O indulto é causa extintiva de punibilidade (art. 107, II, do Código Penal) e consiste em ato de clemência do Poder Público, concedido privativamente pelo Presidente da República, podendo o ato ser delegado nos termos do Art. 84, inciso XII, parágrafo único, da Constituição Federal.
Tal benesse faz desaparecer as consequências penais da sentença, persistindo, contudo, os efeitos extrapenais. E ainda, conforme ensinamento do Ministro Maurício Corrêa, na ADI-MC 2795/DF, “é instrumento de política criminal colocado à disposição do Estado para a reinserção e ressocialização dos condenados que a ele façam jus, segundo a conveniência e oportunidade das autoridades competentes”.
Conforme a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) em seus artigos 187 a 193, o indulto pode ser individual (também chamado de graça), quando destinado apenas a uma pessoa determinada, ou coletivo, quando se refere a um grupo de sentenciados que tenham alcançado certos requisitos de ordem objetiva e subjetiva.
Já quanto à extensão dos seus efeitos, o indulto pode ser total, quando a pena é extinta por completo, ou parcial (também chamado de comutação), quando ocorre somente a redução da pena ou a sua substituição por outra de menor gravidade.
No Brasil, o indulto coletivo é concedido anualmente, por meio de um Decreto Presidencial, publicado sempre às vésperas do Natal, como um “presente” do Chefe do Poder Executivo aos condenados. Por este motivo, o referido decreto também é chamado de Decreto Natalino de Indulto.
Neste decreto são elencados requisitos objetivos e subjetivos que, se satisfeitos pelo condenado, gera, para este, direito publico subjetivo ao benefício em tela. Entretanto, apesar do direito ser constituído no momento da publicação do referido decreto, a análise de tais condições é feita individualmente pelo juiz responsável pela execução da pena, que proferirá sentença após ouvir o Ministério Público, a Defesa e o Conselho Penitenciário.
Neste caso, a sentença tem natureza meramente declaratória, sendo que a exigência de outras condições, além daquelas dispostas no decreto, revela em evidente constrangimento ilegal. (STJ. HC 82184/SP, Relatora Ministra LAURITA VAZ).
Ocorre que alguns intérpretes, até mesmo em face de uma redação confusa, tem restringido, equivocadamente, o alcance de alguns artigos dos Decretos Natalinos, aduzindo, inclusive, a inconstitucionalidade dos mesmos.
Tais interpretações, em grande parte, vão de encontro à política criminal apontada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP[1], órgão responsável pela elaboração da minuta de tais decretos, e devem ser revistas.
Este é o caso do parágrafo único do art. 7º dos Decretos Natalinos de 2009, 2010 e 2011, que possibilitam o indulto das penas dos crimes praticados em concurso com o crime hediondo desde que cumprido 2/3 da pena deste último[2].
A alegação é de que tais dispositivos seriam inconstitucionais, pois possibilitariam o indulto daqueles condenados que ainda estivessem cumprindo pena pelo crime hediondo.
Contudo, tal interpretação não merece ser acolhida.
De início, ressalte-se que não se está a discutir a concessão do indulto ou comutação da pena aos crimes hediondos, mas simplesmente a sua aplicabilidade às demais infrações que não ostentem esta natureza (delitos não impeditivos). Com efeito, qualquer norma que dispusesse a esse respeito seria flagrantemente inconstitucional (STF HC 81565/SC), por violar o inciso XLIII[3], do art. 5º da Constituição Federal.
Ademais, tal dispositivo constitucional não impede o benefício do indulto aos condenados por crime hediondo e sim às penas cominadas pela prática de tal delito.
Pois bem, os Decretos Natalinos de Indulto editados nos anos de 2002 a 2008 preceituavam que, na execução da pena, havendo concurso entre as infrações de tortura, terrorismo, tráfico ilícito de entorpecentes, crimes hediondos e outros delitos não impeditivos, a concessão dos benefícios ficava condicionada ao cumprimento integral da pena aplicada aos hediondos e equiparados.
