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O princípio democrático como efetivador dos direitos sociais no processo legislativo

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29/10/2012 às 16:34
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Não se pode deixar a cargo da mídia, de denúncias eminentemente capciosas, a crítica política, sendo necessária a implementação de conselhos populares, de órgãos colegiados que tornem o momento de participação política algo além do voto bienal.

“estava ali e era como se não estivesse, tão seguro de si como se fosse, de facto e de direito, uma real pessoa, a quem, por ser tudo isto um deplorável mal-entendido, não tarda que venham restituir a coroa, o ceptro e o manto.”

(José Saramago. “O evangelho segundo Jesus Cristo”)

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo um estudo crítico da Democracia, encarando-a não como um sistema de governo, mas como uma tendência deontológica a nortear a ação do legislador, sendo capaz de propiciar a implementação dos direitos sociais e sua afirmação eficacial na seara administrativa.

Palavras-chave: Democracia, Princípio Democrático, Participação Popular, Constituição, Cidadania.

Sumário: 1.  Introdução; 2. Da democracia, 2.1 A democracia não é mais uma forma de governo possível? 2.2 Por uma nova noção de democracia, 2.3 A democracia como expressão do mínimo existencial, 2.4 A democracia como acesso a um patrimônio mínimo, 2.5 A democracia é um princípio constitucional?  3 O processo legislativo e a efetividade, 3.1 Uma noção propedêutica, 3.2 Quando se chega ao objeto – O princípio constitucional e processo legislativo: entre direitos sociais, efetividade e participação, 4 Conclusões, 5 Referências Bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

No cenário jurídico atual, doutrina e jurisprudência debruçam-se em busca de soluções para as questões dos conflitos de interesses num sistema jurídico que, conforme indicam Habermas[1] e Apel[2], carece de legitimar-se a si próprio. Nesta senda, a chamada regulamentação infraconstitucional ou reconstitucionalização dos sistemas jurídicos reclama solução para tal problemática no interior de um discurso performativo orientado para fins: os princípios constitucionais.

Esta orientação metodológica alberga-se em valores sociais para a construção do raciocínio jurídico, ora sobrelevando um dos pólos de um litígio com apoio de um preceito constitucional, ora afastando a efetividade de orientações valorativas conflitantes, cujo exemplo clássico apontado pela doutrina é o da liberdade de imprensa que se opõe ao direito de intimidade.

Nesse dispasão, conflitos de ordem superior, envolvendo uma pluralidade de sujeitos com interesses contrapostos ou impossibilitados pela atuação estatal, ou mesmo de outros particulares, quedam em orientações que, na maioria dos casos, consideram apenas a particularidade casuística, restringindo a ampliação dos direitos em causa para uma pluralidade de indivíduos no interior de uma ordem social (microssociedades).

Neste sentido, inserem-se a problemática da eficácia dos direitos sociais, dos direitos fundamentais e mesmo dos chamados direitos transindividuais. Qual a medida de sua realização? Quais os limites da atuação do judiciário no sentido da manutenção de uma ordem econômico-política?

A essas perguntas, a doutrina moderna responde com a noção de mínimo existencial que se imbrica com a concepção habermasina de Estado Democrático:

“se a limitação da atividade judicial decorre da especial legitimação que caracteriza o procedimento democrático, a mesma deve levar também em conta que o Judiciário, quando concretiza determinados direitos sociais, atua justamente no sentido da promoção das condições da democracia. Ao invés de se apoderar de prerrogativas que cabem à deliberação majoritária, o que faz de fato o Judiciário, quando concretiza direitos sociais fundamentais”[3]

Esta orientação, aliando o princípio democrático à construção de uma teoria fundamentadora dos direitos fundamentais ,encontra seus alicerces no modelo habermasiano de democracia, que elenca alguns dos direitos sociais como necessários à própria vigência de um regime de democracia onde vigore o poder comunicativo como estabilizador dos sistemas autopoiéticos[4].

Observa-se então, que o princípio democrático é que dará a medida da intervenção judicial no sentido da administração destes direitos fundamentais, mediando, no dizer habermasiano, facticidade e validade.

