3. Aspectos polêmicos da Lei n.º 12.234/2010
Tratar-se-á agora de enfrentar e discutir os aspectos mais controvertidos da lei em estudo.
3.1 Retroatividade da norma
Antes de verificar a possibilidade de a Lei n.º 12.234/20010 ser aplicada a fatos ocorridos anteriormente à sua vigência, cabe identificar a sua natureza. Norma penal é aquela que cria, amplia, diminui ou extingue o direito de punir do Estado. Doutra banda, a norma processual tem por conteúdo a disciplina sobre o modo de realização dos atos que compõem a cadeia procedimental, sem afetar diretamente o direito de punir do Estado. [7] Tal diferenciação mostra-se pertinente para fins de aplicação da lei no tempo.
A norma penal somente poderá ser aplicada em relação a fatos ocorridos antes de entrar em vigor se for favorável ao réu. Norma de conteúdo material que de qualquer modo prejudique o acusado é irretroativa, aplicando-se apenas a situações surgidas após a sua vigência. (CF, art. 5.º, XL).
No que diz respeito às normas processuais, aplica-se a norma em vigor no dia em que o ato processual seja praticado. A lei nova é aplicada imediatamente, ainda que mais gravosa ao réu (v.g redução de prazos, extinção de modalidades de recursos); preservando-se, todavia, todos os atos praticados sob a égide da lei revogada (tempus regit actum).
A Lei n.º 12.234/2010 aumentou de 02 (dois) para 03 (três) anos o prazo prescricional dos crimes cuja pena máxima é inferior a 01(um) ano. Nesse aspecto, tornou mais gravosa a situação do agente, ao elastecer o prazo da prescrição. Por outro lado, ao abolir a prescrição retroativa entre a data do fato delituoso e o recebimento da denúncia/queixa, a norma em estudo também prejudicou a situação do réu, por ampliar temporalmente o exercício do direito de punir
Após essas considerações preparatórias, conclui-se, pois, que a Lei n.º 12.234/2010 possui natureza penal, posto que trata da prescrição, reduzindo a sua ocorrência. Assim, por restringir o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva, o novo diploma legislativo somente pode ser aplicado aqueles crimes cometidos após 06.05.2010 (publicação da lei no DOU).
3.2 Redução dos casos de prescrição retroativa: sua compatibilidade com a Constituição Federal e a eficácia das investigações criminais
Discute-se, agora, a harmonização da norma que aboliu a possibilidade de a pena fixada na sentença condenatória servir de critério para o estabelecimento de prazo prescricional que tenha por marcos fatos anteriores ao recebimento da denúncia.
a) Segurança Jurídica
Um dos fundamentos para a existência do instituto da prescrição é a necessidade de por termo aos conflitos postos à apreciação pelo Poder Judiciário em determinado espaço de tempo. Não pode o indivíduo aguardar eternamente a aplicação de uma eventual punição pelo Estado em razão da imputação da prática de um crime. A Constituição Federal prevê no art. 5.º, caput, a segurança como direito de qualquer cidadão, incluindo-se, nesse conceito, a estabilidade das relações jurídicas. Nessa perspectiva, a prescrição retroativa insere-se como mecanismo de controle do poder punitivo estatal, no que tange aos limites temporais, em observância aos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena, já que utiliza a pena concretamente definida para cálculo do prazo prescricional.