De fato, tal comando fazia sentido em virtude da redação original da Lei nº 8.072/90, que em seu art. 2º, §1º, considerava que o cumprimento da pena dos crimes hediondos seria realizada de forma integralmente fechada. Assim, independentemente da pena aplicada a estes crimes, tal pena seria sempre a mais grave em sua integralidade (regime fechado), devendo ser executada, por completo, em primeiro lugar, conforme preceitua o art. 76 do Código Penal[4].
Nesse sentido, Julio Frabbrini Mirabete, in Código Penal Interpretado, apresentava as seguintes soluções para a correta aplicação da referida norma penal (art. 76): a) executa-se primeiro a pena de reclusão, em seguida a detenção e, por fim, a de prisão simples, sendo que todas tem precedência sobre a de multa; b) na hipótese de existirem duas ou mais penas da mesma espécie a serem cumpridas, a precedência deve ser determinada pelo critério cronológico; c) sobrevindo condenação por crime hediondo ou a ele equiparado, a execução da pena aplicada no processo correspondente deve preceder às demais, independentemente da data do trânsito em julgado ou da duração da reprimenda, tendo em vista que o cumprimento se dá integralmente em regime fechado.
Contudo, em 2006, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 82959/SP, decidiu pela inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que determinava o cumprimento integral destes crimes em regime fechado.
Logo após, sobreveio a Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, no qual legislador ordinário incorporou tal entendimento, alterando a Lei dos Crimes Hediondos para que a pena imposta a estas infrações seja cumprida em regime inicialmente fechado, admitindo-se a progressão após a liquidação de 2/5 (dois quintos) da sanção, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
Consequentemente, a conclusão que se fez é que, a partir de tais alterações/inovações legislativas, as penas aplicadas aos crimes hediondos deixaram de ser consideradas mais graves em sua totalidade, tendo em vista a possibilidade de progressão de regime prisional.
Assim, considerando a interpretação dada acima do art. 76 do Código Penal, na execução da pena do crime hediondo, somente os seus 2/5 iniciais é considerado mais grave, pois realizados em regime fechado. Após este período, a pena de tal crime passa a ser em regime semiaberto, tornando-se menos grave do que eventual cumprimento de pena por outro crime com regime inicial fechado.
A título de ilustração, consideremos que o indivíduo tenha sofrido duas condenações, uma pela prática de homicídio qualificado (hediondo) por 10 anos e outra por um crime não impeditivo, também por 10 anos, ambos em regime fechado. Neste caso, cumprido 4 anos em regime fechado (2/5) do crime hediondo, o restante da pena, 6 anos, deverá ser cumprido em regime menos gravoso. Contudo, o sentenciado não progride porque existe ainda uma pena em regime fechado a ser cumprida (a mais grave no momento, já que a pena do crime hediondo agora é em semiaberto), qual seja, 1 ano e 8 meses (1/6) dos crimes não impeditivos, só podendo progredir ao regime semiaberto com 5 anos e 8 meses.
Como se pode ver, o sentenciado não cumpriu 5 anos e 8 meses do crime hediondo em regime fechado e sim 4 anos deste e 1 ano e 8 meses do outro crime. Isto ocorre porque, conforme o art. 76 do Código Penal, sempre se deve cumprir a pena mais grave (que ora é do crime hediondo, e ora é do crime não-impeditivo) e não o crime mais grave.
Assim, a primeira pena somente será considerada mais grave enquanto o sentenciado não cumprir o tempo necessário para fins de progressão, pois, caso isto ocorra, a segunda passará a ter esta natureza (mais grave) por ser em regime fechado.
Não executar a pena desta forma, exigindo-se o cumprimento integral da pena pelo crime hediondo para só depois inicial a execução pelo outro crime, é mostrar-se totalmente incompatível com a ordem jurídica atual.
