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Análise de caso à luz das teorias positivistas e criticistas do Direito.

O caso do furto de melancias em Tocantins

O juiz deu ao caso uma solução mais arrazoada (a única resposta correta para Dworkin e a melhor resposta para Alexy) do que seria a simples subsunção da regra (roubar é crime), considerando as peculiaridades do caso concreto: o furto famélico, a situação econômica dos acusados, a injustiça que seria deixá-los presos.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar, levando em consideração a dualidade entre as teorias críticas e as teorias positivistas do Direito, um fato ocorrido na cidade de Palmas – TO no ano de 2003, que trata da soltura de dois irmãos após serem presos acusados de furtarem duas melancias. A análise do referido caso dar-se-á sob a luz de alguns conceitos e teorias advindas do positivismo jurídico através das leituras de Dworkin e Alexy e da corrente crítica do Direito, sob a perspectiva de Lyra Filho, Warat e do Direito Alternativo.

Palavras-chave: Direito, positivismo jurídico, teoria crítica do direito.


Introdução

A teoria crítica do Direito surge a partir da percepção da incapacidade do Direito positivo e legalista de responder a todas as contingências e complexidades que permeiam a sociedade moderna. O Direito monista não é mais capaz de absorver a diversidade e o avanço dos conflitos existentes nas relações pessoas-pessoas e pessoas-mundo. É com essa consciência de incompletude do Direito dito positivista que surgem as teorias críticas, trazendo consigo novos modelos de enxergar o Direito, novas alternativas na tentativa de levar o Direito para todas as classes e resolução dos mais diversos conflitos, novas perspectivas do fazer justiça levando em consideração não apenas um texto normativo frio, mas sim o calor do convívio social e os anseios dos diversos grupos sociais. É sob a perspectiva das teorias críticas do Direito em coexistência com as teorias positivistas que este trabalho tem como objetivo analisar um fato acontecido na cidade de Palmas – TO que trata da soltura de dois irmãos após o roubo de duas melancias, cuja descrição veremos detalhadamente adiante.


Do caso

O Fato escolhido para análise no presente artigo ocorreu na cidade de Palmas (TO) no ano de 2003. Hagamenon Rodrigues Rocha juntamente com Saul Rodrigues Rocha foram presos acusados de furtarem duas melancias. O caso chegou às mãos do juiz da 3ª vara criminal de Palmas, Rafael Gonçalves de Paula, que tomou uma decisão bastante inusitada, fugindo das amarras normativas as quais permeiam o ordenamento jurídico brasileiro. Na decisão proferida pelo magistrado, nos chama à atenção o teor dos argumentos utilizados.

Para melhor compreender o posicionamento do referido juiz diante do fato, faz-se necessária a transcrição dos argumentos usados na prolação da sentença, estes encontrados nos autos do processo nº 124/03 – 3ª vara criminal da comarca de Palmas/TO. Segue a decisão:

“Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados e dos políticos do mensalão deste governo, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional)... Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém.  Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário apesar da promessa deste presidente que muito fala, nada sabe e pouco faz. Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia... Poderia dizer que os americanos jogam bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade. Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo”.


Dworkin e o “Romance em cadeia”

Dworkin desenvolveu a Teoria do Direito e Integridade aplicada a um sistema jurídico diverso do nosso – o common law, razão pela qual há quem diga que a Teoria de Dworkin não se aplica ao caso brasileiro. Contudo, a Teoria dele pode ser sim aplicada ao Direito Brasileiro, especialmente em casos que envolvam Princípios, como é o caso da decisão aqui analisada.

É importante, antes de tudo, uma discussão acerca da distinção entre norma - regra e norma - princípio. Para Dworkin, para que se efetive a Justiça mesmo que uma norma seja regra, ela deverá ser interpretada como se princípio fosse. Em sua obra, “Levando o Direito a sério”, ele adverte que se o Direito for interpretado como normas gerais e abstratas e sem levar em consideração o caso concreto e uma interpretação principiológica, mais longe estaríamos da efetivação da justiça:

“(...) Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão, é uma parte importante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.” ((DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 42).

E conclui:

“Um princípio como Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos não pretende (nem mesmo) estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas (ainda assim) necessita de uma decisão particular. Se um homem recebeu ou está na iminência de receber alguma coisa como resultado direto de um ato ilícito que tenha praticado para obte-la, então essa é uma razão que o direito levará em consideração ao decidir se ele deve mantê-la. Pode haver outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra direção – por exemplo, uma política que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que limite a punição ao que foi estimulado pelo Poder Legislativo. Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem força menor, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como (se fosse) uma razão que inclina numa ou noutra direção”. (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 42).

