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A nova Lei Seca e o crime de perigo abstrato

Agenda 20/02/2013 às 14:46

A lei presume que ao se embriagar e tomar a direção do veículo o motorista põe em perigo, ainda que em abstrato, a vida e a incolumidade física de outrem, e tanto basta para a sua inculpação.

Segundo as estatísticas, o trânsito mata, no Brasil, cerca de 46.000 pessoas por ano. Não há cálculo confiável do número de mutilados. São cerca de 126 cadáveres por dia, quase seis por hora. A maioria dessas mortes é fruto da imprudência dos motoristas; do excesso de velocidade; da má conservação das estradas e dos veículos; das ultrapassagens perigosas e da direção comprometida pelo uso de álcool e de outras substâncias psicoativas que alteram o controle motor, o raciocínio e os reflexos de quem está ao volante.

Dentre as modificações trazidas pela recente Lei nº 12.760, de 20 de dezembro de 2012 — conhecida como a “nova lei seca”—, que alterou a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, a mais importante talvez seja a possibilidade de se presumir que o motorista que dirige embriagado por álcool ou qualquer outra substância psicoativa que cause dependência tem a sua capacidade psicomotora comprometida e pratica, portanto, “crime de perigo abstrato”.

Crimes de perigo abstrato são todas aquelas condutas que não exigem lesão concreta a um bem jurídico tutelado nem expõem esse bem a risco real e imediato. Para a configuração desse crime basta que o comportamento do agente seja suficiente para provocar, em tese, o resultado danoso que a ordem jurídica proíbe. É o caso, por exemplo, do porte de arma municiada. O STF já decidiu que o porte de arma desmuniciada, ou apenas da munição, não configura crime de perigo abstrato, mas o porte da arma municiada, sim, ainda que o agente não tenha intenção de ferir ou matar quem quer que seja. Há perigo real de que o faça num momento de estresse, falso perigo ou tensão, num acesso de cólera ou de descontrole emocional. Para a tipificação do crime de perigo abstrato basta o comportamento do agente, e não um ato concreto de que tenha tido intenção de ferir ou matar. Nos casos de porte irregular de arma municiada e de embriaguez ao volante há grau elevado de “potencialidade delitiva”. O crime é de perigo por mera conduta.

Segundo antiga lição muito em moda entre os penalistas, crime é todo fato típico, antijurídico e culpável. Típico, porque exige a exata coincidência entre o fato e o contorno teórico previamente definido na lei; antijurídico, porque a conduta deve afrontar eficazmente um bem jurídico individualmente considerado ou a ordem jurídica como um todo; e culpável, porque o próprio art.1º do Código Penal diz que não há crime sem lei anterior que o preveja nem pena sem prévia cominação legal.

Em regra, o direito penal pune os crimes de perigo concreto, isto é, aquelas condutas delituosas que atingem direta e imediatamente o bem jurídico tutelado. O art.306 da Lei nº 12.760/2012 diz que é crime “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Trata-se, como se disse, da positivação do crime de perigo abstrato. Não é necessário provar que o motorista embriagado se embebedou com o propósito de atropelar ou matar, ou de que, se embebedando, não tinha intenção de fazê-lo. A lei presume que ao se embriagar e tomar a direção do veículo o motorista põe em perigo, ainda que em abstrato, a vida e a incolumidade física de outrem, e tanto basta para a sua inculpação.