Com efeito, considerando o exemplo acima descrito, poderíamos ter a seguinte situação: o sentenciado condenado pelo crime hediondo ou equiparado ao completar 4 anos em regime fechado (2/5) iria progredir para o regime semiaberto, e em 6 anos e 8 meses (2/3) obteria o livramento condicional, cumprindo os outros 3 anos e 4 meses em liberdade. Em seguida, sendo declarada extinta a pena privativa de liberdade, seria iniciado a execução da pena do crime não impeditivo, voltando ao regime fechado para cumprir o 1 ano e 8 meses deste crime neste regime.
Tal situação caracterizaria verdadeira “subversão da ordem jurídica”, impondo à pessoa já beneficiada com o livramento condicional, o retorno ao regime fechado, mais gravoso, determinado em condenação pelo outro crime. Eis a razão pela qual o cumprimento das penas se dá concomitantemente, tendo os Decretos de Indulto de 2009, 2010 e 2011 passando a exigir somente a liquidação parcial da pena relativa aos crimes impeditivos.
Registre-se, por oportuno, que a exigência prevista no art. 76 do Código Penal, no tocante ao cumprimento inicial da pena mais gravosa, deve ser interpretado em consonância com o sistema progressivo do direito penal brasileiro.
Neste sentido, as alterações engendradas pelos Decretos Natalinos de 2009 e seguintes não ocorreram por mero critério de conveniência da Presidência da República, mas por razões de origem jurisprudencial e, posteriormente, de índole eminentemente legislativa.
Assim, cumprido os 2/3 (dois terços) da pena dos crimes hediondos e equiparados, deste ponto em diante, já que passível de livramento condicional, a pena a ser executada será a das outras infrações que estiverem em concurso com aquela já que, independentemente de qual pena que seja, será mais gravosa do que a modalidade do livramento.
Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, por meio de suas duas Turmas Criminais, vem decidindo reiteradamente sobre a constitucionalidade do parágrafo único do art. 7º dos Decretos em apreço, fundamentando seus acórdãos inclusive com jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
“HABEAS CORPUS. VARA DE EXECUÇÕES PENAIS. INDULTO PARCIAL. POSSIBILIDADE. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. Tratando-se de crime hediondo, não estará o paciente despojado de qualquer benefício, pois, permitida a concessão de livramento condicional (art. 83,V, do Código Penal) e progressão nos regimes.
2. Afastado o óbice posto em primeiro grau, deve aquela autoridade judiciária analisar os requisitos do indulto parcial sob pena de supressão de instância.
3. Ordem parcialmente concedida.
(TJDFT, Habeas Corpus 20100020115446HBC, Relator, Desembargador SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª Turma Criminal, unânime, julgado em 09/09/2010). No mesmo sentido HC 20100020171602HBC.”
“HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PACIENTE QUE CUMPRE PENA TOTALIZADA EM 26 ANOS DE RECLUSÃO DECORRENTE DE CONDENAÇÕES PELOS CRIMES TIPIFICADOS NO ARTIGO 157, § 3º, PARTE FINAL E ARTIGO 121, CAPUT, C/C ARTIGO 14, INCISO II, TODOS DO CÓDIGO PENAL. INDULTO PARCIAL. DECRETO Nº 7.046/2009, ARTIGO 7º, PARÁGRAFO ÚNICO. INCONSTITUCIONALIDADE QUE NÃO SE VERIFICA. ORDEM CONCEDIDA.
1. O disposto no artigo 7º, parágrafo único, do Decreto 7.046/2009 não afronta o artigo 76 do Código Penal nem viola o artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, razão pela qual deve ser afastado o óbice imposto pela autoridade impetrada, que declarou incidentalmente a inconstitucionalidade daquele dispositivo, a fim de que aprecie se estão presentes os demais requisitos para a concessão do indulto parcial, de que trata o Decreto n.º 7.046/2009. Precedentes de ambas as Turmas Criminais do TJDFT. 2. Ordem concedida.
(TJDFT, 20100020166683HBC, Relator ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 2ª Turma Criminal, unânime, julgado em 16/12/2010, DJ 10/01/2011 p. 174).”
“HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PEDIDO DE COMUTAÇÃO DA PENA, COM BASE NO DECRETO 7.046/09. INDEFERIMENTO PELA AUTORIDADE APONTADA COMO COATORA. INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 7º DO DECRETO 7.046/09 AFASTADA. INDULTO PARCIAL. POSSIBILIDADE. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. O indulto é ato do Presidente da República, editado à vista das prerrogativas constitucionais previstas no art. 84, inciso XII, da Constituição Federal, que lhe atribui poderes para extinguir, reduzir ou substituir penas aplicadas a réus pelo Poder Judiciário. Quando parcial, de regra, recebe a denominação de comutação de penas. Não se pode falar em inconstitucionalidade do artigo 7º, parágrafo único, do Decreto nº 7.046/09, pois, trata-se de ato praticado por delegação prevista na própria Carta Magna.
2. Não há, também, incompatibilidade entre Decreto Presidencial de Comutação de Penas; e as disposições do artigo 76 do Código Penal; eis que são institutos diversos. O Código Penal (art. 76 do CP) fixando a ordem de execução das penas na hipótese de concurso de crimes; e, especificamente, o art. 7º, parágrafo único, do Decreto nº 7.046/09, a regulamentar e conceder benefícios de abatimento parcial de sanções penais aplicadas, observados requisitos que enumera.
3. Ordem parcialmente concedida para, afastada a inconstitucionalidade do artigo 7º, do Decreto nº 7.046/09 em face das disposições do artigo 76 do CP; determinar o processamento do benefício requerido, mediante a verificação dos requisitos para a comutação da pena.
(TJDFT, Habeas Corpus 20110020023215HBC, Relator Desembargador JOÃO TIMOTEO DE OLIVEIRA, 2ª Turma Criminal, unânime, julgado em 31/03/2011).”
Os votos dos Exmos. Desembargadores Silvânio Barbosa dos Santos e João Timóteo de Oliveira, relatores dos Acórdãos acima, não poderiam deixar de ser transcritos para elucidar ainda mais a questão:
“(...) Nos moldes do parágrafo único, do artigo 7º, do Decreto 7.046/09 é permitida a concessão de indulto ou comutação para o sentenciado que tenha cumprido ao menos dois terços do crime impeditivo (hediondo, na hipótese), além dos demais requisitos objetivos ou subjetivos referentes ao crime não impeditivo.
A discussão cinge-se em determinar se o mencionado parágrafo único do artigo 7º, do Decreto 7.046/09 fere as disposições do artigo 76, do Código Penal, segundo o qual, no concurso de infrações, executar-se-á primeiramente a pena mais grave.
De início, é fundamental mencionar que a interpretação que conclui pela ilegalidade da norma deve sempre ser a última. Não é possível imaginar que o Estado, quer pelo seu Poder Legislativo, quer pelo Poder Executivo, queira editar normas inaptas ao ingresso no arcabouço jurídico. Cabe ao intérprete, nesse passo, e sempre que possível, conciliar normas que, a princípio, aparentem conflito.
Na hipótese dos autos, com o devido respeito, não há conflito real de normas. É que o artigo 76, do Código Penal trata de cumprimento das penas, da execução das penas para os casos de concurso de crimes. É certo que, para que o sentenciado retorne gradativamente ao convívio socia (sic), para que se readapte paulatinamente, a legislação dispõe que as penas mais graves devem ser cumpridas antes das mais leves.
De outra banda, o parágrafo único, do artigo 7º, do Decreto 7.046/09 nada ter a ver com o cumprimento de pena, não trata de qual deve ser cumprida primeiro. Na verdade, o indulto é uma clemência do Estado, segundo o qual, cumpridos requisitos ou não, impõe o abatimento das penas.
Assim, enquanto a “ratio legis” do artigo 76, do Código Penal é proporcionar a gradativa reinserção social mediante o cumprimento das penas mais graves antes das menos graves, o instituto do indulto objetiva o abatimento de penas. São, dessa maneira, assuntos diversos...” (fls. 4-5).
