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Desporto: aspectos fundamentais e a livre circulação dos desportistas no âmbito comunitário

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Agenda 27/05/2012 às 11:21

 6. Desporto na União Européia

Segundo dados da Comissão Européia de 1999, até os anos 50 o desporto europeu estava em fase embrionária, na medida em que ele estava associado às equipes e aos representantes nacionais. Neste sentido, somente as equipes e os indivíduos que representavam o seu país é que participavam das competições internacionais. Como exemplo, podemos citar o Campeonato Mundial de Futebol realizado em 1930.

Logo depois, após a Segunda Guerra Mundial, o desporto europeu começou a dar os primeiros passos para a era moderna, pois, a partir de então os países europeus perceberam a importância da prática desportiva como veículo de promoção e manutenção da paz.

Neste compasso, foi só em 1954 que os clubes europeus iniciaram as primeiras competições entre si, por meio da fundação da UEFA (União das Confederações de Futebol Européias)[55], a qual contribuiu muito para o aumento da popularidade do desporto – futebol.

Analisando isso, com a formação da Comunidade Econômica Européia (1957), em que se tem o início de um longo processo de integração do povo europeu, nenhuma ação específica no âmbito do desporto foi feita. Somente em 1997, com a assinatura do Tratado de Amsterdã, é que o desporto teve algum tratamento, quando ele foi referenciado na Declaração relativa ao Desporto[56] anexa ao respectivo Tratado. Porém, o desporto nesta oportunidade só foi referenciado com uma natureza meramente programática e política[57], mas que pode ser considerado o embrião de uma futura política desportiva na União Européia[58][59].

Além desses relatos, não podemos deixar de citar a importância do Relatório Adonino de 1985, o qual sensibilizou o cidadão europeu da sua pertença à Comunidade através do desporto, introduzindo-se programas e manifestações de cunho desportivo. Ainda, a Declaração de Amsterdã, o Relatório Helsínque e a Declaração do Conselho Europeu de Nice contribuíram muito para mudança da ótica do conceito tradicional do desporto como um meio de intervenção a outras políticas, sublinhado-se sobremaneira a função social do desporto e o seu papel como meio aplicador de uma política comunitária.

Nos dias de hoje, diante do crescente debate sobre a integração específica do desporto no direito comunitário, o mesmo tem sido pauta em muitas conferências e objeto de muitos relatórios. Além disso, o desporto só é considerado como tal no âmbito comunitário, quando este possuir natureza econômica, nos moldes do artigo 2.° do Tratado da UE[60].

Cumpre observar, então, que o desporto se tornou um “meio de transcender a diversidade das nações, das culturas e regimes, oferecendo um meio de encontro entre países e entre homens, exercendo assim um papel de integração” [61], nos moldes do acentuado no Documento-quadro que discutiu a especificidade do desporto em 2000 em Lille[62].

No entanto, o desporto mereceu destaque na futura Constituição Européia, nos artigos I-17 e no III-282, passando este a constar de uma competência complementar da União Européia, a qual deverá impulsionar  as políticas atinentes ao mesmo, tudo em benefício de uma aprimorada integração dos povos, em benefício da consolidação da cidadania européia.

Ocorre que esta nova competência inserida na futura Constituição Européia apenas delimita o papel da União em apoiar, coordenar e complementar a legislação desportiva dos Estados-membros, nada além disso. Não caberá à União neste compasso, intervir na esfera de competência dos Estados-membros para que estes harmonizem as suas legislações.

Em conformidade com isto, não podemos deixar de referir que o desporto possa representar um meio de realizar plenamente a cidadania européia, pois a migração dos desportistas para outro Estado-membro em busca de um ideal ou de melhoria das condições financeiras e sociais, sem quaisquer entraves ou discriminações, demonstra a importância do compromisso da União Européia em garantir o direito de livremente circular e trabalhar no espaço europeu de integração.

