Resumo: Da crise econômica que atingiu a União Européia nos últimos anos, emerge uma série de conseqüências, mas uma muito importante refere-se aos seus efeitos sobre os contratos administrativos celebrados antes do seu advento. Com efeito, não se pode negar que para esses ajuste, a crise emerge como um evento anormal, superveniente e imprevisível que onera sobremaneira a sua execução, devendo o direito administrativo encontrar soluções para a manutenção desses negócios jurídicos em virtude da necessidade de continuidade dos serviços públicos. Assim, a crise econômica apresenta todas as características exigidas para o instituto da alteração das circunstâncias, de modo a justificar, pois, a alteração do contrato administrativo com conseqüente aplicação da teoria da imprevisão. Isso não significa, contudo, que a crise econômica pode ser utilizada como escusa a justificar a alteração substantiva dos contratos administrativos, principalmente porque dessa forma estar-se-iam realizando verdadeiros ajustes diretos, violando as regras do procedimento pré-contratual e, conseqüentemente, tanto as normas que regem o direito comunitário europeu, quanto a Constituição da República Portuguesa que no seu art. 266º, nº 2, exige que a atividade administrativa seja sempre guiada pelos princípios da igualdade e imparcialidade.
Palavras-chave: Crise econômica -Contrato administrativo – Alteração das circunstâncias - Teoria da Imprevisão
Sumário: 1. Introdução. 2. A crise econômica como fato superveniente e imprevisível: modificação do contrato administrativo com fundamento no instituto da alteração das circunstâncias. 3 – A teoria da imprevisão. 4 – Limites à modificação do contrato administrativo decorrente da alteração das circunstâncias. 5 – Conclusão. 6 – Referências Bibliográficas.
1 – Introdução
É cediço que a formação dos contratos administrativos está submetida a uma série de regras que garantem a efetividade do disposto no art. 266º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Assim, a regra é de que toda celebração de um contrato administrativo seja precedida de um procedimento pré-contratual.
Essa é, inclusive, a regra que vigora não somente para o direito interno português, mas para todo o direito europeu.
Com efeito, todos os contratos administrativos celebrados na União Européia estão submetidos à Directiva 2004/ 18/CE, de 31 de Março de 2004, cujo art. 28 exige a utilização obrigatória de procedimentos pré-contratuais prévios como regra à formação dos contratos administrativos.
Referida norma, de obrigatória transposição para o direito interno português (feita pelo Código de Contratos Públicos, Decreto-lei nº 18/2008, de 29 de janeiro, a partir do art. 16º) em conjunto com o já referido art. 266º, nº 2, exigem, pois, que todo contrato administrativo seja precedido de um procedimento pré-contratual que prime pela livre-concorrência, igualdade e imparcialidade.
Lado outro, em tempos de crise econômica, é usual que princípios e garantias constitucionais passem por uma reavaliação interpretativa com o objetivo de se enquadrarem no novo paradigma.
Assim, o objetivo do presente artigo é verificar que se a crise econômica constitui fundamento autônomo quer permite a modificação do contrato administrativo, nos termos do art. 312º, do CCP.
E se for fundamento à modificação do contrato, deve-se indagar os limites à essa modificação, de modo a não desvirtuar o próprio instituo em tela, isto é, de modo que a alteração do ajuste não seja apenas uma desculpa para justificar mudanças tão extremas que constituem, no fim, verdadeira celebração de um novo contrato, em flagrante violação tanto ao CCP, quanto à CRP, quanto às regras de direito comunitário.
Assim, analisa-se primeiramente o enquadramento da crise dentro do instituo da alteração das circunstâncias, a conseqüente aplicação da teoria da imprevisão e, por fim, os limites à modificação do contrato administrativo cujo fundamento seja a superveniência imprevisível da atual crise econômica.
2 – A crise econômica como fato superveniente e imprevisível: modificação do contrato administrativo com fundamento no instituto da alteração das circunstâncias.
