3. O PROCESSO LEGISLATIVO E EFETIVIDADE
3. 1 UMA NOÇÃO PROPEDÊUTICA
Não somos muito afeitos aos conceitos. Conceituar é, de certa forma, empobrecer a substância da coisa em si. Quem conceitua sempre deve deixar algo de lado, porque um conceito é um recorte de coisas comuns entre determinadas espécies, que passam a ser agrupadas num gênero conceitual.
A atividade acadêmica, todavia, mormente quando se pensa em pesquisa acadêmica, exige-nos a conceituação e faz mais. Não devemos apenas conceituar, mas devemos fazê-lo da forma mais exata quanto possível, quase que matematicamente, esquecendo as especificidades das coisas, quase tantas que nenhum estudo terminaria se em dado momento a conceituação não fosse interrompida.
Assim sendo, cabe, de início estabelecer um conceito do que seja processo legislativo.
José Fábio Galvão define o processo legislativo como sendo o “conjunto de atos preordenados que visa à criação de normas de direito. Em outras palavras, representa o conjunto de atos realizados pelos órgãos legislativos com o objetivo de compor leis”.[34] E continua, afirmando que “o modo pelo qual os atos do processo legislativo se realizam são chamados de procedimento legislativo”.
Inicialmente, cabe esclarecer que o processo legislativo, todavia, defere-se do processo judiciário, porquanto seja criativo, enquanto aquele é apenas interpretativo.
Enquanto os juízes debruçam-se na interpretação do direito, cuidam os legisladores de sua criação, ao passo que aos chefes do Executivo cabe o papel de efetivação das normas legais.
Eis a divisão tripartite dos poderes. Enquanto a um dos poderes cabe a originar os direitos, aos demais cabe executar e interpretar, na exata medida da ordem constitucional.
Mas este não é nosso tema. Aqui, há mera intervenção introducente da problemática ser abordada. Apontando a natureza do processo legislativo, sem, todavia, mergulhar amiúde em cada uma das formas que se reveste.
Conquanto capaz de criar direitos, o processo legislativo ainda tem o papel de regulamentar seu exercício e, neste sentido, poder-se-ia recorrer à pirâmide de Kelsen para explicitar toda a hierarquia das leis, mas não o faremos, porquanto interessa-nos o gênero, a formulação de leis assim considerada de forma ampla, envolvendo decretos, portarias, leis ordinárias, leis delegadas, leis complementares e as demais espécies de legislação.
O que nos importa é apenas um ponto. O processo legislativo é o procedimento por quais se criam as leis, estas mesmas leis criam direitos e estes direitos, num Estado Democrático de Direito, sob o manto do princípio democrático, deve, necessariamente, visar garantir a participação mínima dos cidadãos, tão quanto garantir um mínimo de direitos capazes de atender à demanda social.
Há de se ver, e a afirmação aqui é conclusiva, que a legislação não apenas deve criar aos direitos socialmente necessários, garantidores de uma vida digna, deve, demais disso fornecer os mecanismos necessários ao exercício e a defesa destes direitos.
3.2. QUANDO SE CHEGA AO OBJETO - O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E O PROCESSO LEGISLATIVO: ENTRE DIREITOS SOCIAIS, EFETIVIDADE E PARTICIPAÇÃO.
A Carta Federal de 1988 prevê diversas formas de participação popular no processo legislativo. Dentre estes processos podemos elencar o Plano Plurianual, no qual, embora não consignado expressamente na CF/88, conta, na maioria dos Estados, com participação da população, com setores representativos dos diversos eixos da sociedade, além disso, insculpe o Texto Magno a hipótese de projeto de lei por iniciativa popular, o plebiscito e diversas outras formas de participação da população no processo legislativo.
Não acreditamos, porém, que a questão cerne do debate deva gravitar no que diz respeito á quantidade desta participação do povo nas iniciativas e procedimentos legislativos. Ao revés, fundamental é verificar qualidade desta participação.
Em nossa pesquisa de campo, questinamos alguns segmentos direcionados da população do Estado da Bahia. O processo de pesquisa dividiu o público em três blocos. O primeiro constituído de servidores do Poder Executivo Estadual das Secretarias da Admistração e da Saúde, o segundo dos servidores da Secretaria do Desenvolvimento Social e do Combate à Pobreza, SEDES, o terceiro de Advogados e o quarto dos eixos variados da sociedade, transeuntes da área urbana do Município de Salvador.
