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Estádio Nacional de Brasília: um breve ensaio sobre o outro lado da Copa do Mundo no Distrito (Federal) da inversão das prioridades constitucionais

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Agenda 17/05/2013 às 14:00

 Da inversão das prioridades constitucionais

E apesar de todos esses indicadores sociais escandalosamente desfavoráveis que contribuem para fazer do Brasil um país em eterno desenvolvimento -- fora do eixo dos países ditos desenvolvidos e de bem estar social já alcançado --, quando imaginamos que o surreal encontra limites, acabamos por nos surpreender a cada dia com a notável capacidade dos gestores do dinheiro público na inversão do que deveria constituir prioridade nesse país de imensos abismos e contrastes sociais e culturais.

De fato, em meio às inaceitáveis contradições que resultam do cotejo analítico entre as altas receitas financeiras do DF -- proporcionalmente as maiores do país dentre as unidades federadas -- e a péssima qualidade ou ineficiência de seus serviços públicos essenciais, por outro, acaba de chegar ao fim a construção do imponente Estádio Nacional de Brasília, cujo valor final das obras[17] se aproximará, estratosfericamente, da casa de 1 bilhão e 500 milhões de reais[18] -- o Estádio mais caro do mundo de todos os tempos[19] --, custeado exclusivamente com recursos públicos provenientes de convênio celebrado entre Novacap e Terracap, por meio do qual a última se comprometeu a alienar terras públicas pertencentes ao DF para emprego de seu produto na conclusão do moderno “Coliseu Romano“ da Capital Federal -- uma refêrência às belas e grandiosas colunas externas de sustentação da obra faraônica, no melhor estilo da arena dos gladiadores históricos.

Segundo dados recentemente divulgados pelo Jornal Estado de S. Paulo, relatório técnico de auditoria do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) nas contas das obras realizadas no Estádio de Brasília já aponta, preliminarmente, um desvio de dinheiro público da ordem de pelo menos R$ 212,3 milhões. O TCDF já cobra a devolução de R$ 99,9 millhões do consórcio formado por Andrade Gutierrez e Via Engenharia e exigiu do GDF a explicação de R$ 112,4 milhões aparentemente desviados.[20] A auditoria em questão também assinala que o preço do assento do Estádio de Brasília, orçado em R$ 16.938, por exemplo, é mais de duas vezes superior ao mais barato, que é o do Estádio Castelão de Fortaleza, de R$ 7.740. Na comparação com o palco da abertura da Copa de 2014, a Arena Corinthians/Itaquerão, que tem o segundo maior custo de colocação de assentos, o preço dos assentos é R$ 12.615, 40% menor que o do Estádio de Brasília.

Extrai-se, ainda, de mencionado relatório técnico, que superfaturamento, cobrança de serviços em duplicidade, erros de quantitativos, mudança de itens do projeto original e barbeiragens gerenciais contribuíram para o Estádio Nacional se tornar o mais caro de todos os tempos.

Enquanto isso, na Capital do Rio Grande do Sul, Estado de grande tradição e prestígio futebolístico, foi recentemente inaugurada a belíssima Arena Grêmio, com capacidade para 60 mil torcedores, obra construída pela iniciativa privada, com parte de seu valor financiada pelo BNDES. O custo final da nova arena, igualmente erguida em padrão internacional, girou em torno de R$ 500 milhões de reais, segundo informações oficiais extraídas do site do clube portoalegrense[21].

Apenas para que nossa avaliação não se limite ao custo de construção dos estádios de Brasília e de Porto Alegre, esclareça-se, para fins comparativos, que o custo final da Arena Castelão, em Fortaleza, para 64 mil lugares, foi de 518 milhões de reais; a Arena Pernambuco, em Recife, com capacidade para 46 mil espectadores, tem custo estimado de 530 milhões de reais; o novo “Mineirão“, em Belo Horizonte, custou 666 milhões de reais, para um público máximo de 62 mil pessoas; o Estádio Itaquerão/SP, custará em torno de 800 milhões de reais; a nova arena Fonte Nova, em Salvador, custou 591 milhões de reais; todos com custos significativamente inferiores aos de Brasília, com a agravante de que nas outras capitais mencionadas existem grandes times de tradição no cenário do futebol nacional, com clássicos vibrantes e público lotando os estádios, diferentemente do que se dá na capital da política.