Os contratos administrativos, aqui entendidos como “o acordo de vontades que visa à produção de efeitos sobre uma relação jurídica administrativa” é, freqüentemente, um contrato de longa duração, cuja execução é diferida no tempo. [1]
É por isso que nessa espécie de contrato, a cláusula rebus sic stantibus assume especial relevância, podendo ser considerada, inclusive, garantia da atividade econômica, uma vez que seria impossível encontrar um co-contratante privado que aceitasse cumprir integralmente um ajuste se soubesse de antemão que teria estaria obrigado a “cumpri-lo na íntegra, sem alterações nem compensações, fossem quais fossem as alterações supervenientes”.[2]
Desse modo, o Código dos Contratos Públicos prevê no art. 312º que tanto quando houver uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que seu fundaram a celebração do contrato (alínea “a”), quanto por razões de interesse público (alínea “b”) pode o contrato administrativo ser modificado.
A diferença entre um e outro é que enquanto no primeiro caso, nos termos do art. 314º, nº 2, também do CCP, a conseqüência é a aplicação da teoria da imprevisão e a repartição dos prejuízos entre as partes contratantes, com base em critérios de igualdade, na segunda hipótese, ou seja, modificações motivadas pelo interesse público, terá o particular direito à indenização integral dos prejuízos, nos termos do art. 314, nº 1, “b”.
Isso porque as razões de interesse público constituem fundamento do uso do poder de modificação unilateral que confere aos particulares o direito à recomposição integral da saúde financeira do contrato.
A diferença das conseqüências em relação a um ou outro instituto se deve ao fato de que o instituto da alteração das circunstâncias que dá causa à teoria da imprevisão decorre de evento superveniente e absolutamente imprevisível a ambas as partes, constituindo-se, portanto, em modalidade objetiva de modificação do contrato administrativo.[3]
Já o poder de modificação unilateral, apesar de poder ter como base também uma situação superveniente e não previsível a época da celebração do contrato, tem como fundamento sempre uma ponderação pela Administração Pública e a conseqüente decisão de modificar o ajuste, de cunho obrigatório para o particular co-contratante.[4]
Assim, deve-se indagar se a crise econômica enquadra-se em um dos dispositivos do art. 312º, do CCP e, conseqüentemente, constitui-se fundamento para alteração do contrato administrativo.
Não há dúvida que a limitação no acesso ao crédito bancário “que afecta não só a capacidade dos adjudicatários prestarem as necessárias garantias bancárias, ainda antes da celebração do contrato, mas torna também difícil ou impossível o seu cumprimento por parte do co-contratante particular” decorrentes de uma crise econômica constitui um evento superveniente, anormal e que torna a execução do contrato da forma como fora celebrado extremamente onerosa.
Também é indubitável que nem a Administração Pública, nem o co-contratante privado são capazes de prever uma crise econômica. Assim, por ser um fato superveniente totalmente alheio à vontade das partes, pode-se concluir que se trata, na verdade, de uma hipótese que se encaixa no instituto da alteração das circunstâncias, cuja conseqüência é, portanto, a aplicação da teoria da imprevisão.
Todavia, de acordo com Alexandra Leitão, a crise econômica pode ser utilizada como fundamento para as duas hipóteses do art. 312º, do CCP, isto é, tanto como hipótese de aplicação da teoria da imprevisão, como informa o art. 314º, nº 2, como fundamento do uso do poder de modificação unilateral, cuja conseqüência é a indenização integral do particular, nos termos do art. 314º, nº 1, alínea “b”.[5]
Contudo, o que diferencia a imprevisibilidade que fundamenta o poder de modificação unilateral da imprevisibilidade que motiva a aplicação da teoria da imprevisão é o fato de que no primeiro caso, a Administração mediante um juízo discricionário e decide se faz uso ou não do ius varindi.[6]
Já no caso da teoria da imprevisão, o evento é anormal e onera demasiadamente a execução do contrato, não deixando opção às partes que, para manter a sua execução, são obrigadas a modificar o conteúdo das prestações. [7]
Assim, considerando que a crise econômica não deixa ao contratante público outra opção que não a modificação do contrato administrativo, conclui-se que se trata, na verdade, de verdadeira hipótese do instituto da alteração das circunstâncias e não como fundamento do poder de modificação unilateral.
A única ressalva aqui diz respeito às situações que façam parte dos riscos do negócio jurídico. Com efeito, as conseqüências da crise econômica sobre o contrato tem que gerar uma situação de extrema anormalidade e onerosidade para o contratante privado.