Se isso é verdade, como se dará esta atuação no processo legislativo? Como o princípio democrático atuará no processo legisferante buscando legitimar o direito aí produzido à consecução dessas condições minimamente necessárias para o exercício da democracia? A discussão deste controle realmente deveria envolver uma positivação total do direito no sentido proposto pó Habermas?

As câmaras de participação popular apresentam-se como uma solução bastante viável a nível local, como aponta Denise Vitale[5], todavia, encontra seus limites num país de dimensões continentais como o Brasil. Como garantir a ampla participação dos setores diversos da população sem, com isso, alterar a substância do modelo de Estado Constitucional Democrático brasileiro? São as questões que se buscou responder com esta pesquisa.

O trabalho prático, porém, deslocou as perspectivas da participação propriamente dita, para a qualidade da participação que efetivamente ocorre no direito pátrio, mormente em se falando do Estado da Bahia.

Neste sentido, o presente trabalho se inicia com a analítica da democracia como forma de governo, para verificar sua impossibilidade e, empós, busca defini-la analisando-a seja como expressão de um mínimo existencial, de um patrimônio mínimo ou mesmo como um cânone máximo do ordenamento jurídico.

Feito isso, passa-se a analisar ao processo legislativo em paridade com a noção de democracia a que se concluiu possível, para verificar a forma e a extensão dos seus limites no desenvolvimento do processo legislativo enquanto política pública que deve pautar-se no atendimento aos direitos sociais.

Assim, dando deslinde às linhas, segue a pesquisa.


2. DA DEMOCRACIA

2.1 A DEMOCRACIA NÃO É MAIS UMA FORMA DE GOVERNO POSSÍVEL?

Questionar a natureza da democracia é, ao mesmo tempo, questionar as próprias bases do Estado Democrático de Direito, verificando, neste sentido, a possibilidade de existir um Estado Democrático, em que não esteja vigente uma forma de Governo que se diga democrática – se é que isso é possível.

Para tanto, e preliminarmente, se faz necessário esboçar historicamente os contornos da democracia, visando demonstrar, de seu surgimento à atualidade os contornos e fundamentos que deram supedâneo à sua continuidade.

A democracia - da forma como não conhecemos – surgiu na Grécia Clássica, na polis, quando os cidadãos reuniam-se para decidir a vida política da cidade antiga, definindo os rumos de sua atuação política.

Aqui, há de se fazer um parêntese, porquanto na polis apenas era sujeito de direitos, ou seja, cidadão, o pater família, chefe soberano de cada uma das microssociedades (as famílias). Neste sentido, conquanto houvesse possibilidade de todo cidadão participar na vida política, poucos eram os cidadãos, em verdade.[6]

Assim sendo, é possível verificar que a democracia realmente era o Governo em que participavam todos os cidadãos, mas por cidadão, contudo, apenas poderiam ser compreendidos os membros das altas rodas da sociedade, os chefes das famílias, sujeitos de patrimônio.

Dando um verdadeiro salto histórico, multiplicando, sem nenhum pudor a população da cidade antiga por milhares e dando a todas as pessoas a condição de cidadão, que antes apenas era dos chefes de família, questionamos sobre a possibilidade da existência de uma forma de governo em que se pudessem opinar todos ao mesmo tempo, da forma como ocorria na origem da democracia.

A resposta é simples e única: é impossível, na modernidade – e há quem diga de pós-modernidade- a manutenção de um governo amplamente democrático, porque o contingente populacional, a necessidade de implementações de programas e decisões rápidas e de forma organizada impedem que se possa cogitar desta possibilidade.

Clarificadoras, neste espeque, as palavras do saudoso professor Norberto Bobbio, in verbis:

“Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.”[7]

Ora, dizer que a democracia é um conjunto de regras a informar quem está autorizado a decidir politicamente no âmbito de determinada comunidade é mesmo afirmar a impossibilidade de um governo de todos, de ampla participação dos cidadãos, nos moldes da democracia grega.

Entendemos – e a conclusão aqui é apenas preliminar – que a democracia não consubstancia, nos dias atuais, uma forma de governo, cabendo ao cientista político, ao jurista moderno, então, questionar: o que é democracia se não é uma forma de governo?