Porém, não poderíamos deixar de citar que diante da produção normativa em matéria de desporto pelas federações e clubes dos Estados-membros, muitas vezes se acaba invadindo a esfera comunitária, ferindo o princípio da livre circulação dos trabalhadores, uma vez que estas entidades acabam por regulamentar o acesso de um jogador a um clube que se encontra em Estado-membro diverso do mesmo, impedindo e inviabilizando o seu acesso ao emprego - o que será melhor desenvolvido no tópico seguinte.

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7. Liberdade de circulação dos desportistas na União Européia

É bem verdade que a produção normativa em matéria desportiva feita pelas entidades[63] responsáveis pela organização desportiva, muitas vezes delimita e condiciona a prática desportiva (trabalho) de um profissional com regras que obstaculizam a sua livre circulação, mantendo-o, muitas vezes, num “cárcere”.

Tendo em vista esta diversidade normativa em matéria desportiva e as suas conseqüências desastrosas para os trabalhadores, foi crucial para a evolução da livre circulação, o Regulamento 1612/1968[64] do Conselho Europeu que, no artigo 1.°[65], conceituou e delimitou a livre circulação dos trabalhadores.

Ademais, de muita valia foi a definição de trabalhador assalariado no sentido que é atribuído pelo artigo 39 do Tratado, pela prática jurisprudencial que considera que o mesmo engloba todos os sujeitos que, seja com que denominação for, se encontrem cobertos pelo sistema de segurança social do Estado em que estejam.

Com efeito, papel fundamental para esta evolução cumpriram os acórdãos Bosman, Deliège e Lehtonen, que, genericamente, lutaram contra as federações e clubes a que estavam vinculados, tendo em conta as violações que estavam sendo praticadas por estas entidades em matéria de circulação dos trabalhadores.

Afinal, a liberdade de circulação dos trabalhadores (desportistas no caso) constitui um dos direitos fundamentais da cidadania européia, na medida em que este supõe uma total dissolução do conceito de “nacionalidade”, tal como o mercado comum exige[66]. E, como tal, é faculdade de um nacional de um Estado-membro (ou outro país que esteja incluído no regime comunitário de liberdade de circulação[67]), poder invocar o artigo 39[68] do Tratado da União Européia, quando se tenha deslocado para outro Estado-membro.

Logo, quaisquer trabalhadores da União Européia gozam da liberdade de circulação, não podendo experimentar nenhuma diferença de tratamento no que diz respeito ao acesso ao emprego ou às condições de trabalho, bem como à proteção social em relação aos nacionais do Estado-membro para o qual se deslocou[69], sendo corolário do princípio da igualdade de tratamento[70] disposto no artigo 12 e formalizado nos artigos 39 e 42 do Tratado da União Européia.

Nesta esteira, vale referir a conclusão de Francisco Liberal Fernandes, o qual expressa que:

“Decorre, de uma forma inequívoca, dos acórdãos Kraus, de 31.3.93, e Gebhard de 30.11.95, o entendimento de que o art. 39.° do Tratado (…) é incompátivel com qualquer medida nacional suscetível de entravar, tornar menos atraente ou desencorajar, ainda que potencialmente, os trabalhadores migrantes a exercer o direito de livre circulação, mesmo que a respectiva previsão ou aplicação se processe sem distinção de nacionalidade”[71].

Portanto, a partir deste entendimento e do aproveitamento da decisão do Tribunal de Justiça nesta matéria, verificamos que o cidadão comunitário que desejar exercer a sua profissão em outro Estado-membro estará apadrinhado pelas normas comunitárias[72] que lhe asseguram a livre circulação e igualdade entre os cidadãos nacionais do Estado onde ele for exercer a sua profissão.