A extinção da prescrição retroativa – considerada entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia – encontra óbice no princípio da segurança jurídica, uma vez que permite que um cidadão se submeta a um prazo demasiadamente longo para ver resolvida sua situação processual.
b) Duração razoável do processo
O direito a um processo sem dilações indevidas ganhou status constitucional com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 45 (Reforma do Judiciário), que ampliou o leque de direitos fundamentais previstos no art. 5.º, com a inserção do inciso LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Não há como negar que o processo – por si só – já representa uma série de gravames à pessoa do acusado. A submissão do imputado a uma série de cerimônia degradantes, as despesas com advogados, o registro de seu nome em certidões judiciais e suas implicações ao exercícios dos atos da vida civil (v.g nomeação em cargos públicos), repercutm de forma deletéria na vida do acusado, de sorte que tais prejuízos são potencializados na medida em que a investigação criminal e o processo se prolongam no tempo. À luz dessa problemática, discorreu Samuel Miranda Arruda que “A exacerbada morosidade de tais processos pode trazer prejuízos inapagáveis à imagem dos acusados e por vezes dá fundamento ao prolongamento da imposição de medidas que lhes restringem direitos básicos como a liberdade e a livre disposição do patrimônio”.[8]
Havendo a necessidade de que o inquérito policial (procedimento administrativo) e o processo criminal tramitem sem dilações indevidas, o instituto da prescrição retroativa configura-se em um meio que garante a celeridade dessa tramitação, na medida em que impõe uma sanção ao descumprimento de um prazo (proporcional à pena aplicada na sentença). A Lei n.º 12.234/2010, ao afastar a possibilidade de acolhimento da prescrição retroativa entre a data do fato delituoso e a data em que o juiz admite a acusação, extermina um dos poucos meios de controle da celeridade de tramitação dos processos, o que faz com que a novel lei esbarre no art. 5.º, LXXVIII da Carta Magna. Cabe ao legislador encontrar outros veículos para dar maior efetividade ao direito fundamental à razoável duração do processo e não abolir um dos poucos existentes.
c) Princípio da eficiência
Na tentativa de modernizar a Administração Pública, a Emenda Constitucional n.º 19 (Reforma Administrativa) inseriu no art. 37 da Constituição Federal o princípio da eficiência, segundo o qual a atuação do agente público em busca do atingimento de suas finalidades deve trazer resultados práticos com o menor desperdício de tempo e recursos públicos. Na visão de Odete Medauar, “o princípio da eficiência determina que a Administração deve agir, de modo rápido e preciso, para produzir resultados que satisfaçam as necessidades da população. Eficiência contrapõe-se a lentidão, a descaso, a negligência”.[9]
A Polícia Judiciária, instituição encarregada de cuidar do inquérito policial, não está excluída do dever constitucional de apresentar resultados concretos de seu papel, no menor espaço de tempo possível e com minimização dos custos. De igual modo o Ministério Público encontra-se imbuído de cumprir esse desiderato. Quando a lei estabelecia um prazo – proporcional à pena imposta na sentença – para que as investigações criminais sejam concluídas e para que o Ministério Público ofereça a denúncia, estipulava um mecanismo de controle da eficiência da atuação da Polícia Judiciária e do Parquet. Assim, a Lei n.º 12.234/2010, ao disciplinar que entre a data do fato e o recebimento da denúncia não há mais prescrição retroativa, está autorizando que a Polícia e o órgão ministerial atuem de forma mais demorada e, por consequencia, mais custosa, em pleno atrito com o princípio da eficiência, que não tolera a lentidão e o descaso.
d) (Des)Vantagens para a Investigação Criminal
Resta a fornecer solução ao problema inicialmente formulado: o fim da prescrição com base na pena in concreto para regular o prazo prescricional entre a data do fato e a decisão de recebimento da denúncia trará vantagens à investigação criminal? A resposta é seguramente negativa.
Não se desconhece as inúmeras dificuldades que a Polícia Judiciária tem para investigar e que o Ministério Público – em menor grau - tem para formular a acusação penal. Falta de aparelhamento adequado, ausência de agentes, policiais e escrivães suficientes, inexistência ou completa ausência de treinamento, pouco intercâmbio com órgãos policiais de outros países e unidades federadas. As dificuldades são muitas, todavia, a solução reside no enfrentamento direto do problema. Elastecer demasiadamente o prazo para as investigações e para o oferecimento da denúncia implicará em uma demora ainda maior na conclusão do inquérito policial e na apresentação da acusação em juízo, atingindo a esfera jurídica do principal interessado com o destino da persecução penal: o acusado. Ele é que manterá seu nomes por anos a fio nas certidões policiais como indiciado, sujeitando-se de forma prolongada aos atos investigatórios, tais como busca e apreensão, quebra do sigilo telefônico, quebra do sigilo bancário e prisão temporária. Por que então a mudança legislativa? É mais fácil e rápido elaborar uma lei ordinária que estruturar a Polícia. O simbolismo penal mostra sua força com a nova lei.
