4.2.2. Uma recente mudança: o julgamento “antecipadíssimo”
O artigo 285A, incluído no CPC pela Lei nº 11.277, de 2006, também extrapola o campo da constitucionalidade, quando prevê a possibilidade de extinção do processo com julgamento do mérito, pela improcedência, sem integrar à lide o Réu, tendo intuito de conferir maior celeridade ao andamento das ações, assegurando a Razoável Duração do Processo. Entretanto, este princípio não pode vir, somente, para atender aos ditames do mercado neoliberal, de produtividade a qualquer preço. [ 23]
A amplitude deve ser constatada na aplicação das garantias constitucionais. Não poderá prevalecer a mitigação do Princípio da Ampla Defesa, com a nítida supressão de quase todo o procedimento de primeira instância, diminuindo, assim, sensivelmente, as oportunidades de manifestação para influir no convencimento do juiz da causa.
Além disso, vejo no artigo uma violação do princípio constitucional da isonomia. Irretocável o entendimento de que onde atuam magistrados com entendimentos diferentes acerca da mesma matéria fará com que para alguns essa regra seja aplicada e para outros, não, ainda que estejam em situações jurídicas substancialmente iguais (CÂMARA, 2008). É que os entendimentos diversos dos vários juízos, para uma mesma matéria, acarretarão processos com seu curso normal e outros com seu curso abreviado, para as varas onde já exista entendimento consolidado, sobre dada questão, pela improcedência do pedido.
Já no tocante ao contraditório, infeliz regra do art. 285-A do CPC, que, a pretexto de permitir julgamento mais célere de processos ditos repetitivos, afasta irremediavelmente o princípio do contraditório (WAMBIER, 2009).
Voltando à nossa crítica inicial ao modelo processual neoliberal, cumpre-nos dizer que o art. 285-A, na busca da produtividade a qualquer preço, descumpre a efetividade normativa do sistema, da qual o contraditório, como garantia de influência, constitui uma das principais manifestações, inviabilizando o debate de modo inconstitucional (NUNES, 2010, p.171).
Isso, não somente por existir uma sentença de improcedência de plano, prejudicando o autor, mas, também, pelo fato do réu se ver com direitos colocados ao lado.[24]
Ora, ademais disso, quer o legislador infraconstitucional fazer-nos crer que o dispositivo reduziria o tempo do processo, o que não é verdade. Quase sempre há recurso do autor e, com isso, o réu é citado, acontecendo o chamado “contraditório sucessivo”. [25]
Acrescente-se que a decisão não pode mais ser expressão da vontade única do julgador e sua fundamentação ser vislumbrada como mecanismo formal de legitimação de um entendimento que este possua antes mesmo da discussão endoprocessual (NUNES, 2010, p. 237). Não se pode acreditar em uma decisão adequada, se já esta pré-estabelecida antes do debate, ínclito do processo, e, conseqüentemente, alheia às peculiaridades do caso concreto que são conhecidas através do discurso argumentativo. Faz-se inadmissível uma decisão com resolução de mérito, amparada em cognição verticalmente sumária e valendo-se de precedente do próprio julgador, como motivação.
Expressamos a opinião pela inconstitucionalidade do referido dispositivo, vez que, como bem defendido pelos diversos doutrinadores já citados, o art. 285-A contraria, sobremaneira, princípios constitucionais como contraditório, ampla defesa e isonomia.
5. O QUE VEM POR AI: O PROJETO DE LEI DO SENADO
Nesse ponto, de maneira antecipada, trazemos à baila algumas reflexões sobre as inovações, que possivelmente estão por vir, com o novo Código de Processo Civil. Destarte, tratam-se de considerações preliminares, haja vista que o Projeto de Lei do Senado 166/2010, ainda está em tramitação, podendo ser objeto de modificações. Recentemente foi aprovada a Emenda nº 221-CTRCPC (Substitutivo), com alterações do Relator Geral e destaques. Aprovada em turno suplementar, a matéria vai à Câmara dos Deputados.
Com propriedade o Projeto 166/2010 é permeado pela Teoria do Processo Constitucional, na efetiva participação dos sujeitos atingidos na construção dos provimentos, e estatui o Princípio da Cooperação. É o que percebemos, nos artigos 5º e 8º do projeto em tramitação no Congresso Nacional.[26]
Acrescente-se que há uma constante presença do Princípio do Contraditório, numa assente perspectiva de adesão à Teoria do Processo Constitucional, defendida neste trabalho. Dentre os vários que citam o contraditório, vale notar, por exemplo, o 7º no início do projeto.[27]
Percebe-se, comparando o artigo 7º do projeto com o artigo 125 do CPC[28], que o projeto apresenta maiores detalhes na previsão dos direitos das partes. Com efeito, se aprovado o texto, diminuirá em muito, acredito, as práticas arbitrárias do órgão julgador.