Concernente à relação entre o princípio da liberdade de circulação dos trabalhadores e o da igualdade, verificamos que ambos se completam e se complementam, pois, conforme bem salienta André Dinis de Carvalho, a exclusão de qualquer discriminação[73] não é mais do que um meio privilegiado para favorecer a livre circulação de pessoas e mercadorias[74]


8. Caso Bosman: o divisor de águas

Imperioso, desde o início frisar, que, nos termos que já salientamos anteriormente, o acórdão Bosman[75] foi o marco de uma nova era para o futebol profissional como também para os demais desportos, na medida em que o Tribunal de Justiça das Comunidades, ao decidir a demanda, acabou por retirar todos os obstáculos que eram postos pelas entidades reguladoras do futebol, dando oportunidade para que os atletas profissionais tenham a total liberdade de circulação, fazendo jus ao preceituado no Tratado da União Européia.

Para um melhor e pormenorizado entendimento, iremos elencar os principais fatos e argumentos que foram elaborados pelas partes e pelo Tribunal de Justiça para o proferimento deste célebre e histórico acórdão.

Primeiramente, devemos salientar que o belga Jean-Marc Bosman, jogador profissional de futebol, em demanda perante a sua jurisdição nacional, invocou o direito comunitário a seu favor, alegando que as regras de transferência de jogadores e a limitação de estrangeiros em clubes nacionais praticadas pela Associação Belga de Futebol (URBSFA), a Confederação Européia de Futebol (UEFA) e pela Federação Internacional do Futebol (FIFA) seriam incompátiveis com o disposto nos artigos 48, 85 e 86 (atuais artigos 39, 81 e 82) do Tratado.

Nesta esteira, Bosman era vinculado ao Royal club liégeois S.A. (RC), clube belga de primeira divisão. No entanto, seu contrato com este clube expirou em 30 de Junho de 1990 e o mesmo propôs ao jogador um novo contrato, mas oferecendo ao mesmo o valor mínimo estabelecido pela URBSFA.

Descontente com tal proposta, o jogador foi inscrito na lista de tranferências, tendo sido contratado pelo clube francês de segunda divisão, o SA d’économie mixte sportive du littoral de Dunkerque (Dunquerque) em 30 de Julho de 1990.

Ocorre que, para a formalização da transferência e a contratação do jogador, o clube interessado no mesmo deveria pagar uma indenização de transferência ao seu antigo clube empregador – o que é chamado de pagamento pelo “passe” do jogador.

Com efeito, o Dunquerque manifestou interesse na transferência do jogador e logo foi negociar com o RC. Porém, esse, duvidando da capacidade financeira do Dunquerque em termos de pagamento do preço acordado para a tranferência do jogador e a respectiva indenização (passe), o RC não concluiu as negociações, não solicitando junto à URBSFA o documento indispensável para a sua transferência.

Bosman, entretanto, ficou impossibilitado de exercer sua profissão, pois não estava vinculado e nem podia estar a nenhum clube.

Inconformado com tal situação, o atleta intentou uma ação junto ao Tribunal de Première Instance de Liège contra seu ex-time RC Liège, pleiteando uma indenização, correspondente ao valor dos seus sálarios que receberia pelo clube francês, caso fosse transferido.

O Tribunal de Liège acatou parcialmente o pedido, condenando o clube belga ao pagamento de uma quantia inferior ao postulado pelo atleta. No entanto, apesar da vitória, o jogador acabou por sofrer um boicote da parte de todos os clubes europeus que poderiam contratá-lo.

Não satisfeito, em sede de recurso, Bosman voltou-se contra a UEFA, demandando esta entidade para acabar com a aplicação das regras de transferência e as cláusulas de nacionalidade, pois estas obstavam a sua livre circulação no âmbito comunitário.

Vale frisar, que as cláusulas de nacionalidade que mencionava era o sistema “3+2”, em que limitava os jogadores estrangeiros por clube europeu. Este sistema previa o limite dos clubes de alinhar para uma partida o máximo de três jogadores estrangeiros acrescido dois jogadores “assimilados”, sendo estes aqueles que tenham jogado no país por um período ininterrupto de cinco anos, dos quais três anos desses cinco, o mesmo deveria ter jogado nas camadas jovens - juniores.