Diante de tamanhas disparidades de valores, indicativas da flagrante falta de zelo, bom senso, economicidade, eficiência e qualidade dos gastos públicos para a construção, na Capital Federal, do estádio mais caro do futebol mundial de todos os tempos -- com custos superiores aos das mais modernas arenas alemãs -- e erguido com a finalidade precípua (para não dizer única) de abrigar apenas alguns jogos da Copa do Mundo de 2014, impõe-se-nos, como cidadãos e contribuintes preocupados com os destinos dos recursos públicos, suscitar alguns questionamentos para aspectos não veiculados nas propagandas televisivas de bebidas que buscam apenas celebrar, mediante lavagem cerebral dos telespectadores alienados, a realização de tão grandioso evento no Brasil. Afinal, como defenderiam importantes filósofos, muitas vezes mais importantes que respostas são as boas perguntas, capazes de nos conduzir às melhores e mais aprofundadas reflexões. Indaguemos, pois !

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Em primeiro lugar, como se explica, objetivamente, o fato de o Estádio Nacional de Brasília ter custado próximo de 1 bilhão e 500 milhões de reais pagos integralmente com recursos públicos ? Por que o Estádio de Brasília, seguindo o modelo de economicidade, planejamento e eficiência portoalegrense, não foi construído pela iniciativa privada ? Por que o Estádio de Brasília não custou “apenas“ R$ 500 milhões, a exemplo da belíssima Arena Grêmio ?

De outro vértice, quais as razões de interesse social que levaram o GDF a não optar por investir R$ 1 bilhão em setores manifestamente prioritários para o bem estar de sua população, como segurança pública preventiva, saúde, transporte coletivo e educação de qualidade (temas que mais afligem a população do DF), sobrando-lhe, ainda, em torno de R$ 500 milhões para a construção de um estádio de padrão internacional com capacidade para abrigar 60 mil pessoas em perfeitas condições durante a Copa do Mundo ? Há base constitucional para tamanha discricionaridade administrativa ?

Sob os influxos do princípio da democracia participativa, amplamente albergado pelo Texto Constitucional de 88 (art. 14, incs. I e II; art. 49, inc. XV, e art. 61, §2º – CR/88), como se justificar o fato de a população do DF não ter sido ouvida através de prévia consulta popular, audiências públicas ou até mesmo sob a forma de referendo sobre a melhor destinação desses vultosos recursos empregados na construção do Estádio ?

Ainda em termos jurídico-constitucionais: afora o controle social exercido a cada 4 anos através do voto popular, não há qualquer outro mecanismo legal ou constitucional de controle jurisdicional das escolhas manifestamente incoerentes do administrador e do legislador[22] ? Será que não há outras prioridades a serem atendidas pelo DF diante da clara ineficiência e má qualidade dos serviços públicos essenciais que disponibiliza aos seus cidadãos, mesmo sendo ele detentor de privilégios financeiros não ostentados pelos demais Estados da federação brasileira ? Por que o Poder Judiciário brasileiro ainda tem sido tão refratário à admissibilidade desse tipo de controle jurisdicional incidente sobre a própria constitucionalidade do denominado “mérito administrativo“ ?

Já avançando para os possíveis aspectos relacionados à eventual configuração de ato improbidade administrativa, o custo final de quase 1 bilhão e 500 milhões de reais do Estádio de Brasília representa, ou não, intolerável desperdício de dinheiro público dolosamente atentatório aos princípios da moralidade e economicidade administrativas ?

Em termos de ganhos palpáveis para a sociedade, qual será o legado do Estádio Nacional de Brasília para uma capital que não possui nenhum time de futebol de expressividade no cenário nacional ? Qual será o legado da Copa de 2014 para a saúde, a educação e a segurança da população do DF ? O Estádio Nacional de Brasília será apenas "mais uma obra de arte no museu a céu aberto que é Brasília“, como já o definiram alguns políticos defensores dos altos gastos utilizados para sua construção ?