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Assim, pode-se dizer que a interpretação não deve ser afastada diante do caso concreto, ela deve ser feita como Princípio, de modo a manter coerência, coesão e unidade com o “romance em cadeia”. Isso não significa dizer que o juiz deve decidir sempre igual, ao contrário, ele deve decidir considerando as peculiaridades do caso concreto. O trabalho do juiz é de interpretação e, por isso, é criação e descoberta.

A responsabilidade do juiz de encontrar a única resposta correta é hercúlea e, como disse Dworkin (2003, p. 285), a sábia opinião de que nenhuma interpretação poderia ser melhor deve ser conquistada e defendida como qualquer outro argumento interpretativo.

Pois bem, a decisão do juiz Rafael de Paula vista à luz da Teoria de Dworkin, foi a melhor resposta correta, mesmo que ela fosse destoante das decisões tomadas em casos semelhantes àquele momento. Acontece que a decisão deve ser “a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade” (Dworkin, 2003, p. 272).

Um ponto em comum nas teorias jurídicas de Dworkin e Alexy é que a decisão buscará manter a segurança jurídica. Assim, deve-se levar em consideração que a decisão do juiz Rafael passará a compor um banco de dados dentro do sistema do Direito e que a mesma basear-se-á em decisões anteriores, de forma a manter coesão com elas, dando continuidade ao “romance em cadeia” de Dworkin, escrito de tal forma que deverá parecer ser de um autor só. Segurança jurídica aqui está sendo utilizada como sinônimo de previsibilidade. Previsibilidade não significa decidir sempre igual, até mesmo porque o direito é dinâmico e está em constante evolução, assim como a sociedade. Previsibilidade significa decidir em sintonia com o sistema do Direito e é nesse conceito que a decisão do juiz Rafael se encaixa. Numa sociedade em que 95% da população vivem com o mínimo necessário, conforme dado da decisão e considerando tratar-se de um furto famélico seria incoerente com o sistema e com a produção do “romance em cadeia” decidir de maneira diversa. Nesse sentido:

Uma interpretação tem por finalidade mostrar o que é interpretado em sua melhor luz possível, e uma interpretação de qualquer parte de nosso direito deve, portanto, levar em consideração não somente a substância das decisões tomadas por autoridade anteriores, mas também o modo como essas decisões foram tomadas: por quais autoridades e em que circunstâncias (DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003. p. 306)


Direito principiológico – Alexy

Um dos autores positivistas que merecem destaque na análise do caso escolhido é Alexy. Alexy adotando uma postura mais principiológica do Direito, defende que este é permeado não apenas por regras, mas também por princípios. A diferença básica entre um e outro é que as regras são mais especificas e concretas, já os princípios por sua vez são abstratos e gerais. Sob a perspectiva de Alexy, podemos perceber que os princípios complementam o que não está estabelecido no Direito positivado, eles ampliam a possibilidade do jurista de perceber na abstração que as respostas do Direito nem sempre é um silogismo prático, contrastando com o que estabelece Kelsen, ou seja, se “A” é, então “B” deve ser.

A contribuição de Alexy para a prática do Direito é inegável. Na maioria das decisões judiciais o que se percebe é a forte existência de carga valorativa e principiológica na tomada das decisões. Na própria Constituição brasileira, em seu Art. 5º é evidente o peso dos princípios como mecanismo de garantia do bom convívio e regulação social. Esta concepção de princípios é facilmente percebida na decisão do Juiz em questão, quando o mesmo abdica da normatividade técnica para embasar sua decisão em concepções abstratas e gerais do que seja justiça. Para ele, a questão per si não se enquadrava em nenhuma norma tecnicista positivada, mas sim no campo da observação sociológica, histórica e principiológica, levando em consideração para sua tomada de decisão, a concepção valorativa de que os direitos e garantias fundamentais dos acusados, assegurados constitucionalmente, prevalecem sobre o texto normativo ordinário “não roubar”.