Indubitável que o artigo 76 do Código Penal pretendeu tratar da execução de penas em concurso de crimes, mas, de forma, primacial, quando se tratar de RECLUSÃO E DETENÇÃO, ou DETENÇÃO E PRISÃO SIMPLES etc.
No caso sob apreciação, o paciente foi condenado a dois crimes apenados com RECLUSÃO. Verdade que um deles, sendo considerado hediondo, sofrerá restrição no que refere aos benefícios da execução penal. No entanto, na realidade da vida, no sistema carcerário, diferença não há entre o cumprimento da reclusão pelo homicídio e reclusão pelo furto qualificado.
Não soa ruim consignar que, tratando-se de crime hediondo, não estará o paciente despojado de qualquer benefício, pois, permitida a concessão de livramento condicional (art. 83,V, do Código Penal) e progressão nos regimes.
Ora, a autoridade administrativa, ao expedir o Decreto 7.046/2009, e permitir o indulto parcial em relação a execução da pena nos crimes não vedados, todavia, somente após transcurso de 2/3 em relação ao crime impeditivo, lógico, o fez considerando este ser beneficiário do disposto no art. 83, V, do Código Penal.”
(Habeas Corpus 20100020115446HBC, Relator, Desembargador SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS)
“Lado outro, embora a decisão atacada mencione que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal veda a concessão de benefício aos sentenciados que cumprem pena pela prática de crime hediondo, a meu ver não há impedimento ou inconstitucionalidade de concessão de benefício em relação aos condenados por crimes hediondos ou equiparados. Tanto assim que a legislação infraconstitucional possui diversos dispositivos nesse sentido, os quais nunca foram declarados não recepcionados pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, a título exemplificativo, destaco o artigo 83, inciso V, do CP :
Art. 83 – O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 02 (dois) anos, desde que:
(...)
V – Cumprido mais de 2/3 (dois terços) da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza
Vê-se, diante da redação do art. 83, inciso V, do Código Penal, que é possível a concessão de benefícios aos condenados por crimes hediondos – de forma diferenciada, ressalte-se - e tampouco há contrariedade entre o referido Decreto e a norma infraconstitucional penal, notadamente porque ao permitir a comutação da pena nos crimes não vedados, após o transcurso de 2/3 (dois terços) da pena, o fez com amparo no art. 83, inc. V, do Código Penal.”
(Habeas Corpus 20110020023215HBC, Relator Desembargador JOÃO TIMOTEO DE OLIVEIRA)
A 1ª Turma Criminal do TJDFT também já sedimentou seu entendimento no sentido da constitucionalidade do fatídico dispositivo ainda que sob fundamento diverso:
“HABEAS CORPUS – EXECUÇÃO PENAL – INDULTO PARCIAL – CRIMES COMUNS E HEDIONDOS – ART. 7º, PARÁGRAFO ÚNICO, DO DECRETO 7.046/09 – VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE – INOCORRÊNCIA.
I. O art. 7º, parágrafo único, do Decreto 7.046/09 não afronta o art. 76 do Código Penal nem viola o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal.
II. Atendidos os vetores do requisito temporal e afastado o óbice da inconstitucionalidade, o paciente tem direito à análise do preenchimento dos demais requisitos à comutação pelo Magistrado da VEPEMA.
III. Ordem concedida.
(TJDFT, Habeas Corpus 20100020166666HBC, Relatora Desembargadora SANDRA DE SANTIS, 1ª Turma Criminal, unânime, julgado em 28/10/2010). No mesmo sentido Habeas Corpus 20110020131612HBC de 15/08/2011”.
“A interpretação sistêmica das normas explicita que, no caso de sentenciado com condenações por crimes hediondos e comuns, a comutação cabível às reprimendas será submetida a requisitos mais gravosos do que no caso de inexistência de sanção por delito da primeira espécie.