2.2. POR UMA NOVA NOÇÃO DE DEMOCRACIA

Demonstrada – o que não é tarefa muito difícil - a total impossibilidade fática, metodológica e lógica de funcionalizar um governo de participação de todos os cidadãos em cada uma das esferas decisórias do Estado, ou seja, verificada a impossibilidade de uma democracia real, recorrem os modernos cientistas políticos ao estudo de novos modelos, sugerindo formas de participação capazes de albergar o maior número possível de participação popular.

Destaca-se, dentre as teoria democráticas hodiernas, a habermasiana da democracia participativa, sustentando o referido autor a possibilidade de manutenção de uma lógica democrática na tensão interna entre faticidade e validade no interior dos discursos que compõem a vontade política.[8]

Reconstruindo a evolução das concepções teóricas de linguagem e identidade nacional, o autor chega à conclusão do esvaziamento da razão moral prática que tem agora sua vinculação a postulados de felicidade individual e realização de planos pessoais. Tomando esta perspectiva, identifica que a razão comunicativa pode mediar a tensão existente no interior do discurso, podendo, igualmente, ser aplicada aos postulados de seu procedimento democrático.[9]

Fora da estrutura interna do procedimento, Habermas engendra ainda pressupostos externos ao procedimento, divididos em grupos que devem necessariamente ser considerados para a obtenção do desiderato ao qual se presta sua teoria da democracia, em que o direito é o mediador da tensão entre faticidade e validade.

Estas categorias de direitos das quais se utilizam o autor podem ser resumidas em dois grandes grupos. O primeiro é o dos que garante as liberdades públicas de ação e o segundo é daqueles que garante a liberdade subjetiva de ação, vale dizer, o primeiro deles se direciona à coletividade e o segundo aos indivíduos atomizados. Em ambos os casos, é possível relacionar estes direitos à concepção de mínimo existencial, posto que representam um patamar mínimo que possibilitam uma atuação dos cidadãos no âmago do procedimento democrático.

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Com vistas a esta conclusão, entende Habermas que, assim como no giro linguístico, a formulação da comunidade de investigadores de Peirce pode ser adotada como verdadeira na construção do procedimento democrático. Mais que isso, entende ele é justamente neste alargamento do auditório de intérpretes ad infinitum, aliada aos postulados de verdade, correção e veracidade são capazes de possibilitar internamente as condições para um procedimento democrático adequado á realidade moderna.

Este entendimento, todavia, não se faz suficiente para atender à uma demanda politicamente desordenada, em que os discursos não concatenam-se logicamente senão pelos argumentos de autoridade, ou pela vis cumpulsiva, a chantagem política que leva a cabresto a pseudo-democracia brasileira.

Demais disso, o modelo proposto por Habermas, conquanto se apóie apenas no fundamento da eticidade do discurso, carece de fundamento teórico mais contundente, porquanto recorra, em última análise a um naturalismo fraco, da honestidade do homem buscando a verdade, de onde extrai seus postulados de certeza, verdade e correção.

Mas não é só. Pensar uma democracia deliberativo-participativa como intentou Habermas perfaz, de outro lado, conhecer a realidade exata em que se processarão as decisões políticas, o cenário social e o nível de formação do discurso político da população.

Entendemos, neste sentido, que a doutrina habermasiana lastreia-se numa lógica eminentemente formal, alijando as perspectivas de realidade em que possa processar a aplicabilidade de seu modelo.

Em outras palavras, a democracia da forma como proposta por Habermas[10] parece-nos, tal qual na noção platônica, totalmente impraticável nos dias atuais.

Necessário, neste sentido, rever a própria noção democrática existente nos dias atuais, a fim de engendrar uma proposta de democracia que realmente se adéqüe à realidade nacional-local.

2.3 A DEMOCRACIA COMO EXPRESSÃO DO  MÍNIMO EXISTENCIAL

Se a democracia não é uma forma de governo possível nos dias atuais, se a noção de democracia nos moldes como intentam as modernas teorias da democracia não satisfazem as necessidades dos cenários reais em que a tensão entre faticidade e validade converte-se em tensão meramente beligerante-economica, mister se faz construir nova fundamentação, capaz de dotar de eficácia os mecanismos democráticos.