Lyra Filho e sua crítica ao dogmatismo jurídico

Fazendo parte da corrente criticista do Direito e demonstrando sintonia com as teorias marxistas, Lyra Filho adota uma postura de contraposição ao chamado dogmatismo jurídico. Para ele o Direito não pode ser engessado nem petrificado em si mesmo, pois sua existência está condicionada aos diversos conflitos no meio social. É observando esses conflitos que o Direito produz o seu objeto. Lyra Filho em seu manifesto “Para um Direito sem dogmas” defende a libertação do Direito das amarras do dogmatismo jurídico, para ele o dogmatismo não consegue mais se manter imbatível por que a evolução da sociedade exige que o Direito seja flexível e dialético, observando os conflitos de classe e as complexidades sociais advindas da forma como a sociedade moderna se organiza.

No caso ora analisado a atuação do Juiz Rafael Gonçalves conota o que Lyra Filho defende como a quebra do dogmatismo jurídico, o que analogicamente se aproxima da quebra do romance em cadeia de Dworkin, pois, ao decidir, ele é bem claro ao dizer que não usará normas técnicas para avaliar o caso e sim um contexto sociológico que se apresenta mais completo na observação do mesmo. Ao decidir, o juiz adota uma postura do que Lyra chama de positivismo de esquerda, ou seja, é quando o jurista deve explorar as contradições do direito positivo estatal em proveito das classes menos favorecidas e oprimidas. Na fala do juiz isso é perceptível quando ele faz referência à contraposição entre o roubo cometido por um auxiliar de serviços gerais e um lavrador em contraste com o roubo dos ladrões de colarinho branco. Nesse aspecto, o Marxismo Lyriano aflora no parecer do magistrado.

Outro aspecto observado no caso é o engajamento jurídico através do qual o juiz se mostra bastante atuante. Na concepção de Lyra, jurista engajado é aquele que não se prende ao texto normativo, mas sim ao contexto em que ocorrem as contendas, onde a vontade de transformação social é bastante presente e a atitude critica frente ao Direito posto e positivado é critério corolário de atuação. Na decisão, fica evidente a insatisfação do Juiz para com a desigualdade social e econômica em que se encontra a sociedade brasileira. No seu discurso, observa que o roubo de duas melancias não enriquece e não empobrecem ninguém, que 95% da população brasileira sobrevive com o mínimo necessário enquanto o EUA gastam milhões de dólares na destruição do Iraque, isso para ele são contextos muito mais carentes de análise e preocupação do que o roubo de duas melancias, o que nos leva a acreditar que a permanência dos acusados na cadeia é algo “pequeno” frente aos grandes problemas sociais existentes no país e no mundo.


Castrador castrado – Warat e a libertação do Direito

Warat é mais um dos teóricos críticos do Direito que merecem relevância nesta análise. Warat em sua metodologia literária de observar o Direito, assim como Lyra Filho, defende que o Direito não pode se deixar petrificar em si mesmo. O Direito para ser mais completo precisa estar em conexão com outras formas de observação do mundo, precisa usar da Literatura e da poesia simbólica para enxergar o que existe por trás do não dito. O Direito, para ele, precisa se libertar da castração da qual ele mesmo faz parte.

São posicionamentos de fácil percepção nas leituras de Warat: a crítica da razão como paradigma da modernidade, a defesa da perspectiva do sonho e da criatividade para a modernidade e para o Direito, a percepção da existência de dois tipos de Direito - o Direito liberal e carnavalizado e o Direito engessado e dogmático - e a crítica ferrenha ao que se chama de pós-modernidade, que segundo ele, é a cultura do vazio, do espetáculo desmedido, da informação banal. Nesse contexto, Warat insere um conceito novo, o da castração. O sujeito castrado é aquele que não desafia o instituído, é aquele sujeito que se nega a conhecer-se a si mesmo. Um jurista castrado é aquele que não consegue se libertar do dogmatismo jurídico. Nesse ponto há grande aproximação entre Warat e Lyra Filho na defesa da libertação do Direito, o primeiro defende a libertação do Direito em direção ao simbólico, poético e não-castração e o segundo defende a libertação do Direito em direção à dialética social e questionadora.