Na França, não há muito tempo, milhares e milhares de "cidadãos" inconformados com a decisão do Governo francês de retirar um simples comprimido de aspirina das cestas básicas fornecidas gratuitamente à população carente resolveram tomar as ruas em sinal de protesto. Os manifestantes, ordeira, mas vigorosamente, exigiam a retratação governamental, num admirável exemplo de mobilização, cidadania e capacidade de reação popular. Também pudera: ali está o berço da revolução iluminista que, em 1789, logrou derrubar a monarquia despótica e impor limites ao arbítrio estatal, através da consagração de diversas liberdades públicas, sob a forma de direitos individuais oponíveis contra o Estado. Os cidadãos franceses, historicamente, possuem plena consciência cívica de seu direito -- e mais que isso, de seu dever -- de interferir nas decisões políticas governamentais capazes de afetar negativamente o seu dia-a-dia. Não se contentam em simplesmente entregar um mandato popular a um governante eleito para julgá-lo apenas ao final de sua gestão, através do voto. Cobram-no diuturnamente pelos mais variados e legítimos meios. No caso exemplificado, tratava-se de uma simples aspirina a menos na cesta básica mensal. Não é preciso muito esforço intelectual para se imaginar o que ocorreria por lá se a situação envolvesse tamanho desperdício de dinheiro público em obra absolutamente desnecessária para o verdadeiro bem estar do povo.

E o que temos feito nós, subservientes cidadãos brasileiros, diante dos desvios cotidianos dos recursos públicos que poderiam e deveriam ser aplicados para a melhoria de nossa saúde pública e assistência social ? Como temos reagido à falaciosa segurança pública que não nos protege ? E o que dizer de nossa educação pública obsoleta e de péssima qualidade e do enlameado transporte público coletivo que não nos serve com a sonhada eficiência ? Pacatos cidadãos brasilienses: até quando nos contentaremos com pão e circo no majestoso “Coliseu Romano“ erguido em pleno séc. XXI na Capital do Brasil ? Aliás, tem havido pão para todos ?


Notas

[1]     Sobre o Poder Judiciário e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios importa rememorar que os mesmos não são órgãos do DF, mas sim órgãos integrantes da estrutura da União, de cunho federal. Portanto, o DF é dotado apenas de Poder Executivo e Poder Legislativo, nos termos do disposto no art. 53 de sua respectiva Lei Orgânica. O Poder Judiciário do DF e o Ministério Público do DF (que existem e estão alocados no DF) são integrantes da estrutura da União e não do DF. Nesse sentido, conferir: FERNANDES, Bernardo Gonçalves; in Curso de Direito Constitucional, Salvador, 5ª. Edição, 2013, p. 716.

[2]     Referidas receitas não incluem, por óbvio, os valores arrecadados pelo GDF por força de sua competência tributária específica, igualmente privilegiada, por força do acúmulo constitucional de tributos municipais e estaduais, abrangendo a arrecadação dos créditos decorrentes de IPVA e IPTU, dentre outros. Segundo a Lei Orçamentária Anual de 2013 do Distrito Federal, aprovada em 28 de dezembro de 2012, a receita total para o exercício financeiro de 2013 foi estimada em R$ 21.303.798.105,00 (vinte e um bilhões, trezentos e três milhões, setecentos e noventa e oito mil e cento e cinco reais), aí já incluídas as receitas decorrentes dos tributos distritais.

[3]     Terminologia utilizada por José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional positivo, São Paulo, 19ª. Edição, Malheiros Editores, p. 633.

[4]     Os municípios que apresentam as maiores rendas per capita do país aparecem mal colocados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A situação paradoxal é explicada porque a renda per capita é resultado matemático simples da receita do município dividida pela população, sem levar em conta a distribuição dessa renda nem estatísticas sociais, como saúde ou educação.

[5]     No exato momento em que redigia o presente texto, na noite de 22/04/2013, este subscritor se deparou com a seguinte notícia durante a exibição da 2a. Edição do Jornal DF/TV, da Rede Globo: “Paciente morre no banheiro do Hospital Público do Gama/DF após esperar por 12 horas de atendimento na emergência. A irmã da vítima, revoltada, quebrou o vidro do hospital arremessando uma lixeira, sendo presa em flagrante delito por dano ao patrimônio público ! Ouvida, a Secretaria de Saúde informou que o atendimento na unidade estava absolutamente normalizado, com 2 médicos por turno atendendo a população.“ Ao fundo da imagem, centenas de pessoas aguardavam atendimento nas filas de espera. Aqui, mais do que nunca, vale a pertinente advertência da moderna Criminologia crítica, para quem o Estado fraco e ineficiente nas bases sociais e na implementação das políticas públicas essenciais para o mínimo existencial do ser humano só pode se converter em Estado forte, opressor e eficiente na aplicação do Direito Penal punitivo. Assim o Estado brasileiro tem feito políticas públicas ao longo das últimas décadas: com direito penal seletivo, injusto e estigmatizante. A propósito dessas características de seletividade, injustiça e estigmatização do direito penal brasileiro e latino-americano, conferir, dentre outros: BATISTA, NILO. Introdução Crítica ao direito penal brasileiro, Rio de Janeiro, Revan, 1990; bem como o excelente texto “A palavra dos mortos – Conferências de Criminologia Cautelar”, de autoria de Eugenio Raúl Zaffaroni, São Paulo, Ed. Saraiva, 2012 (Coleção Saberes Críticos).