Não sendo essa a situação, estará o contratante privado diante apenas diante da álea empresarial, que configura uma situação superveniente, mas que deveria ser prevista. Assim, Alexandra Leitão salienta que “das regras sobre repartição do risco decorre que algumas dessas oscilações têm de ser suportadas pelo contraente particular, sob pena de a álea contratual recair integralmente sobre a Administração”.[8]
3 – A teoria da imprevisão
A teoria da imprevisão, nos termos do art. 314º, nº 2, do CCP é a conseqüência direta que garante ao particular co-contratante uma compensação financeira pelos prejuízos causados pelo evento superveniente e imprevisível que, no âmbito do presente estudo trata-se da crise econômica.
A teoria da imprevisão é, originariamente, criação do direito francês e é a solução aplicável quando fatos supervenientes, anormais e imprevistos impedirem a manutenção do contrato administrativo como fora inicialmente celebrado.
Nessas situações, a manutenção do ajuste, por ter se tornado demasiadamente onerosa, poderia levar à ruína o co-contratante privado e colocaria em risco a continuidade do próprio serviço público.[9]
Assim, por meio de uma construção jurisprudencial, criou o Conselho de Estado Francês a referida teoria a partir do litígio traçado no arret de Compagnie gérnerale d’eclairage de Bordeaux, em 1916, em que, em virtude da I Guerra Mundial, os contratos de distribuição de gás e fornecimento de energia elétrica celebrado sofreram relevante impacto com a alta imprevisível do preço do carvão.
A manutenção do contrato administrativo, então, tornou-se impossível para os contratantes privados e, considerando a necessidade de manutenção da prestação do serviço público decidiu o Conselho de Estado pela manutenção do contrato após, com desoneração apenas parcial da concessionária, após a revisão/atualização das suas cláusulas.[10]
Outro precedente marcante sobre a aplicação da teoria da imprevisão refere-se ao arret de Compagnie dês Tramways de Cherbourg, em que o Conselho de Estado francês fixou que a imprevisão deve ser uma situação temporária.
Traçaram-se, assim, os limites à compensação financeira do particular, determinando que a indenização decorrente da repartição dos prejuízos entre as partes é de cunho temporário cujo objeto é apenas fazer com o particular co-contrate supere a onerosidade excessiva decorrente da alteração das circunstâncias. [11]
Lado outro, no caso do direito português, contudo, a teoria da imprevisão não nasceu de uma construção jurisprudencial, mas de uma previsão correspondente no Código Civil.
Nesse contexto Carla Amado Gomes afirma que o art. 437º tem direta inspiração na criação jurisprudencial francesa, mas admite que era esse o dispositivo aplicado pelos tribunais administrativos até a edição do CCP, tanto para a compensação financeira do particular decorrente de alteração das circunstâncias como, até mesmo, do exercício do poder de modificação unilateral. [12]
É que os tribunais administrativos sempre admitiram a extensão do art. 437º do diploma civil a todos os tipos de contrato, inclusive os administrativos,[13] com a diferença de que no caso específico dos contratos de direito privado somente pode o particular requerer a resolução do contrato afetado pelo evento superveniente e imprevisível e, no caso dos contratos administrativos, em nome da continuidade do serviço público, há também a opção de uma compensação financeira e conseqüente manutenção do ajuste.[14]
Assim, verificada a incidência de um evento anormal, superveniente, que onera demasiadamente a execução do contrato administrativo, tornando impossível a sua execução da forma como inicialmente fora pactuado, aplica-se a teoria da imprevisão.
A teoria da imprevisão garante, desse modo, ao particular co-contratante, o direito ao restabelecimento da saúde financeira do contrato.
Contudo, como se trata de uma causa objetiva de modificação do contrato administrativo, por ser alheia à vontade de ambas as partes, não terá o particular o direito a uma indenização integral, mas a uma repartição dos prejuízos com a Administração que será realizada com base em critérios de igualdade.
Além disso, nos termos do art. 332º, nº 1, “a”, do CCP, uma das conseqüências possíveis da aplicação da teoria da imprevisão é a resolução do contrato administrativo por iniciativa do co-contratante privado.
Assim, no caso da situação anormal e imprevisível prolongar-se no tempo, tornando impossível a manutenção do contrato mesmo com base nos critérios de repartição dos prejuízos com a Administração Pública, pode o particular requerer a resolução do ajuste.
