3 - A LUTA EM TORNO DA IMPLEMENTAÇÃO DO PISO NACIONAL DOS PROFISSIONAIS DO MAGISTÉRIO.
Conforme visto alhures, os postulados da igualdade quanto ao oferecimento de ensino de qualidade e da redução das desigualdades regionais em matéria de educação previstos na Constituição Federal, exigem a atuação do Poder Público no sentido de traçar diretrizes uniformes a serem observadas pelas unidades federativas, de modo a evitar – ou pelo menos, reduzir - a ocorrência de assimetrias qualitativas entre os sistemas de ensino mantidos por elas.
É justamente nesse contexto que a luta pela implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério se encaixa, pois a fixação de uma base remuneratória comum aos docentes visa, exatamente, evitar que significativas diferenças remuneratórias entre os sistemas de ensino possam vir a aprofundar aquelas desigualdades sociais e regionais assumidas no art. 3º, da Constituição Federal, cuja superação integra os objetivos republicanos.
3.1 - Impactos no subsistema da política.
A atuação dos movimentos sociais pela valorização da educação fez com que o subsistema da política reconfigurasse suas estruturas comunicativas no sentido de integrar as pautas defendidas pelos referidos movimentos na agenda prioritária de decisões coletivas a ser implementada. Como resultado final de tal processo, logrou-se a aprovação de uma série de medidas legislativas destinadas à implantação paulatina do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério.
Pois bem. Já em 2001, quando da elaboração do Plano Nacional de Educação, consolidado na Lei nº 10.172, de 9.1.2001, estabeleceu-se que a meta de “valorização do magistério” prevista no art. 214, III, da Constituição Federal seria perseguida por intermédio da fixação de uma política nacional de remuneração e de condições de trabalho. Deu-se, assim, o primeiro passo para a implementação do piso Nacional dos Profissionais do Magistério.[18]
Justamente no fito de cumprir as diretrizes traçadas no Plano Nacional de Educação (art. 214 da Carta Magna e Lei nº 10.172/2001), numa perspectiva sistemática, mais precisamente no que diz respeito à fixação de uma política global de valorização do magistério, a Emenda Constitucional nº 53/2006, por intermédio da nova redação conferida aos artigos 206, VIII da Lei Maior e 60, III, “e”, do ADCT, determinou ao legislador ordinário a elaboração de leis federais voltadas para a fixação de pisos nacionais para os docentes do ensino básico e para os profissionais do ensino público em geral.[19]
E, em cumprimento ao supratranscrito dispositivo constitucional, o art. 41 da Lei nº 11.494, de 20.6.2007, fixou prazo para que o Poder Público editasse diploma legal específico, a versar sobre o piso nacional dos profissionais do magistério da educação básica.[20]
Assim que, em 17.7.2008 – mesmo com quase 1 (um) ano de atraso em relação ao prazo fixado no sobredito artigo – foi promulgada a Lei nº 11.738/2008, tratando especificamente do piso nacional dos profissionais do magistério básico, e estabelecendo, nesse diapasão, seu conceito legal, seu valor, suas condições de percepção por parte dos destinatários, bem como os mecanismos de implementação a serem observados por parte dos entes federativos.[21]
Todo esse processo, que teve início com as discussões em torno do Plano Nacional de Educação no início da década de 2000 e culminou com a edição da Lei nº 11.738 em 2008, foi marcado pela ação incisiva daqueles movimentos sociais e das entidades sindicais dos docentes. Sem a presença de tais elementos, certamente o debate político no que tange à implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério teria sido consideravelmente esvaziado, senão abandonado.
A atuação dos movimentos sociais na discussão do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério é, portanto, um nítido exemplo de como os movimentos de caráter desintegrador influenciam, de modo legítimo, a comunicação autorreferencial do sistema político.
3.2 – Impactos no subsistema do direito.
A partir do momento em que o Piso Nacional dos Profissionais do Magistério passou a ser previsto em lei, as discussões em torno do tema transcenderam a arena política e ganharam os centros de decisão do sistema parcial do direito, quais sejam, os tribunais. O debate, outrora centrado na conveniência/inconveniência da medida, voltou-se para a verificação da conformidade/desconformidade da Lei nº 11.738/2008 em relação à Constituição Federal, mais precisamente na parte em que esta última confere aos Estados e municípios autonomia para o estabelecimento do regime jurídico de seus servidores públicos, aí incluídos os docentes.