Nesta senda, entendendo a democracia como forma de acessibilidade, de participação mínima que seja na vida política nacional, poder-se-ia dizer que ela é, um última análise, um desdobramento de um mínimo existencial.

Assim, insta clarear que o sentido que se quer da expressão, cuja consagração usual esvazia, oblitera, nadifica. Eis a questão basilar: definir o que é, o que não é e o que pode vir a ser mínimo existencial, para, empós, definir sua influência na noção de democracia que se intenta ofertar.

O mínimo existencial na lição inigualável do professor Ricardo Lobo Torres detém configuração básica de um direito à igualdade, de forma que sua forma, seu espectro eficacial lhe dá contornos pré-constitucionais. Afinal, se estriba em fontes que privilegiam à pessoa humana.

Outra assertiva do conspícuo pensador é a de que o mínimo existencial conforme-se como um direito público subjetivo do cidadão, não restando dependência qualquer em relação a uma outorga jurídica por parte do ente estatal. Reverso, tem validade erga omnes, aproximando-se capilarmente do estado de necessidade.

Outro ponto importante se refere à sua historicidade, que o fez evoluir, sendo fruto da dinâmica social. Nesta linha de pensamento, afirma o autor:

"o mínimo existencial, na qualidade de direito subjetivo, é oponível à administração, gerando para esta a obrigação de entregar a prestação de serviço público independentemente do pagamento de qualquer tributo ou contraprestação financeira, haja ou não lei ou regulamento. A violação do direito, por ação ou omissão, justifica, como veremos adiante, o controle jurisdicional.".[11]

Justamente por se configurarem como estes pilares do ordenamento constitucional, porque provedores da condição humana, estas garantias não podem ser olvidadas. Assim, adverte o professor Paulo Lobo Torres sobre a capacidade que tem o mínimo existencial no sentido de garantir a independência de todos os cidadãos, porque lhes concede os meios indispensáveis à uma vida digna.

Neste esteio, "a retórica do mínimo existencial não minimiza os direitos sociais, senão que os fortalece extraordinariamente na sua dimensão essencial", porque nesta constelação exibem sua luminosidade plena, mantendo-os "incólumes ou até mesmo os maximiza na região periférica, em que valem sob a reserva da lei". [12]

Sua formulação, porém, não olvida a imperiosa necessidade de sua implantação, que exige recursos, atualmente escassos, originando amplas discussões no presente. Nesta direção, pode-se ler em tradução livre do eminente jurista J. J. Gomes Canotilho:

"hoje, como ontem, os direitos econômicos, sociais e culturais despejam um problema inquestionável: custam dinheiro, custam muito dinheiro. Por isso, no começo da década de setenta, Peter Häberle formulou a idéia da ‘reserva de caixas financeiras’ para exprimir a idéia de que os direitos econômicos sociais e culturais se encontram submetidos à capacidade financeira do Estado. (...)"[13]

A formulação de Häberle da reserva de caixas financeiras originou a ideia que se tem atualmente da reserva do possível, conceito que tem relações profundas com a ideia da previsão orçamentária. Seu discurso originário é o mesmo das normas programáticas, que dependem de implementação legislativa, previsão nos gastos governamentais e tantas outras justificativas.

Tal formulação teorética, coloca as possibilidades de concessão de direitos sob o crivo da força econômica do Estado, é dizer, sua previsão orçamentária, suas reservas de capital. Mais que isso, a implementação destes direitos em ordens de preferência consubstanciaria o confronto em que se encontra o Estado sobre quem deve ser tutelado.

Esta visão deturpada que se formou, trouxe a lume a crítica feroz de Ana Paula de Barcelos, para quem muitas vezes a reserva do possível – pela falta de um estudo mais acurado – serviu de utensílio mágico, de um poder assustador e desconhecido, infirmando a opulência dos direitos sociais na dita pós-modernidade. E neste cenário, em que o monstro da crise aterrorizava o Brasil, o mundo, o Executivo reservava ao Judiciário a tarefa de Hermes pernicioso, trazendo más notícias com suas decisões ameaçadoras.[14]

Contudo, a bestialidade do cenário feneceu. Floresceram novas concepções que colocavam no equilíbrio entre norma e valor, retirando a contingência do ponto nodal dos debates jurídicos. A promoção do debate – ainda que tardiamente – e a revisão conceitual do conceito lhe deu novo rosto.