Na hipótese, o preenchimento do requisito temporal está submetido a dois vetores: em princípio, necessário o cumprimento de 1/4 (um quarto) da reprimenda total para sentenciados primários, ou 1/3 (um terço) no caso de reincidentes, nos termos do artigo 2º do Decreto 7.046/09; em segundo, imprescindível o cumprimento de pelo menos 2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade do crime hediondo.
O caput do artigo 7º destaca que, para o cômputo da fração prevista no artigo 2º, as penas devem ser somadas, sem distinção entre as espécies de crimes. Caso pretendesse excluir da operação a sanção decorrente de algum delito, o teria feito expressamente, de modo semelhante ao parágrafo único do mesmo artigo.
As alterações na redação dos Decretos Natalinos no decorrer dos anos corroboram as conclusões alcançadas anteriormente.
Os Decretos 3.667/00 e 4.011/01, nos respectivos artigos 9º, previam que as penas correspondentes a infrações diversas deveriam ser somadas para efeito da comutação e excluíam dos benefícios os crimes hediondos (art. 10). Os diplomas permitiam a comutação das penas de crimes comuns para réus também condenados por crimes hediondos, mesmo que ainda em curso o cumprimento da reprimenda corporal pertinente ao crime mais grave. Nesse sentido, manifestou-se a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:
“EXECUÇÃO PENAL. COMUTAÇÃO. ARTS. 9º E 10, I, DO DECRETO N.º 4.011/2001. RÉU CONDENADO PELA PRÁTICA DE VÁRIOS CRIMES, INCLUINDO-SE ENTRE ESTES ALGUNS HEDIONDOS. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO QUANTO AOS DELITOS NÃO CONSIDERADOS HEDIONDOS. ART. 76 DO CP. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE AO RECONHECIMENTO DO DIREITO À COMUTAÇÃO QUANTO AO DELITO MENOS GRAVE ANTES DO CUMPRIMENTO INTEGRAL DA PENA PELO MAIS GRAVE.
A comutação, instituto estabelecido em benefício do apenado, exige seja efetuada a interpretação mais benéfica com relação a este das disposições do decreto concessivo.
O art. 9º do Decreto n.º 4.011/2001 deve ser interpretado no sentido de ser cabível a comutação quanto às penas correspondentes às infrações não elencadas na vedação contida no art. 10 do mesmo diploma legal.
O fato de ainda não haver sido cumprida integralmente a reprimenda imposta em razão da prática de crime hediondo não impede seja reconhecido pelo magistrado o direito do apenado de ver reduzidas as penas referentes aos demais delitos, não hediondos, pelos quais foi condenado.
Ordem concedida para restabelecer a decisão de primeiro grau proferida pelo Juízo da Execução.”
(HC 29.789/PR, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 03/02/2005, DJ 07/03/2005, p. 349)
De 2002 a 2008, foram estabelecidos novos critérios para a concessão da comutação. Os Decretos Natalinos 4.495/02, 4.904/03, 5.295/04, 5.620/05, 5.993/06, 6.294/07 e 6.706/08 passaram a exigir o integral cumprimento da pena corporal do crime hediondo para a comutação da pena do delito comum, quando em concurso as duas espécies delitivas.
No ano de 2009, a redação do Decreto 7.046/09 rompeu com a exigência do integral cumprimento da sanção do crime hediondo. Permitiu a comutação das penas referentes a delitos comuns antes do término da reprimenda do crime mais gravoso, de forma assemelhada aos Decretos Natalinos de 2000 e 2001. Exigiu, contudo, o cumprimento de 2/3 (dois terços) da sanção do crime hediondo. Tal como os Decretos anteriores, o diploma de 2009 não violou matéria constitucional nem o Código Penal.