4. Conclusão
A atuação dos agentes estatais no desempenho da missão de investigar, processar e punir o autor de uma infração penal recebe várias limitações, inclusive quanto ao prazo para a realização dessa tarefa.
Com a edição da Lei n.º 12.234/2010, não houve o fim da prescrição retroativa, vez que esta poderá ser reconhecida levando-se em consideração o tempo transcorrido do recebimento da denúncia à publicação da sentença ou acórdão condenatórios.
As medidas de segurança configuram uma espécie de sanção penal, sujeitando-se aos prazos prescricionais, de acordo com a pena in abstracto cominada ao crime ou com base na pena fixada na sentença, caso sejam impostas em caráter substitutivo.
A Lei n.º 12.234/2010 é de natureza penal, agravando a situação do agente ao ampliar a possibilidade d exercício do poder punitivo estatal, sendo aplicada apenas em relação a fatos ocorridos a partir de sua vigência.
O princípio constitucional da segurança jurídica não se compatibiliza com a extinção da prescrição retroativa – considerando-se o período transcorrido da data do fato à data de recebimento da denúncia – por autorizar que o réu permaneça tempo excessivo sem ter resolvida sua situação processual.
O instituto da prescrição retroativa constitui-se em mecanismo de controle temporal da atuação do Estado no campo punitivo, de sorte que a redução de sua aplicação empreendida pela Lei n.º 12.234/2010 conflita com o direito fundamental à razoável duração do processo.
Por força de disposição constitucional expressa, cumpre à Polícia Judiciária e ao Ministério Público atuar de forma célere na persecução penal, viabilizando que a autoridade judiciária instaure formalmente o processo dentro de um prazo proporcional à gravidade da infração praticada pelo agente.
Afastando a possibilidade de reconhecimento da prescrição retroativa pelo escoamento do prazo situado entre o fato delituoso e a data em que o juiz admite a acusação, a Lei n.º 12.234/2010 colide frontalmente com o princípio da eficiência.
Não se alcançará maior eficácia nas investigações criminais com o aumento do prazo para a realização do inquérito policial ou para o oferecimento da denúncia, mas sim com a melhoria da estrutura física e de pessoal da Polícia Judiciária.
5. Referências Bibliográficas
ARRUDA, Samuel Miranda. O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo Brasília: Brasília Jurídica, 2006.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Código Penal Anotado. São Paulo: Perfil, 2005.
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. (org.) Código Penal e sua Interpretação: doutrina e jurisprudência. 8.ª edição. São Paulo: RT, 2007.
JESUS, Damásio Evangelista de. Prescrição Penal. 14.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6.ª edição. São Paulo: RT,2002.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 8.ª edição. São Paulo: RT, 2008. v.1.
Notas
[1]Prescrição Penal. 14.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 4.
[2]Código Penal Anotado. São Paulo: Perfil, 2005, p. 416.
[3] In FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. (org.) Código Penal e sua Interpretação: doutrina e jurisprudência. 8.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 560.
[4] JESUS, Damásio. Op. Cit., p. 121.
[5]Curso de Direito Penal Brasileiro. 8.ª edição. São Paulo: RT, 2008, p. 663.
[6] Op. Cit., p. 418.
[7]Curso de Processo Penal. 17.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p.89-90.
[8]O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006, p. 371.
[9]Direito Administrativo Moderno. 6.ª edição. São Paulo: RT,2002, p. 157.