O art.306 da Lei nº 9.503/97 qualificava como crime de perigo o ato de “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”. Exigia-se que a direção perigosa ocorresse “na via pública” e que a conduta do motorista expusesse a incolumidade das pessoas a “dano potencial”. Interpretado o tipo penal ao pé da letra, não haveria crime se a direção não se desse em via pública ou não pusesse pessoas em risco. Ou seja: punia-se apenas o crime de perigo concreto. A Lei nº 11.705/2008 qualificou como crime a condução de “veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Além de manter uma das situações de fato previstas na Lei nº 9.503/97 — a de que a direção do veículo automotor se desse em via pública —, a Lei nº 11.705/2008 estabeleceu níveis de alcoolemia no sangue, ou influência de outro tipo de substância psicoativa para que a embriaguez ao volante estivesse configurada. Abaixo desses níveis —seis decigramas por litro de sangue— ou se a substância não fosse psicoativa e causadora de dependência não haveria crime de trânsito. Agora, a Lei nº 12.760/2012 diz (art.306) que é crime “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Diferentemente da Lei nº 9.503/97, a nova lei não exige qualquer grau de concentração de álcool ou outra substância psicoativa no sangue do motorista. A tolerância é zero. Basta que se ateste que no momento do acidente a capacidade psicomotora do motorista estava alterada por ingestão de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que cause dependência. “Substâncias psicoativas” são todas as que agem no cérebro alterando seu funcionamento, humor ou comportamento. Não são apenas as drogas ilícitas, mas também os fármacos de uso regular e controlado. Assim, podem ser incluídas nesse grupo de substâncias os medicamentos de uso comum ou outras substâncias de uso normal na vida civil; os psicotrópicos; os hipnóticos; os indutores de sono; os antidepressivos; os ansiolíticos; os moderadores de apetite; os anestésicos e qualquer tipo de droga que cause dependência; e as drogas ilegais.

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A nova lei também retirou do art.306 da Lei nº 9.503/97 a expressão “na via pública”. Com isso, é crime de perigo abstrato a direção sob efeito de álcool ou outras drogas em qualquer via, pública ou não.

Outra mudança saudável de paradigmas trazida pela “nova lei seca” está nos meios de provas da embriaguez ao volante. Até a edição da Lei nº 12.760, apenas o teste do bafômetro e o exame de sangue eram provas conclusivas de que o motorista estava dirigindo embriagado. Mas, como o Brasil é signatário do Pacto de San José da Costa Rica (Decreto nº 678/69), vige no ordenamento o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (Pacto, art.8º, §2º, "g"). Assim, nos delitos de trânsito por embriaguez bastava ao motorista recusar-se a se submeter ao exame de sangue ou ao bafômetro para escapar ileso de qualquer penalidade. Agora, não. A nova lei diz, expressamente, que constituem elementos de prova da embriaguez ao volante vídeos, relatos, declaração policial, testemunhas e outras provas moralmente legítimas. O bafômetro e o exame de sangue continuam sendo as provas mais seguras, mas as provas indiciárias têm o mesmo peso caso o motorista se recuse a fazer o teste ou o exame de sangue. De fato. O §1º do art.306 diz que a direção perigosa por embriaguez poderá ser comprovada se houver 1 concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar ou 2 sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. O §2º diz que a verificação da embriaguez poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova. Cabe ao CONTRAN decidir se há equivalência entre distintos testes de alcoolemia para caracterização desse crime. O art.2º da Resolução Contran nº 206, de 20 de outubro de 2006, diz que “No caso de recusa do condutor à realização dos testes, dos exames e da perícia, previstos no artigo 1º, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção, pelo agente da autoridade de trânsito, de outras provas em direito admitidas acerca dos notórios sinais resultantes do consumo de álcool ou de qualquer substância entorpecente apresentados pelo condutor”.

Já se disse que “o bolso é o órgão mais sensível do corpo humano”. Fiando-se nisso, as multas também foram elevadas de R$ 957,70 para R$ 1.915,40 caso o motorista seja flagrado dirigindo bêbado ou se recuse a se submeter ao etilômetro (teste do bafômetro). Esse valor será dobrado (R$3.830,76) se o motorista bêbado reincidir na direção alcoolizada em um ano contado da autuação. Além disso, terá o direito de dirigir cassado por um ano.

A pena para esses delitos de trânsito continua sendo de detenção, de seis meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo. A direção alcoolizada constitui infração gravíssima que custa 7 pontos na carteira de habilitação do motorista e multa de R$1.915,40, além de proibição de dirigir por um ano, recolhimento da habilitação e retenção compulsória do veículo.

A Lei nº 12.760/2012 não é, obviamente, retroativa. Os que causaram ferimentos ou mortes no trânsito na constância da lei antiga não podem ser apenados com base na lei nova. A lei penal somente retroage para beneficiar.

Sobre o autor
José Geraldo da Fonseca

Advogado - Veirano Advogados. Desembargador Federal do Trabalho aposentado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, José Geraldo. A nova Lei Seca e o crime de perigo abstrato. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3521, 20 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23762. Acesso em: 22 dez. 2024.

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