Agora, se lhe compreende como paulatinidade, abrindo espaço para a necessária dimensão lógica que se compreende imprescindível para a materialização dos direitos sociais, sem olvidar, com isso, as deficiências financeiras do Estado, relativizando tutelas, efetivando direitos.

Nesta ânfora, se resguarda a ideias de que os direitos sociais em sua realização dependem: (1) de uma realização paulatina; (2) de uma determinada reserva financeira por parte do Estado; (3) da livre conformação legislativa, que cataloga aos direitos, sem observar as medidas necessárias à sua implementação e (4) da complexidade que o controle jurisdicional dos programas políticos traz, devendo ser evitado, a menos que tragam um cunho manifestamente oposto ao Texto Maior. Nas palavras do grande constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, "Reconhecer estes aspectos não significa a aceitação acrítica de alguns ‘dogmas’ contra os direitos sociais". [15]

Ressaltando a lição do mestre Ricardo Lobo Torres, insta compreender que o mínimo existencial tem caráter de direito pré-constitucional, impossibilitando qualquer condicionamento por parte das autoridades administrativas ou legislativas, sendo um direito absoluto. [16]

Impende notar que o mínimo existencial sempre deve ser propiciado pela ação do Estado, não guardando qualquer relação reserva do possível.

Luminosas, sobre isso, as letras de Ana Paula de Barcelos:

"Lembre-se aqui um ponto. O direito à educação fundamental é um elemento do mínimo existencial, compondo o núcleo da dignidade humana e, portanto, sendo oponível aos poderes constituídos. Imaginar que seu atendimento possa ficar na dependência exclusiva da ação, e dos humores, do Executivo – em equipar sua rede de ensino de maneira conveniente – e do Legislativo – em dispor sobre a concessão de bolsas de estudo em instituições privadas – é tornar totalmente sem sentido tudo que sem expôs até aqui, assim como o próprio Estado de direito constitucional. Ao Judiciário compete tutelar o mínimo existencial e isso pelos meios substitutivos que forem necessários e aptos para atingir tal fim. Por isso mesmo apenas se reconhece essa legitimidade ao judiciário quando se trata desse mínimosem o qual a própria dignidade resta violada,e não de toda a extensão dos efeitos ideais das normas que se relacionam coma dignidade."[17]

Contudo, quem define quais direitos sociais formam este núcleo do mínimo existencial? Como compaginar a efetivação destes direitos com outros imprescindíveis cuja implementação resulte problemática? A satisfação completa destes direitos, esgotando o montante de capitais do Estado não reduziria a efetividade de outros? Como decidir esta última questão entre o choque entre direitos relevantes?

A estas questões, sobre a escassez de recursos, responde Salvador Barbera com o abandono de posicionamentos absolutos. Não se trata de um desligamento, mas de uma atividade que sopesa a cada um na medida da realidade, enxergando o direito como a força viva engendrada pelos fatos. Trata-se justamente daquilo que se tem chamado ponderação. [18]

Não é este espaço para tão ampla discussão, senão para concluir referendando ao mínimo existencial como sendo aquele grupo de direitos sociais imprescindíveis á vida digna, não se submetendo de forma alguma às necessidades do Estado, nem muito menos aos movimentos cambiantes dos mercados, cuja realização é - mais que uma necessidade – um imperativo.

Dentre estes direitos, pode-se, ou melhor, deve-se elencar o direito fundamental à participação política, porque não se pode conceber a existêmcia de um sujeito de direito que não seja ao mesmo tempo sujeito político.[19]

Assim, é possível entender que a democracia é, demais disso, carreadora da garantia de um mínimo existencial, uma esfera de direitos imprescindíveis á existência digna do sujeito.