No entanto, o Tribunal belga ao efetuar o reenvio prejudicial ao TJ/CE, acerca da interpretação dos artigos invocados, questionando se um clube de futebol poderia exigir e receber o pagamento de um montante em dinheiro pela contratação (passe), por um novo clube empregador, de um dos seus jogadores cujo contrato tenha chegado ao seu termo e se as associações ou federações desportivas nacionais e internacionais poderiam prever, nas respectivas regulamentações, normas limitativas do acesso dos jogadores estrangeiros cidadãos da Comunidade Européia às competições que organizavam.

Com efeito, o Tribunal de Justiça das Comunidades, respondeu negativamente estas duas questões, asseverando que a aplicação das disposições relativas à livre circulação dos trabalhadores não requer seja o empregador denominado empresa, sendo necessário apenas a existência de uma relação de trabalho; que as regras de transferência de jogadores diz respeito não apenas às relações entre clubes, mas também aos jogadores, pois reflete em na sua condição de emprego, sobretudo no acesso ao trabalho; que a atividade desportiva enquadra-se como econômica, na acepção do (então) artigo 2.° do Tratado, bastando para tal que um jogador profissional ou semi-profissional de futebol exerça uma atividade assalariada ou efetue prestações de serviços mediante retribuição; que a liberdade de associação deve ser respeitada, todavia, não será necessário para tal proteção, sejam necessárias impor regras que entravem outras liberdades protegidas pela Comunidade (liberdade de circulação dos trabalhadores e a não-discriminação em razão da nacionalidade).

Por outro lado, devemos ressaltar que o Tribunal não se manifestou sobre a aplicação sobre dos artigos 85 e 86 (atuais 81 e 82) relativos à concorrência, afirmando que tal não seria necessário, uma vez que as regras relativas à limitação do número de estrangeiros (sendo uma prática concertada) e as indenizações de transferência foram definitivamente abolidas pelo Tratado, logo também abolidas no mercado de trabalho desportivo comunitário[76].

Em suma, o Tribunal de Justiça das Comunidades decidiu a demanda em três pontos fundamentais:

1-                                                “O artigo 48.° do Tratado CEE opõe-se à aplicação das regras adotadas por associações desportivas nos termos das quais um jogador profissional de futebol nacional de um Estado-membro, no termo do contrato que o vincula a um clube, só pode ser contratado por um clube de outro Estado-membro se este último clube pagar ao clube de origem uma indenização de transferência, de formação ou de promoção.

2-                                                O art. 48.° do Tratado CEE opõe-se à aplicação das regras adotadas por associações desportistas nos termos das quais, nos encontro por elas organizados, os clubes de futebol apenas podem fazer alinhar um número limitado de jogadores profissionais nacionais de outros Estados-membros.

3-                                               O efeito direto do art. 48.° do Tratado CEE não pode ser invocado em apoio de reivindicações relativas a uma indenização de transferência, de formação, ou de promoção que, na data do presente acórdão, já tenha sido paga ou seja devida em execução de uma obrigação nascida antes desta data, exceto se, antes desta data, já tiver sido proposta ação judicial ou apresentada reclamação equivalente nos termos do direito nacional aplicável”.

Contudo, a partir do decidido neste acórdão, em 5 de Março de 2001, a FIFA, UEFA e a Comissão Européia reuniram-se para negociar sobre o sistema de transferências. Não se tratou de suprimir nem de substituir o sistema de transferências, mas pretendeu-se apenas melhorá-lo, a fim de garantir a sua compatibilidade com o direito comunitário, com o princípio da livre circulação dos trabalhadores e com o direito da concorrência[77], na ânsia de se alcançar um “mercado comum desportivo”.

Sobre o autor
Vitor Luiz Orsi de Souza

advogado, pós-graduado em Direito Comunitário pela Universidade de Coimbra/Portugal, pós-graduado em Direito Público pela Universidade Prof. Damásio de Jesus e MBA em Gestão e Direito Educacional pela Escola Paulista de Direito (EPD)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Vitor Luiz Orsi. Desporto: aspectos fundamentais e a livre circulação dos desportistas no âmbito comunitário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3252, 27 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21870. Acesso em: 22 dez. 2024.

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