Olhando para a decisão do caso aqui analisado, é de fácil identificação a não-castração do juiz. Sua decisão se mostra um tanto carnavalizada na medida em que esboça certa revolta com o contexto macro de mundo, onde ele mesmo ao proferir a sentença faz referencia a inúmeros problemas da sociedade brasileira e do mundo como um todo. É um juiz que não se deixou castrar pelo formalismo jurídico ainda predominante no ordenamento jurídico brasileiro. É um juiz que se permitiu (se libertou) sair um pouco da moldura normativa kelseniana para decidir conforme sua convicção do que é justiça. É um juiz que em meio a tantos argumentos possíveis, resolveu inovar ao não utilizar expressamente nenhum deles. É isso que Warat defende ao dizer que o Direito positivo não pode ter todas as respostas prontas e acabadas e que sem muita dificuldade, é possível sim encontrar a resposta ao caso concreto por meio da poesia e da literatura, permitindo assim ao jurista que mergulhe na liberdade interpretativa para chegar à decisão mais justa e acertada.


Direito Alternativo e a vez dos desfavorecidos

A denominação “Direito Alternativo” foi inicialmente marcada por um caráter pejorativo e se referia a maneira “alternativa” de ver o Direito por parte de magistrados do Rio Grande do Sul, que se reuniam para discutir o direito e sua aplicação na sociedade. Na verdade, tratava-se de discussões filosóficas e militantes, de um tom teórico-prático, um movimento cujo objetivo comum era produzir uma nova forma de ver e praticar o Direito, muito embora o movimento não tenha uma ideologia única.

 Inúmeros falsos estereótipos pairam sobre o Direito Alternativo, um deles é dizer que os juízes alternativos decidem contra a lei. Os juízes alternativos, na verdade, decidem com uma outra lei, mormente a Constituição. São decisões valorativas, na maioria das vezes em prol dos menos favorecidos.

É importante ressaltar que, muito embora seja um movimento que se iniciou com os juízes gaúchos, o Direito Alternativo está, hodiernamente, por toda parte, tanto geograficamente quanto profissionalmente. Não são mais apenas juízes, são também estudantes, promotores, defensores, advogados e demais operadores do Direito e ganhou o país decisões de tom alternativo.

"LUTA. Teu dever é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça".  Pode ser sintetizada nesse pensamento a forma de decidir de alguns juízes alternativos, baseados no conceito jusnaturalista de justiça. Contudo, tal postura possui sérias dificuldades sob o ponto de vista teórico, como afirmou Lédio Rosa.

Se o juiz Rafael de Paula é ou não um juiz alternativo, isso não sabemos, o que sabemos é que sua decisão é o que se pode chamar de alternativa. Tanto pelo momento em que foi feita, pela argumentação utilizada, quanto pela forma de redigir.

Uma das críticas que os juristas alternativos fazem aos juristas tradicionais é que estes costumam interpretar a norma em prol dos mais favorecidos economicamente. Para Lédio Rosa,

(...) enquanto a cultura jurídica tradicional age para eternizar as instituições, a teoria crítica do Direito visa a transformar a sociedade, para edificar uma nova ordem, calcada em uma eqüitativa divisão de poder entre os cidadãos. Deseja um novo Direito, direcionado aos interesses da grande massa populacional, hoje banida das benesses da legislação, mas submetida às suas obrigações."  (ANDRADE, Lédio Rosa de.  Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. São Paulo: Editora Acadêmica, 1992, p. 33.)

O juiz Rafael aponta com um dos fundamentos que poderiam levá-lo a decidir: “(...) a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados e dos políticos do mensalão deste governo, que sonegam milhões dos cofres públicos (...)”. Uma fundamentação ousada, de crítica à corrupção que permeia este país, e de defesa dos menos favorecidos.  E representa bem o viés marxista do movimento, refletindo a postura dos juristas alternativos em favor das classes trabalhadoras e subalternas – o lavrador e o auxiliar de serviços gerais.

Um dos pontos em comum na fase inicial das discussões do Direito Alternativo era, segundo Lédio Rosa:

(...) o combate irrestrito à miséria da grande parte da população brasileira e luta por democracia, entendida como a concretização das liberdades individuais, dos direitos sociais, bem como materialização de igualdade de oportunidades e condição digna de vida a todos (ANDRADE, Lédio Rosa. O queé Direito Alternativo?. Em: < http://www.lediorosa.com.br/direito/textos/o-que-e-direito-alternativo/>. Acesso em 13 de Nov 2012)

Tal argumento também está presente na decisão do juiz Rafael de Paula ao falar do furto famélico, da situação econômica da população pobre no Brasil, dos milhões gastos em guerras, em contraposição aos milhões de pessoas que passam fome.