2.4 A DEMOCRACIA COMO ACESSO A UM PATRIMÔNIO MÍNIMO

Dizer que a democracia consubstancia ao direito de todos à uma participação mínima que seja na vida política, todavia, não esgota o sentido completo da expressão.

Necessário compreender que a democracia é mesmo uma orientação ao amplo acesso aos direitos que se constroem de forma participativa. Assim sendo, e na mesma esteira desta compreensão, é possível afirmar que seja ela também a possibilidade de acesso ao mínimo dos direitos politicamente produzido, ao que se chega à noção de patrimônio mínimo, comopreendidos aqui como os bens minimamente necessários á uma existência digna.

A perspectiva de um patrimônio mínimo compreende-se como baluarte da dignidade humana, o espaço das coisas que, embora possam se prestar ao uso, ao empréstimo, jamais poderão ser alienadas, porque fundamentais aos imperativos de uma vida digna da pessoa no seio social.

Este mister, encontra seu fundamento na própria concepção de pessoa que exsurge sobre os escombros do individualismo desenfreado, do liberalismo seco, cuja consideração da igualdade formal de todos perante a lei ignorava as divergências materiais existentes no bojo do influxo social capitalístico.

Avulta, neste universo, a percepção dos sujeitos como existência, na busca de um direito pré-sente.[20] Assim pode ser lido no magistério de Carlos Nandez Sessarego, in verbis:

"La revelación de la dimensión coexistencial de la persona, a la par que permite reconocer la importância del valor solidaridad dentro del derecho, otorga sustento a la posición doctrinaria que postula que el derecho es intersubjetividad (...) gracia a la filosofia de la existência, permite comprender al derecho como intersubjetividad, como relación entre sujetos. (...) Esta visión coexistencial del hombre y, por onde, del derecho, nos proprociona el fundamento necesario para um serio replanteo de los conceptos tradicionales de la dogmática jurídica, elaborados em base a uma concepción individualista del derecho"[21]

Esta valoração da pessoa em sua complexidade, não apenas remetendo à formalidade procedimental-subsuntiva exegética, tem um viés revelador. Não se entende mais a pessoa como baú em que se podem depositar direitos e extrair obrigações, mas como personalidade complexa, da qual não se pode dissociar uma assistência mínima, um patrimônio essencial.

Este patrimônio essencial corresponde àquela parcela de bens, que não necessariamente devem ser imóveis, imprescindíveis ao sustento do indivíduo, dos sujeitos sobre sua guarda, vale dizer, sua família.[22] Consubstancia "o mínimo a assegurar-se", na dicção do erudito Luiz Edson Fachin.

Este mínimo acervo patrimonial jamais significa o menor patrimônio possível. De outro lado, não pode ser colocado em pé de igualdade ao máximo. As expressões não podem configurar completamente a extensão da ideia. Mínimo e máximo, longe de categorias estanques, se manifestam na variância fenomênica e vacilante que se formula dia a dia no mundo da vida. As palavras, os conceitos jamais poderão esgotar esta realidade.[23]

A dicção é novamente da sensibilidade do eminente civilista:

"(...) uma quantidade suscetível de várias grandezas ou de uma grandeza suscetível de vários estados, em que o mínimo não seja o valor menor, ou o menor possível, e o máximo não seja necessariamente o valor maior, ou o maior possível. Próximos ou distintos, os conceitos jurídicos e as categorias não jurídicas podem dialogar."[24]

Este dialogar pode ser encontrado na realidade social, na comparação entre o dito pelo diploma normativo e o elencado pela realidade social. A exemplo do salário mínimo, é possível verificar que a dicção legal referenda realmente ao menor valor, posto que seu quinhão - ao contrário do que apregoa a própria legislação – não atende "às necessidades vitais básicas" do trabalhador.

É preciso, então, exorcizar os fantasmas que cercam a expressão mínimo. Ela não significa, no sentido que busca a doutrina do mínimo existencial a menor parcela de bens, mas a minimamente necessária para uma existência digna. Vale dizer, diverso de menor valor, ela compreende aquilo que medianamente insta o sustento da pessoa humana em suas mais diversas configurações.