O sistema do direito, que até então havia se limitado a assimilar o conteúdo da Lei nº 11.738/2008 como uma de suas expectativas normativas, foi instado a aferir, de modo autorreferencial, a validade/invalidade do referido diploma legal em relação à norma-ápice do ordenamento jurídico, o que poderia resultar ora em redundância, ora em variação de suas estruturas comunicativas.
O ponto de partida do debate jurídico em torno da validade/invalidade da Lei nº 11.738/2008 foi marcado pela proposição da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.167/DF junto ao Supremo Tribunal Federal por parte dos governadores do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná, do Mato Grosso do Sul e do Ceará, sob a alegação de que o referido diploma federal afigurar-se-ia contrário ao princípio do pacto federativo insculpido nos artigos 1º, caput, 25, 30 e 32 da Constituição Federal.
A propositura da medida judicial em referência fez com que os movimentos sociais voltados para a valorização da educação deslocassem seus focos de atuação para o Supremo Tribunal Federal e passassem a utilizar as estruturas comunicacionais oferecidas pelo sistema funcional do direito para a defesa de suas causas. Nesse sentido, a previsão em abstrato da figura dos amici curiae foi de fundamental importância para que aqueles atores pudessem ingressar legitimamente no debate e contribuir, dessa forma, para a construção jurídica autorreferencial que viria a ser formulada sobre a matéria.[22]
Ao cabo dos debates travados no Supremo Tribunal Federal, a Lei nº 11.738/2008 foi declarada constitucional, sob o entendimento de que a fixação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério nada mais representa senão a concretização das pautas principiológicas da Constituição Federal concernentes à valorização da educação e ao papel do ensino na superação das desigualdades regionais.[23]
Do ponto de vista da Teoria dos Sistemas, pode-se dizer que a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.167/DF representou uma variação das expectativas normativas do direito em relação à autonomia dos Estados e municípios e à competência exclusiva dos chefes do Poder Executivo estadual e municipal para dar início ao processo legislativo concernente ao regime jurídico dos servidores de seus respectivos entes federativos.
Com o reconhecimento em torno da legitimidade do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério tal autonomia restou parcialmente reduzida, pois fixou-se que em matéria de educação os preceitos previstos nos artigos 1º, caput, 24, 30 e 32, da Constituição Federal quando lidos em conjunto com as diretrizes educacionais previstas na própria Carta Magna cederão a estes últimos, dado o caráter predominantemente nacional que a Lei Maior conferiu ao tema.
3.4 – Os novos desafios da luta pela implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério.
A luta pela implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério não se encerrou com a promulgação da Lei nº 11.738/2008 e com o julgamento da ADI nº 4.167/DF. Pelo contrário, o debate agora está centrado na implementação do referido diploma legal por parte dos entes federativos e na assimilação do conteúdo daquele diploma federal pelos gestores locais.
Nesse cenário, os sistemas de função da política e do direito são novamente instados a digerir o tema (de modo autorreferencial, naturalmente), a fim de reconfigurar suas expectativas cognitivas e normativas à luz das novas manifestações ocorridas em seu ambiente, seja por parte dos movimentos sociais, ou por parte de fenômenos ocorridos em outros sistemas, como, por exemplo, o da economia.
Em concreto, a implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério, com os reajustes anuais estabelecidos pelo art. 5º da Lei nº 11.738/2008, vem encontrando enorme resistência por parte das instâncias locais de governo, mormente porque a reconfiguração das remunerações dos docentes impactará consideravelmente no orçamento dos governos estaduais e das prefeituras municipais.
Nesse cenário, a atuação dos movimentos sociais dedicados à temática da valorização da educação, bem como das entidades sindicais, tem se voltado para a gestão junto aos Poderes Executivo e Legislativo dos entes federativos quando da elaboração e da votação das propostas orçamentárias, no fito de assegurar a dotação das verbas necessárias ao cumprimento efetivo da Lei nº 11.738/2008. Quando tal atuação não basta, a pressão sobre as esferas políticas em referência passa a ser exercida por intermédio da deflagração de greves, que acabam ora por conduzir o Poder Público à mesa de negociações, ora por transferir o debate, novamente, para a esfera judicial.
No que diz respeito ao sistema do direito, os novos desdobramentos da luta pela implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério vêm sendo instigados pela interpretação reducionista que os Poderes Públicos vêm formulando em torno do sentido e do alcance da Lei nº 11.738/2008 e do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.167/DF lidos em cotejo com as normas locais pertinentes ao tema.