Uma das críticas do Direito Alternativo é ao formalismo jurídico. Na decisão ora analisada, o julgador diz decidir em total desprezo às normas técnicas, diante da obviedade da questão. É a mesma crítica que o movimento do Direito Alternativo faz aos julgadores apegados a formalismos extremos em detrimento do conteúdo das normas. Como podemos perceber, o juiz, mesmo não apontando nenhum dos fundamentos citados como razão de decidir, enumera vários motivos que poderiam levar ele ou qualquer outro julgador a decidir daquela forma.

A interpretação do caso com base na Constituição e o compromisso com o social, presentes no Direito Alternativo e também presentes na decisão analisada. O julgador cita como possíveis fundamentos o Princípio da Bagatela ou insignificância, os Princípios do Direito Alternativo, que poderia ser, por exemplo, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.


Considerações finais

No presente artigo pudemos observar desde teorias positivistas que representaram, mesmo dentro do seu tradicionalismo, um rompimento ao tratar a norma, mais como princípio do que como regra - Dworkin e Alexy, até as teorias críticas que, de forma cabal, criticaram o dogmatismo jurídico, o engessamento das normas e do direito, e que veem o aspecto valorativo do Direito – Warat, Lyra Filho e o Direito Alternativo.

É atual a discussão sobre a distinção entre as categorias normativas de regras e de princípios. Dworkin e Alexy desenvolveram critérios de distinção entre um e outro. Enquanto as regras tem caráter concreto e dizem exatamente o que fazer, os princípios tem caráter abstrato, representam uma otimização do sistema jurídico e, ao contrário das regras, são compatíveis com vários graus de concretização, condicionando-se aos fatos.

A decisão analisada à luz das Teorias de Dworkin e Alexy, ao longo do artigo, nos faz perceber um pouco da dimensão gigantesca que é a interpretação e resolução de casos através dos Princípios. Utilizando-se não unicamente, mas também de Princípios como o da Insignificância ou Bagatela, dos Princípios do Direito Alternativo, o juiz Rafael deu ao caso uma solução mais arrazoada (a única resposta correta para Dworkin e a melhor resposta para Alexy) do que seria a simples subsunção da norma - regra (roubar é crime), considerando as peculiaridades do caso concreto: o furto famélico, a situação econômica dos acusados, a injustiça que seria deixá-los presos.

Outro tocante da decisão foi o rompimento com as amarras do dogmatismo jurídico e do formalismo, o juiz decidiu em total desprezo às normas técnicas, considerando muito mais o conteúdo das normas, do que sua forma. Decidiu também em favor dos menos favorecidos. É o que apregoa Warat, o juiz não deve ser castrado e Lyra Filho, com a crítica ao Dogmatismo Jurídico. É uma decisão com viés alternativo, como mencionado no próprio bojo da decisão. Assim, a decisão ora estudada e analisada no presente artigo representou um marco no sistema jurídico.


Referências

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002.

DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.

ANDRADE, Lédio Rosa de.  Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. São Paulo: Editora Acadêmica, 1992.

ANDRADE, Lédio Rosa. O que é Direito Alternativo?. Disponível em: < http://www.lediorosa.com.br/direito/textos/o-que-e-direito-alternativo/>. Acesso em 13 de Nov 2012

FILHO, Roberto Lyra. Para um Direito sem dogmas. Porto Alegre: Editora Fabris, 1980.

WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

ALEXY, Robert. Direito Fundamentais , Ponderação e Racionalidade. In Revista de Direito Privado nº 24, out/dez. RT: São Paulo, 2005. p 335-344.


Abstract: This study aims to analyze, taking into account the duality between critical theories of criminal and positivist laws, a fact that occurred in the city of Palmas - TO in year 2003, which deals with the release of two brothers accused after arrest to stealing two watermelons. The analysis of this case will take in light of some concepts and theories arising out of legal positivism through readings of Dworkin and Alexy, and the critical current law, from the perspective of Lyra Filho, Warat and alternative law.

Key-words: Right, legal positivism, Critical theory of law.

Sobre os autores
Renato Mota Vieira

Acadêmico de Direito - Universidade Federal do Piaui - UFPI

Julia Marial Leal dos Santos

Acadêmica de Direito - Universidade Federal do Piaui - UFPI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Renato Mota; SANTOS, Julia Marial Leal. Análise de caso à luz das teorias positivistas e criticistas do Direito.: O caso do furto de melancias em Tocantins. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3483, 13 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23308. Acesso em: 22 dez. 2024.

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