"Aqui o mínimo transcende essa percepção quantitativa e não coloca no ponto central a noção de extremo. Ao falar de mínimo ou de máximo não se cogita de extremos abaixo ou acima dos quais o objetivo em questão perde todas as suas características, suas propriedades."[25]

O mínimo existencial não se molda a parâmetros quantitativos. Contudo, não viola a uma axiologia constitucionalista presente na realidade moderna. Ele cadencia a dinâmica jurídica moderna, em que transborda a discricionariedade não transborda, mas se afirma como realidade insofismável. A razão não se perde neste mote, muito menos o espaço da técnica, mas não se negligencia o papel estético-expressivo ou moral prático em detrimento à racionalidade cognitivo instrumental.

De fato, um patrimônio mínimo exige um direito aberto, capaz de respirar ares fora de sua redoma, exige juízes despidos da violência da toga. Um direito fora do púlpito da justiça, uma justiça que não apenas se respeite, mas respeite à dignidade humana, sem eleger-se baluarte da paz social[26]: são as premissas de um patrimônio mínimo. [27]

Resta, porém, o questionamento acerca dos indivíduos que não possuem nenhum bem que se possa salvaguardar sob as marquises da inalienabilidade, o que de fato, pode ocorrer. Mas a inexistência de um acervo de bens inerentes ao sujeito não retira o dever de proteção que se lhe é devida pela sua só condição de pessoa.

Neste âmbito, cumpre refutar o entendimento que reifica a condição humana[28], subvertendo o valor intrínseco, vale dizer, a dignidade[29], em detrimento ao valor de troca. No escarmento de Pietro Barcelona, citado por Luiz Edson Fachin, in verbis:

"(...) como dice Vattimo, el nihilismo es La consumación del valor de uso em el valor de cambio. La reificación general, La reducción de todo a valor de cambio, es precisamente ‘el mundo que se convierte em fábula’; es um debilitamiento de la fuerza apremiante de la realidade. En el mondo del valor de cambio generalizado todo viene dado como relato. Ya no hay necesidad de um centro de referencia. Lãs imágenes se suceden y los mensajes de los médios de comunicación de masas se congvierten em uma declinación vertiginosa de lãs relaciones entre el presente y la misma tradición."[30]

Seguindo este esteio, um patrimônio mínimo, um núcleo de bens, no sentido filosófico da palavra, vale dizer, aquilo que proporciona algum benefício, é criação que busca albergar um espectro essencial de substrato material, capaz de materializar condições para uma vida digna numa sociedade capitalística.

Conclusivamente, pode-se dizer que ainda amparado pela defesa da doação que reduza o doador à situação de miserabilidade, o patrimônio mínimo ainda tem longo caminho a percorrer.

Nítido, contudo, que um patrimônio mínimo, inalienável atinente a todos os sujeitos, perfaz uma noção democrática de patrimônio, porquanto seja titularizado por todos individualmente, demonstrando, assim, a incidência da democracia nesta noção.

2.5 A DEMOCRACIA É UM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL?

Nada do que dissemos até agora é conclusivo. Demonstramos até este ponto apenas a incidência da democracia em dois grandes institutos que encontram guarida constitucional. Isso, porque queríamos demonstrar que, de certa forma, optou o legislador brasileiro não pelo sistema de governo da Democracia, mas, de outra forma, optou por uma República democrático-participativa (o que não é redundante).

Mas não é só. Se analisarmos o texto constitucional pátrio, verificaremos que em diversas oportunidades o Constituinte optou por repartir responsabilidades, solidarizar orbigações e definir direitos e obrigações de “todos”.

Uma breve leitura do texto constitucional permite encontrar a palavra todos em 59 (cinqüenta e nove) trechos, mas o que isso indica? Apenas isso seria capaz de permitir a conclusão de que optou o legislador brasileiro entender a democracia como um dos princípios máximos do ordenamento jurídico brasileiro?

Para responder á indagação, cumpre esclarecer o que é um princípio constitucional.

Ronald Dworkin, a fim de definir o que são princípios distingue-os preliminarmente da política, a saber:

“Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social  da comunidade  [...] Denomino  ‘princípio’ um padrão que deve  ser observado,  não porque vá promover ou asseguar uma situação econômica, política ou social  considerada desejável, mas porque  é uma  exigência de  justiça ou  eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade .

[...]

Assim, o padrão que estabelece que os acidentes automobilísticos devem ser reduzidos é uma política e o  padrão segundo o qual nenhum homem deve beneiciar-se de seus próprios delitos é um princípio. A distinção pode ruir se  interpretarmos um princípio como a expressão de objetivo social (isto é, o objetivo de uma sociedade na qual nenhum homem  beneica-se de seu próprio delito) ou interpretarmos uma política como expressando um princípio (isto é, o princípio de que  o objetivo que a contém é meritório) ou, ainda, se adotarmos a tese utilitarista segundo a qual os princípios de justiça são  declarações disfarçadas de objetivos (assegurar a maior felicidade para o maior número) [...] Os argumentos de princípio  são argumentos destinados a  estabelecer um direito  individual; os argumentos de política  são argumentos destinados a  estabelecer um objetivo coletivo. Os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que  descrevem objetos.”[31]

Neste definição, os princípios são reduzidos a corolários lógicos de si em si mesmos, reduzidos a sub-dimensões axiológicas que se relacionam intimamente á noção de justiça, o que, ao que nos parece, em muito pouco contribui para uma escorreita noção da substância destes cânones.

Robert Alexy compreende os princípios como:

“[...], mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.”[32]

Aqui, os princípios passam a ser compreendidos como parâmetros norteadores de conduta, que podem ser satisfeitos em gradações diversas, a fim de garantir o sopesamento de razões no âmbito das ações dos sujeitos de direito, assim entendidas as pessoas naturais, o Estado e as demais pessoas de direito.

As concepções de Dworkin e Alexy, todavia, encontram sua crítica no âmbito brasileito pelo eminente professor Humberto Ávila, em cujo magistério, após a crítica de Esser, canaris, Alexy e Dworkin pode-se verificar uma tentativa de definição dos princípios, qual seja:

“pode-se definir os princípios como  normas que  estabelecem diretamente fins, para cuja concretização estabelecem com  menor exatidão qual o comportamento devido (menor grau de  determinação da ordem e maior generalidade dos destinatários), e por  isso dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e  de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a  determinação da conduta devida.”[33]

Neste sentido, podemos questionar se a forma como está definida a democracia na Carta Magna Brasileira permite-nos afirmá-la como um principio.

Inicialmente cabe ressaltar que em todo o texto constitucional a idéia que se tem de democracia consubstancia justamente a possibilidade de participação de todos, em diversos dos processos ali apontados, desde do direito ao voto, á garantia do patrimônio, à família, o direito à moradia, á educação bem como os deveres de solidariedade e proteção á infância.

Todos estes direitos e obrigações são estendidas a todos os membros da sociedade e ao Estado, demonstrando o desejo do legislador em promover a distribuição de cargas sociais, a fim de equilibrar a distribuição de bens, de obrigações e o compartilhamento das decisões políticas.

Em verdade, se a democracia já não pode mais ser vista como uma forma de governo, optou o legislador constituinte em transformá-la numa orientação deontológica a permear e qualificar o Estado Brasileiro, dái se diga tratar-se de um Estado Democrático de Direito, porque nele se busca justamente a promoção dos direitos igualitariamente para todos, sem, contudo, almejar a participação de todos em todos os processos decisórios, garantindo, ao contrário a participação de tantos quantos possíveis na vida político-social do Estado.

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Sobre o autor
Paulo Ramon da Silva Solla

Assessor Técnico do Governo do Estado da Bahia, na área de Licitações, Contratos Administrativos, Convênios e Contratos de repasse destinados a execução de obras e serviços de engenharia.<br>Pós Graduando em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pela Universidade Federal da Bahia.<br>Avaliador de diversos periídicos, tais como: Revista Jurídica da UERJ, Revista Jurídica da UNISINOS, Revista Jurídica da PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOLLA, Paulo Ramon Silva. O princípio democrático como efetivador dos direitos sociais no processo legislativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3407, 29 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22905. Acesso em: 2 nov. 2024.

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