Dito em outros termos, os gestores públicos vêm se utilizando das legislações locais concernentes ao pessoal docente (planos de carreira, estruturação remuneratória, jornadas de trabalho, etc) para buscar nelas previsões mais específicas que possam contribuir, a seu juízo, para esvaziar as diretrizes abstratas e gerais da Lei Federal nº 11.738/2008. Tem-se como exemplos de tal prática, os artifícios utilizados no sentido de vincular o pagamento integral do Piso Nacional à observância da jornada de trabalho de 40 (quarenta) horas, desconsiderando-se a jornada-padrão da localidade, e de adotar o regime remuneratório de “subsídios” no fito de burlar a necessária vinculação do Piso Nacional ao vencimento básico.
A reiteração de tais práticas Brasil afora têm levado os movimentos sociais – e, mais precisamente, as entidades sindicais dos docentes - a buscarem novamente os tribunais (e, consequentemente, o sistema parcial do direito), para repelir as interpretações restritivas de que têm se valido os gestores locais para elidir os efeitos da Lei nº 11.738/2008 em suas respectivas jurisdições.
Desse modo, o sistema do direito é instado, novamente, a manter ou rever as expectativas normativas concernentes à implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério, dessa vez com ênfase no âmbito local. Vista a questão sob outro ângulo, a utilização de uma ou de outra interpretação por intermédio do código binário lícito/ilícito, fará com que o sentido e o alcance jurídicos que os movimentos sociais pretendem conferir à Lei nº 11.738/2008 e às normas estaduais ou municipais sejam confirmados ou rechaçados.
Pode-se dizer, portanto, que o principal desafio enfrentado pelos movimentos sociais na tarefa de implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério engloba a necessidade de que o código binário do sistema político (governo/oposição) assimile o referido pleito de modo que prevaleça, ao cabo dos embates naturalmente ocorridos em tal seara, a destinação das verbas necessárias para o estrito cumprimento das diretrizes constantes da Lei nº 11.738/2008.
De outro turno, os movimentos sociais encontram-se embrenhados no desafio de valer-se dos elementos comunicativos do sistema parcial do direito com vistas a convencer os tribunais locais acerca da preponderância da interpretação que propõem à Lei Federal nº 11.738/2008 lida em conjunto com as normas estaduais e municipais concernentes ao regime de pessoal.
CONCLUSÃO.
Do que foi exposto, é possível concluir que as diretrizes constitucionais pertinentes ao desenvolvimento dos sistemas oficiais de ensino, lavradas sob a forma de compromisso entre os Poderes Públicos e a sociedade, contribuiu substancialmente para a postura desintegradora (sob o prisma da Teoria dos Sistemas) adotada nas duas últimas décadas pelos movimentos sociais voltados para a valorização da educação.
De fato, a parcela mais significativa de sua atuação a partir de 1988 foi dedicada à gestão junto às instâncias políticas com vistas à implementação das medidas necessárias à concretização daquelas pautas constitucionais, dentre as quais incluía-se a concretização do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério, retirando-as da retórica abstrata e cômoda das “normas programáticas”, a fim de conferir-lhes eficácia plena.
A atuação dos movimentos sociais nesse sentido, contribuiu substancialmente para a reconfiguração autorreferencial das estruturas comunicativas dos sistemas parciais da política e do direito que, através de seus códigos binários, produziram informações próprias a respeito daqueles temas e, desse modo, têm logrado cumprir com suas respectivas funções programáticas nesse particular, quais sejam, a tomada de decisões coletivas a respeito da implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério e a generalização congruente das expectativas normativas que subjazem à Lei nº 11.738/2008 e às normas locais sobre o regime jurídico do pessoal docente.
Ou seja, se anteriormente à atuação dos movimentos sociais em questão o sistema da política não englobava em sua função programática a concretização do art. 206, VIII, da Constituição Federal, agora já o abarca de forma plena. E, de igual modo, se o sistema do direito possuía certas expectativas normativas quanto à prevalência da autonomia dos entes federativos em matéria de pessoal, agora já não mais as possui, ao menos no que concerne às diretrizes educacionais.
Vê-se, desse modo, como os movimentos sociais voltados para a valorização da educação, a integrarem o ambiente dos sistemas sociais da política e do direito, contribuiram de maneira decisiva para a variação autopoiética das expectativas destes últimos, por intermédio da reordenação de suas estruturas comunicativas, e continuam atuando, já que a luta pela implementação do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério ainda subsiste em ambas as arenas.