Ocorre, também, previsão infraconstitucional expressa das garantias alhures previstas na Constituição Federal, conforme nota-se nos artigos 1º, 3º, 4 º e 6 º, do projeto[29].
Neste passo, com relação aos temas apresentados neste trabalho - o nosso fundamentado descontentamento com decisões solitárias -, nos deparamos com modificações que vão ao encontro das reflexões, já apresentadas, sobre a legislação atual. Se aprovado o projeto, haverá uma restrição aos atos ex officio e maior participação das partes, na construção do provimento, na fase de formação do processo civil.
Permitirá, com efeito, a todos os sujeitos potencialmente atingidos pela incidência dos julgados, a garantia de contribuir de forma crítica e construtiva na formação do provimento.
Neste diapasão, os artigos 9º e 10[30] do projeto são categóricos e, caso aprovado o texto, existirá um dever de consulta do órgão julgador, com efetivo debate prévio, e, principalmente, submissão dos fundamentos da decisão ao contraditório.
O direito de manifestação antes das decisões de ofício é o que, abertamente e fundamentadamente, defendemos. Embasados na Teoria do Processo Constitucional, certo é que, antes mesmo de aprovado o projeto, já há doutrina capaz de subsidiar aplicação de norma que impedem a surpresa nas decisões.
Ancorada do direito comparado, com doutrina explanada por juristas europeus podemos citar:
Deste modo, o contraditório constitui uma verdadeira garantia de não surpresa que impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as de conhecimento oficioso, impedindo que em “solitária onipotência” aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou ambas as partes (FERRI apud NUNES, 2010, p. 229).
Na nova sistemática a ser, possivelmente, adotada, e salvo em hipóteses definidas pelo legislador, as partes terão direito de serem previamente ouvidas, antes que o órgão julgador prolate qualquer decisão que lhes afetem. E não somente isso. Até mesmo o fundamento da decisão, em qualquer instância, deverá passar pelo crivo do contraditório, mesmo se tratar de matéria a qual deverá ocorrer decisão ex offcio.
Noutro ponto já debatido no item 4.1, o original do projeto inovava na análise judicial do erro na escolha da forma dos atos processuais, com o artigo 151[31]. Seguia o projeto a linha dos nossos fundamentos de construção participativa do provimento. Entretanto, o substitutivo aprovado suprimiu o §1º e, no pertinente ao contraditório, e manteve a legislação sem qualquer inovação significante, se comparada ao atual correlato, o artigo 154 do CPC[32].
Noutra medida, foi sensato ao autor do projeto, ao deixar clara, no art. 291 do projeto[33], a necessidade de intimação da parte, para que tente corrigir a irregularidade, antes que o juiz extinga o processo sem julgamento do mérito.
Na linha de construção co-responsável dos provimentos, o artigo 284 do CPC[34] já é alinhado com a Teoria Constitucional do Processo. Tanto isso é verdade que, neste trabalho, no ponto 4.1, defendemos a interpretação do artigo de modo a impossibilitar que o juiz indeferir a inicial, sem intimação do autor para que complete ou emende a petição.
Entrementes, - haja vista a existência de inúmeras decisões não fundamentadas pelo Poder Judiciário e, conseqüentemente, quando intimado autor para completar ou emendar a inicial, dificilmente consegue entender e cumprir o comando -, o artigo 295[35] do projeto foi além do atual CPC.
Com o fim de dar celeridade e efetividade ao processo, o artigo proposto deixou claro o dever de cumprimento, pelo julgador, do Princípio Constitucional da Fundamentação das decisões (art. 93, IX da CF/88).
E indo mais ao encontro de nossas reflexões do tópico: a extinção prematura do processo e irregularidades sanáveis, o projeto não prevê, dentre as causas de indeferimento liminar da inicial, aquele malfadado inciso V do Artigo 295 do V[36].
Não há, também, no projeto, as imprecisões técnicas e inconstitucionais do atual artigo 285A, do CPC, tão criticado em nosso tópico: Uma recente mudança: o julgamento “antecipadíssimo”. Inexistirá, assim, se aprovado o texto, a possibilidade do juiz prolatar a inconstitucional decisão solitária, somente tendo como norte o entendimento daquele órgão julgador, conforme preleciona o artigo 307[37] do Projeto de Lei do Senado
Assim, cumpriu-se o desiderato de não incorrer o projeto no erro, já criticado por nós, aqui neste artigo, de instituir o direito do juiz em prolatar decisões com resolução de mérito, amparadas em cognição verticalmente sumária e valendo-se de precedente do próprio órgão julgador, como motivação.
O cidadão não pode ser manipulado ao ponto de atos processuais interferirem antidemocraticamente em seu patrimônio. É inconcebível que a meta da aceleração seja concebida como efetividade. Reduzir o número de demandas não deve significar a redução de direitos e interesses, a bem das estatísticas.
