
Assim, o sistema protetivo instaurado pela Lei que não trata somente de medidas de natureza penal, possuindo também medidas de natureza civil e administrativa, poderão ser aplicadas a todos os demais vulneráveis. Sendo que nenhuma norma de conteúdo penal mais gravosa ou que limite as liberdades públicas e os direitos fundamentais do indivíduo poderá ser aplicada, sob pena de afronta ao Princípio da Legalidade, que proíbe a aplicação da analogia prejudicial ao réu (analogia in malam partem), vedada pelo Direito Penal.
Portanto, a analogia está sendo empregada de forma não prejudicial ao réu, para dar efetividade ao sistema expresso no art. 226, § 8º da CF/88, para melhor atender a vítima (homem) de violência em seu âmbito doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo, que venha a requerer, garantindo a efetiva proteção do Estado com as medidas protetivas que a Lei Maria da Penha traz.
Referência Bibliográfica
BITENCOURT, Cezar Roberto. Abrangência da Definição de Violência Doméstica. Boletim IBCCRIM, Ano XVII, n° 198. Maio de 2009.
CARPENA, Márcio Louzada. Do Processo Cautelar Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 162.
CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GOMES, Luiz Flávio. Lei Maria da Penha: aplicação para situações análogas. Disponível em: <www.lfg.com.br>. Acesso em: 27 de abr. de 2009.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11. ed. São Paulo: Método, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Martires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
Por analogia: Lei Maria da Penha é aplicada para proteger homem. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-out-30/lei_maria_penha_aplicada_proteger_homem>.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. Curitiba: Juruá, 2007.
ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte geral.5ª. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
Notas
- A justificativa de se chamar a Lei 11.340/2006 de Lei Maria da Penha é por causa da história dolorosa em que protagonizou a farmacêutica Maria da Penha Fernandes. Resumidamente, em 1983, por duas vezes seu marido tentou assassiná-la. Na primeira vez por arma de fogo e na segunda por eletrocussão e afogamento. As tentativas de homicídio resultaram em lesões irreversíveis a sua saúde, como paraplegia e outras seqüelas. Maria da Penha transformou dor em luta, tragédia em solidariedade. Fonte: Comprometa-se. Você tem voz. A violência contra a mulher, não. Cartilha da Secretaria de Estado do Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social – SETADES. p. 08.
- CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 39.
- BITENCOURT, Cezar Roberto. Abrangência da Definição de Violência Doméstica. Boletim IBCCRIM, Ano XVII, n° 198. Maio de 2009.
- CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Op. Cit.. p. 30.
- SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. Curitiba: Juruá, 2007. p. 46.
- SOUZA, Sérgio Ricardo de. Op. Cit. p. 46/47.
- SOUZA, Sérgio Ricardo de. Op. Cit. p. 47.
- Idem. p.47.
- Idem.
- DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 42.
- CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Op. Cit. p. 31.
- Idem. p. 33.
- DIAS, Maria Berenice. Op. Cit. p. 56.
- MORAES, Alexandre de, 2005, apud DIAS. Idem. p. 56. Idem.
- CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista, 2006, apud DIAS. p. 56.
- MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Martires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 157.
- LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11. ed. São Paulo: Método, 2007. p. 701.
- GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit.
- RIBEIRO, Rui Ramos, 2006, apud DIAS. Idem.
- GUEDES, Alexandre de Matos, 2006, apud DIAS. Idem.
- SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 854.
- SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 854.
- ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte geral.5ª. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 168.
- Por analogia: Lei Maria da Penha é aplicada para proteger homem. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-out-30/lei_maria_penha_aplicada_proteger_homem>.
- Fonte: clipping@tj.es.gov.br. Op. Cit.
26.CARPENA, Márcio Louzada. Do Processo Cautelar Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 162.