[6]     ANIYAR DE CASTRO; Lola. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005 (Pensamento Criminológico; v. 10). Pág. 158.

[7]     Idem, págs. 160-161.

[8]     Idem, págs. 161 e 164.

[9]     Disponível em < http://www.ssp.df.gov.br/sala-de-imprensa/noticias/item/2222-segurança-pública-reduz-sequestro-relâmpago-em-52.html>       

[10]    Informações igualmente extraídas do sítio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do DF.

[11]    Informação extraída do sítio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do Estado de SP – Disponível em <http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/plantrim/2013-01.htm.>

[12]    Lei Orçamentária 2012 do DF: Programa – Implementação de Projetos Junto à Comunidade – PM – Ação: Manutenção do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD/DF – R$ 300.000,00; Programa – Enfrentamento ao Crack – Ação: Manutenção do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD/DF – R$ 300.000,00; Programa e Ação Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PSE-PAEFI – Em Situação de Violência Sexual/DF – R$ 152.000,00; Programa e Ação Desenvolvimento de Ações Relacionadas ao Pacto de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher: R$ 650.000,00; Centro Piloto de Prevenção ao Uso de Drogas : Implantação de Centro Piloto de Apoio e Prevenção ao Uso de Drogas, no Varjão-DF. Pessoa Atendida (1) R$ 5 mil; Ações de Prevenção e Combate a Homofobia – DF: R$ 300 mil       

[13]   Lei Orçamentária 2013 do DF: Ações de Prevenção e Combate a Homofobia/DF: R$ 100 mil; Capacitação de Servidores Públicos na temática de gênero, raça e violência contra as mulheres/DF: R$ 200 mil; Desenvolvimento de Ações relacionadas ao pacto de enfrentamento à violência contra a mulher - Secretaria da Mulher/DF: R$ 2 milhões.

[14]   Ibidem, p. 239.

[15]    Ibidem, p. 248.

[16]    A propósito da violência como um produto de consumo que invadiu os meios de comunicação social e do medo difuso como matéria-prima rentável em diversos países, alimentando a indústria da segurança privada e os próprios Movimento de Lei e Ordem (Direito Penal Máximo), conferir, dentre outros, o texto “La Violencia Y Los Mass Media- Entre El Saber Criminológico Y Las Teorias de La Comunicación”, de autoria de Francesc Barata (Revista IBCCrim, n. 29, p. 155-167).

[17]    Considerando o custo total das obras do Estádio e das denominadas estruturas temporárias (ou provisórias) que serão construídas ao redor do Estádio por exigência da FIFA.

[18]    A previsão inicial de custo do Estádio era de R$ 696 milhões de reais, segundo dados fornecidos pelo TCDF.

[19]    Disponível em < http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/estadio-de-brasilia-para-a-copa-de-2014-estoura-todos-os-orcamentos-e-se-torna-o-mais-caro-do-mundo/>

[20]    Fonte: Jornal Estado de S. Paulo, edição de 27/01/2013.

[21]    Disponível em <http://www.arena.gremio.net>

[22]    Vide, em defesa desse ponto de vista, a tese defendida por Robert Alexy, in Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 422.

Sobre o autor
Luciano Coelho Ávila

Professor de Direito Constitucional da Fundação Escola Superior do MPDFT. Especialista em Direito Processual Civil pela FESMPDFT/UFSC. Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Promotor de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ÁVILA, Luciano Coelho. Estádio Nacional de Brasília: um breve ensaio sobre o outro lado da Copa do Mundo no Distrito (Federal) da inversão das prioridades constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3607, 17 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24461. Acesso em: 17 mai. 2024.

Mais informações

O presente artigo científico constitui-se de trabalho de conclusão e aproveitamento da disciplina “Política Criminal”, integrante do curso de Mestrado em Direito, área de concentração “Políticas Públicas”, do UniCEUB/Brasília, cuja professora foi a Dra. Cristina Zackseski.

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