A norma do artigo 7º, parágrafo único, do Decreto 7.046/09 versa sobre questão distinta daquela tratada no artigo 76 do CP. Enquanto esta determina a ordem de cumprimento das penas de gravidades diversas, aquela acresce um requisito temporal à comutação das penas de crimes comuns. Desnecessária inversão no cumprimento das penas para a aplicação da comutação prevista no Decreto Natalino. Quanto ao requisito temporal, basta o transcurso de 1/4 (um quarto) ou 1/3 (um terço) da pena total a que submetido o sentenciado por crime comum e hediondo, seja ele primário ou reincidente, respectivamente, e o cumprimento de 2/3 (dois terços) da pena do crime mais grave. Não há invasão da competência do Poder Legislativo.
Do mesmo modo, a norma do Decreto não viola o disposto no artigo 5º, inciso XLIII, da CF. A comutação deve ser aplicada tão somente em relação às penas dos crimes comuns, conforme artigo 8º do Decreto 7.046/09. Cabe ao Presidente da República, pela competência constitucional prevista do art. 84, inciso XI, da CF, especificar os requisitos a que deve submeter-se o sentenciado para alcançar a comutação das penas dos crimes não vedados. Observados os limites da CF, não há inconstitucionalidade a ser declarada.”
(Voto, Habeas Corpus 20100020166666HBC, Relatora Desembargadora SANDRA DE SANTIS)”
Assim, conforme se pode perceber pelos fundamentos expostos no voto da Exma. Desembargadora SANDRA DE SANTIS, a confusão da interpretação de tal dispositivo foi gerada ao considerar que a norma do artigo 7º, parágrafo único, do Decreto 7.046/09 e do Decreto 7.420/10 teria versado sobre a mesma questão daquela tratada no artigo 76 do Código Penal.
Entretanto, neste entendimento, os decretos de indulto nada teriam a ver com o cumprimento de pena, não se tratando de qual deve ser cumprida em primeiro ou por último. Tais decretos somente impõem requisitos que, se cumpridos, impõe o abatimento de tais reprimendas. Tal entendimento também esta claro nas decisões exaradas pelo Superior Tribunal de Justiça no HC 29.789/PR, HC n° 8911/RJ, e REsp's 511.678/RS e 628.159/RS.
Conforme já definido, o indulto é uma clemência do estado que se encontra óbice apenas nos casos estipulados no inciso XLIII, do art. 5º da Constituição Federal. Fora desta situação, tratando-se de ato discricionário do Presidente da República, cabe a ele a definição da extensão do benefício, podendo, inclusive, conceder a graça em crimes que sequer tenham iniciado o seu cumprimento da pena, como, por exemplo, indultar todos os crimes em que a condenação seja de até 1 ano de reclusão.
Ante o exposto, claro está, tanto pelo primeiro quanto pelo segundo fundamento aqui defendido, que a norma do parágrafo único do art. 7º dos Decretos Natalinos de 2009 a 2011 é constitucional, pois possibilita o indulto apenas dos crimes não impeditivos e não dos hediondos e equiparados. Assim, cumpridos 2/3 da pena destes, torna-se possível a concessão de indulto aos crimes em concurso que não ostentem tal natureza hedionda, desde que cumpridos todos os outros requisitos contidos na outorga presidencial.
Notas
[1] Órgão que possui a atribuição de propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da justiça criminal e execução das penas e das medidas de segurança (art. 64, I, da Lei de Execução Penal)
[2] “DECRETOS nºs 7.046/2009, 7.420/2010 e 7.648/2011
Art. 7º - As penas correspondentes a infrações diversas devem somar-se, para efeito do indulto e da comutação, até 25 de dezembro.
Parágrafo único. Na hipótese de haver concurso com infração descrita no art. 8º, a pessoa condenada não terá direito ao indulto ou à comutação da pena correspondente ao crime não impeditivo, enquanto não cumprir, no mínimo, dois terços da pena, correspondente ao crime impeditivo dos benefícios (art. 76 do Código Penal) (grifo nosso).
[3] Art. 5º, inc. XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
[4] Art. 76 - No concurso de infrações, executar-se-á primeiramente a pena mais grave.