Noutra medida, infelizmente, percebe-se que o artigo supra do projeto, no §1º, mantém a possibilidade de indeferimento liminar da ação pela ocorrência da prescrição. Há prevalecer a norma, se abrirá espaço ao autoritarismo judiciário, inútil e contraproducente (CIPRIANI apud NUNES, 2010, p. 196), a significar que não se resolve problema algum quando se procura a obtenção da eficiência em prejuízo das garantias.
Salvo esta questão da prescrição de ofício, o projeto apresenta inovações democráticas, pelo menos no pertinente á formação do processo, objeto deste estudo. Entretanto, mesmo antes da aprovação do novo codex a condução do processo já deve ser efetuada na linha apresentada nos artigos propostos. A significar que devemos entender o ordenamento jurídico como um sistema, sendo certo que toda reforma legislativa não se pode olvidar dos preceitos constitucionais. Não deve haver qualquer paradoxo entre os paradigmas constitucionais e infraconstitucionais, a sistemática jurídica não deve ser abalada, colocando-se ao largo preceitos fundamentais.
Nosso entendimento, e de renomados juristas, citados no corpo deste artigo, é de que, devido aos ditames constitucionais, não deverão ocorrer surpresas aos partícipes ao proferir o órgão julgador seus provimentos. Deverá este decorrer do fluxo argumentativo perpetrado no processo, havendo uma garantia de influência do contraditório (NUNES, 2010, p. 171) em todo iter processual, em relação tanto às atividades das partes quanto às atividades judiciais, de modo que o exercício de poderes oficiosos constitua expressão de um princípio de colaboração e não de autoridade no processo (CIVININI apud NUNES, 2010, p. 232).
Desse modo, o papel do julgador é dirigir ativamente o processo, estimulando o diálogo. E exercendo solitariamente o poder. Somente a existência da Constituição, e do Princípio do Contraditório, não garante, por si só, a legitimidade da decisão. Destarte, deverá sempre ser oportunizada a parte a possibilidade de discutir, dentro do processo, numa preparação participativa da sentença, apresentando seus argumentos, como será a interpretação e aplicação do texto legal ao caso concreto, pois o ciclo legitimador da Democracia não pode ser interrompido (TAVARES, 2008, p. 126).
Mesmo acreditando já ser possível a aplicação dos entendimentos defendidos,, acredito serem importantes, para a sociedade, as inovações infraconstitucionais a serem aprovadas. Acontecerá, sim, um passo a favor da efetividade da garantia constitucional do amplo contraditório. Todavia, para democratização do processo, a reforma legislativa não pode manter ao largo a mudança de práticas institucionais (e processuais), mas necessárias, inclusive, que qualquer alteração de texto contraditório (NUNES, 2010, p. 259).
6. CONCLUSÃO
Com efeito, comprovamos com nosso estudo que o resultado da atividade judicial deve contribuir para efetiva proteção e garantia do contraditório.
Assim, seja na perspectiva de qualquer dos três modelos processuais da história - liberal, social e neoliberal -, há uma deficiência no debate processual, sendo que as decisões não são fruto das discussões perpetradas no curso da demanda. Entretanto, a bem da concretude dos fundamentos do Estado democrático de Direito, o processo não há que ser visto como instrumento técnico de jurisdição, podendo o juiz tomar uma decisão com qualquer conteúdo.
Não há qualquer privilégio cognitivo do julgador, que possui idêntica dignidade à das partes. Os provimentos devem ser resultado da participação efetiva das partes, em prol da dignidade humana.
O judiciário e, muito mais, a sociedade, primam por decisões ágeis, e, com isso, muitos juízes prolatam sentenças que carecem de qualidade, por falta de participação efetiva das partes na construção da Decisão. O Ativismo Judicial deve ocorrer de forma benéfica à sociedade. Deverá haver restrição aos atos de ofício, vez que estão em discussão direitos disponíveis e as partes buscam efetivar um direito material. Para tanto, mister se faz um procedimento com efetiva participação das partes na construção da decisão, declarando a inconstitucionalidade de atos e normas que vão de encontro ao direito de participação.
A condução do processo já deve ser efetuada na linha apresentada nos artigos, aqui citados, do Projeto de Lei do Senado, número 166/2010. Acreditamos serem importantes, as inovações infraconstitucionais a serem aprovadas. Acontecerá, sim, um passo a favor da efetividade da garantia constitucional do amplo contraditório.
Por fim, nosso dever, na academia e advocacia, é barrar o crescimento de entendimentos a favor dos atos judiciais que aqui criticamos. Atos estes que, a nosso ver, não contrariam somente o Código de Processo Civil, mas, sobremaneira, a Constituição Federal.