4 – Limites à modificação do contrato administrativo decorrente da alteração das circunstâncias
Como visto, a crise econômica pode ser a causa anormal, imprevisível e superveniente que determine a modificação do contrato administrativo por meio da aplicação da teoria da imprevisão.
Contudo, o que deve ser verificado em tempos de crise são os limites da modificação do contrato, isto é, poderia a crise econômica justificar a alteração do próprio objeto contratual?
Ou isso representaria violação aos princípios da livre concorrência que rege o direito europeu e até mesmo os princípios da igualdade e imparcialidade do art. 266º, nº 2, da CRP, porquanto representaria uma escusa para, alterando sobremaneira as cláusulas contratuais celebrar um novo ajuste sem o procedimento pré-contratual obrigatório?
Sobre os limites da modificação do contrato administrativo fundada na alteração das circunstâncias, nada diz expressamente o Código de Contratos Públicos.
Todavia, no art. 313º o referido diploma determina que são imodificáveis, por as cláusulas atinentes aos direitos e deveres das partes e protege, ainda, a intangibilidade do objeto contratual.
Tudo isso exatamente com o objetivo de impedir que por meio do uso da prerrogativa exorbitante, a Administração Pública altere tanto o contrato de modo que, em fim, tenha-se, na verdade, um novo ajuste, burlando o procedimento pré-contratual.[15]
Nesse caso, estar-se-ia diante de uma verdadeira hipótese ilícita de ajuste direto e, por isso, o ato administrativo decorrente do uso do ius variandi pode ser impugnado pelos eventuais lesados com o fundamento na preterição do procedimento pré-contratual exigido.[16]
Assim, restou definido, para o poder de modificação unilateral que a intangibilidade do objeto contratual permanece imaculada quando as novas prestações exigidas pela Administração Pública constituírem espécies do qual é gênero o objeto do ajuste.[17]
Assim, não importa que seja qualitativa ou quantitativa a modificação do contrato decorrente do uso do ius variandi, desde que o que se exige a mais pela Administração Pública permaneça dentro do gênero abarcado pelo objeto contratual.
O mesmo raciocínio deve ser transposto também para a aplicação da teoria da imprevisão.
Isso significa que se a crise econômica pode ser considerada como hipótese do instituto da alteração das circustâncias, nunca pode ser utilizada como fundamento para ferir as regras do procedimento pré-contratual.
Assim, a aplicação da teoria da imprevisão fundada na crise econômica deve alterar o contrato sempre respeitando os limites do art. 313º, do CCP, isto é, mantendo-se intangível o objeto do contrato, preservando, pois, sua essência.
Nesse contexto é acertado o entendimento de Alexandra Leitão que entende que também para os casos de aplicação da teoria da imprevisão deve ser respeitada a intangibilidade do objeto uma vez que “o acordo não pode pôr em causa regras de natureza objectiva e de ordem pública, como são as que derivam das regras de Direito Europeu sobre os mercados públicos”.[18]
Dessa forma, se a crise econômica obrigar uma alteração que tenha impacto na essência do contrato administrativo, não podem as partes contratantes optar pelo restabelecimento da saúde financeira do contrato, restando como opção apenas a resolução do ajuste.
5 – Conclusão
Diante de todo o exposto verificou-se, primeiramente, que a crise econômica que assola a União Européia trata-se de evento anormal, imprevisível e superveniente, constituindo-se, portanto, hipótese de aplicação da alteração das circustâncias prevista no art. 312º, “a”, do CCP.
Por esse motivo, os contratos administrativos afetados pela crise podem ser alterados aplicando-se a teoria da imprevisão que, nos termos do art. 314º, nº 2, também do CCP determina a compensação financeira ao particular co-contratante por meio da repartição dos prejuízos, com base em critérios de igualdade.
Todavia, a crise econômica não pode ser fundamento para violar as regras inerentes ao procedimento pré-contratual, de modo que toda modificação no contrato administrativo deve respeitar estritamente os limites do art. 313º, do CCP, respeitando, assim, as regras de direito comunitário europeu e da Constituição Portuguesa sobre livre concorrência, igualdade e imparcialidade.
Sendo assim, para os ajustes cuja modificação decorrente da crise econômica exija a alteração da essência do objeto a única solução é a resolução do ajuste, de modo a preservar os referidos princípios e, por fim, o próprio instituto do contrato administrativo.
6 – Referências Bibliográficas
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