Neste sentido, questionando os segmentos apontados com a pergunta “você se entende como atuante no processo legislativo baiano e crê que a participação popular pode garantir a efetividade dos direitos?” obtivemos os seguintes resultados:
Servidores SAEB |
Servidores SESAB |
Servidores SEDES |
População(nas ruas) |
Advogados |
|||||
SIM 55% |
NÃO 45% |
SIM 70% |
NÃO 30% |
SIM 70% |
NÃO 30% |
SIM 17,5% |
NÃO 82,5% |
SIM 86,7% |
NÃO 13.3% |
Parece claro que a participação popular, consoante demonstrou nossa pesquisa nas ruas e no Poder Executivo Estadual é seletiva. Na Bahia, e podemos estender o resultado a nível nacional sem problema algum, os processos de participação popular atendem apenas a grupos determinados, concatenados politicamente, deixando de lado a participação dos grupos populares menos favorecidos, a população carente e as lideranças locais.
Qualquer proposta de participação popular que intente promover de forma minimamente eficiente a participação efetiva da população deve atentar à necessidade de seletividade crítica dos segmentos a participar do diálogo.
Deve-se, pois privilegiar a pulverização das representações populares entre os diferentes setores da população, desde lideranças comunitárias dos bairros mais populares, movimentos de minorias às representações das elites, tão farta e fortemente presentes em todas as esferas de Poder da Sociedade.
Eis que o objeto do presente estudo nos chega – e as conclusões aqui são precárias.
De fato, verificando a que a democracia é um princípio constitucional, pode-se, mais ainda, notar que sua incidência não apenas é útil para sopesar a interpretação dos direitos no Judiciário. Ao contrário, tal orientação deontológica se espraia entre as esferas Executiva e Legislativa, tornando inconcebível a ação do Poder Público avalizando interesses de grupos privilegiados.
Enquanto orientação deontológica, o princípio democrático, na ação normativa (legislativa em sentido amplo) do Poder Executivo, se desdobra nos princípios da primazia do interesse público, da moralidade e da economicidade, porque os atos normativos não podem alijar a população mais humilde ou setores de esquerda da vida política e da execução dos planos políticos.
Neste sentido, é imoral restringir o livre trânsito da população nas dependências dos estabelecimentos públicos, mormente quando buscam informações, seja a respeito de projetos desempenhados pelos Poderes do Estado, seja visando participar de uma forma ou de outra em parceria com o Estado.
No âmbito do Legislativo o princípio democrático se traduz na possibilidade de amplo acesso e participação da população nas decisões políticas, na discussão dos projetos de lei, no acompanhamento das votações destes mesmos projetos, da lisura nas negociações, enfim, em todos os aspectos participativos que se vêm desenvolvendo.
Para além de um modelo meramente fiscalizatório, com contas e relatórios que inviabilizam a participação do – com a devida licença - homem médio no acompanhamento e crítica do que se vem desempenhando.
Não se pode, ademais, deixar a cargo da mídia, de denúncias eminentemente capciosas a crítica política, fazendo-se necessária a implementação de conselhos populares, de órgãos colegiados que tornem o momento de participação política algo além do voto bienal.
Neste cenário, e como já dissemos, o princípio democrático se estabelece como solução plausível para contrabalancear as forças políticas que inevitavelmente permeiam a efetivação dos direitos sociais, favorecendo o debate, moralizando os discursos por meio da participação igualitária e verdadeira dos mais diversos setores sociais no processo legislativo.
Em assim sendo, frente á carência e o uso precário dos instrumentos de participação popular existentes na Constituição Federal e nas Constituições Estaduais, urge a consolidação do princípio democrático como avalizador do processo legislativo, sem o qual inconstitucionais a votação de qualquer legislação. Tudo visando garantir a supremacia dos direitos sociais.
4. CONCLUSÕES
A modernidade inventou o sujeito singular, o homem atomizado que existe por si e para si. Derrocada a noesis noesos, a busca de uma revelação transcendental da verdade em Deus, o sujeito tornou-se titular de seu próprio destino, deslocando a força da racionalidade moral prática de mandamentos morais para projetos de autoafirmação, da felicidade como projeto individual, em que esporadicamente o ser em si converte-se em ser no mundo, sujeito político complexo, oriundo da ação política.
Este amadurecimento do sujeito-cidadão, contudo, muito embora tenha ocorrido de forma globalizada e quase simultânea, acabou por solapar as diferentes concepções de mundo que exsurgiam em momentos históricos diferentes em cada nação.
Neste sentido, o deslocamento da consciência moral prática para os projetos individuais favoreceu ainda mais a dominação elitista que se vinha perpetuando principalmente nos países do sul.
Assim, e analisando a história brasileira, entre colônia portuguesa, Império, República, Ditadura (aqui compreendidas Era Vargas e Estado Novo) e Estado Democrático de Direito, o Brasil ultrapassou literalmente a pré-história, a antiguidade, a baixa idade média, o feudalismo, a revolução comercial e a modernidade[35] em apenas quinhentos anos.
Não se pode, neste sentido, dizer que um povo tão plural e tão jovem tenha desenvolvido a consciência política necessária para a emancipação.
Aqui, chegamos ao impasse: não temos consciência e mobilização política necessários para a emancipação social, vivemos solapados politicamente pelo cenário de uma precária modernidade plástica, que traduz a revolução social em comentários em Facebook e youtube e, pior, não vislumbra-se possibilidade de ruptura desta desmobilização.
Assim, pergunta-se: qual a saída?
Mas perguntar no final do texto? Aqui não deveriam estar as conclusões – ou seja, as respostas?
Antes de responder estas questões, necessário revisar os pontos abordados no presente trabalho.
Inicialmente, trabalhamos a questão da noção de democracia, perpassando um breve histórico, apenas para concatenar a concepção desta forma de governo em sua historicidade com as propostas modernas de sistemas democráticos.
Em seguida, propusemo-nos a analisar brevemente a proposta habermasiana de sistema democracia, verificando que a impossibilidade de implementação de tal sistema em contextos de desordem como o existente nos países do sul.
Demais disso, analisamos à democracia como forma de atendimento às perspectivas de um mínimo existencial, demonstrando-a como uma forma de acessibilidade dos sujeitos às diversas formas de direito, dentre as quais pode-se incluir o próprio direito fundamental á participação política.
Neste mesmo diapasão, intentamos relacionar a democracia como uma ampla garantia a um espectro mínimo de coisas das quais não poderia se dissociar o sujeito, um patrimônio mínimo inalienável sem o qual todas as suas perspectivas de cidadão, de sujeito de direito estariam frustradas.
Fez-se tudo isso para, em seguida, analisar o que são princípios e, ato contínuo, concluir que a democracia é, em verdade, um princípio constitucional, que deve permear as ações não apenas do Judiciário, mas do Executivo e do Legislativo.
Com esta premissa e explicado propedeuticamente o processo legislativo, pudemos demonstrar a necessidade cabal – inclusive utilizando-nos dos resultados do questionário simples por nós aplicado – de imbricamento necessário deste princípio constitucional nas ações do poder legislativo, mormente no que se diz respeito ao cumprimento das metas programáticas de nossa Carta Magna.
Mas não se chegou a uma conclusão. Em verdade, apenas o amadurecimento político é capaz de garantir uma solução necessária ao problema político de nosso Estado e de nosso País.
Assim, criticamos à forma de participação popular que se vem desenvolvendo, porque privilegia os segmentos mais abastados de nossa sociedade em detrimento da população carente.
Eis a resposta ao que acima questionamos: nossas conclusões não são respostas, não são propostas, são meras constatações, da inefetividade das instâncias de participação popular no Estado que pretendemos democrático, da burocratização das instâncias estatais de participação, o que sequer se coaduna com um sistema que se pretende de amplo acesso.
Assim, apenas a mobilização paulatina e a participação dos diversos segmentos da sociedade nas esferas de debate político propiciarão a tão almejado desenvolvimento político de nosso país.
Não se pode esperar que o Judiciário, apenas um intérprete, solucione os problemas políticos de nosso País; não se pode esperar que o Executivo e apenas ele proporcione o necessário vínculo entre ação política e os resultados que nossa sociedade espera.
Em suma: o princípio democrático, de ampla participação nas instituições Republicanas é a única forma de garantir, num cenário de escassez, a mobilização política e o desenvolvimento necessários para o amadurecimento político do Brasil.