4 A inconstitucionlidade da prisão preventiva em decorrência do clamor público
A vedação de decretação de prisão preventiva com base no clamor público é uma decorrência lógica do princípio da legalidade, segundo o qual o indivíduo só pode ser punido, se o fato por ele praticado for considerado infração penal e a conduta praticada pelo acusado seja apta a justificar a decretação de prisão definitiva ou provisória, o que não é o caso do clamor público. Assim, mesmo que o fato seja anti-social ou danoso, não haverá possibilidade de se punir quem tenha praticado a conduta mal vista pela sociedade, caso a lei não tenha previsto essa conduta como infração penal e capaz de justificar a decretação de prisão do acusado antecipadamente.
A presunção de inocência impede que a prisão preventiva seja imposta ao acusado, sob a alegação de que a suposta prática do crime provocou o clamor popular. Essa modalidade de prisão, em sendo uma espécie de medida cautelar, somente deverá ser decretada quando tal medida mostrar-se necessária para a garantia da ordem pública, da ordem econômica ou da instrução criminal conforme elucidado, e não simplesmente, para agradar a população que esteja clamando por Justiça.
Tourinho Filho ao pronunciar-se sobre prisão preventiva lembra que:
“Se o réu estiver perturbando a instrução criminal, justifica-se a prisão, senão, não. Esse o real sentido do princípio. Daí se conclui, a nosso ver, que a exigência de o réu não poder apelar em liberdade (sem que haja necessidade do seu segregamento) ou de o réu não fazer jus à liberdade provisória, considerando, apenas, a gravidade do crime, tudo constitui violência e desrespeito ao princípio constitucional da presunção de inocência, por implicar antecipação da pena. Antecipação de pena também existe quando se decreta a prisão preventiva como garantia da ordem pública e da ordem econômica, mesmo porque nessas duas hipóteses a privação da liberdade do acusado não acarreta nenhum benefício para o processo. Ademais, se toda prisão cautelar reclama, ao lado do fumus boni iuris (fumaça do bom direito), o periculum libertatis (perigo de estar em liberdade havendo um processo em andamento), onde a necessidade dessa prisão para assegurar a realização do processo? Onde a necessidade dessa prisão para assegurar a realização do processo? Como justificar a medida extrema? Onde a cautelaridade?” (TOURINHO FILHO, 2001, p 25).
Assim, qualquer parâmetro de valoração do clamor público, como a referência à função de pronta reação exemplar do crime para amenizar o alarma social ou para acalentar a opinião pública, colidem com a presunção de inocência enquanto partem de elementos emotivos e irracionais por obra de grupos de pressão, para impor à consciência do juiz uma medida própria de Justiça sumária. Além do mais, sabemos que o sensacionalismo provocado pela mídia, em relação a algumas causas, faz com que determinados casos concretos sejam praticamente pré-julgados pela imprensa ou mesmo pela população, em cidades pequenas.
Nesse sentido, aduz o mesmo autor:
“E como sabe o Juiz que a ordem pública está perturbada, a não ser pelo noticiário? Os jornais, sempre que ocorre um crime, o noticiam. E não é pelo fato de a notícia ser mais ou menos extensa que pode caracterizar a perturbação da ordem pública, sob pena de essa circunstância ficar a critério da mídia. Na maior parte das vezes, é o próprio Juiz ou órgão do Ministério Público que, com verdadeiros sismógrafos, mensuram e valoram a conduta criminosa proclamando a necessidade de garantir a ordem pública, sem nenhum, absolutamente nenhum, elemento de fato, tudo ao sabor de preconceitos e da maior ou menor sensibilidade desses operadores da justiça. E a prisão preventiva, nesses casos, não passará de uma execução sumária. Decisão dessa natureza é eminentemente bastarda, malferindo a Constituição da República” (TOURINHO FILHO, 2010, p. 673).
Vivemos em tempos de violência, onde a sociedade se sente cada vez mais atemorizada. Assim, como solução apta a tranquilizar a sociedade que foi abalada com a ocorrência de algum delito, utiliza-se a prisão preventiva. Embora respeitáveis sejam os sentimentos sociais de repressão ao delito, a prisão cautelar não deverá ser idealizada como uma pena antecipada que possa cumprir fins de punição. Porém, as decisões que decretam tal medida sob o fundamento do clamor popular, atribuem à prisão preventiva o caráter de punição exemplar para a sociedade.
Imaginar a prisão preventiva atribuindo-lhe finalidade repressiva e punitiva volta-se contra o mecanismo de que se originou o Processo penal. O Processo Penal não serve para tutelar a vontade da maioria, mas para aplicar a Lei e proteger o direito do cidadão ainda que isolado e esteja sendo acusado de ter praticado uma infração penal que tenha provocado revolta popular. O cidadão (sujeito de direito) não deve ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência.
Diante desse quadro, conforme elucida Antonio Magalhães Gomes Filho:
“[...] o alarma social ou clamor público é um conceito muito vago para autorizar a custódia preventiva, em especial, porque se trata de um estereotipo saturado na maioria das vezes de carga emocional sem base empírica que exigirá uma prévia investigação estatística sociológica que meça o efeito social real que o fato haja produzido” (GOMES FILHO, 2001, p 52).
Tal alarma se medirá pela maior ou menor atenção que o fato haja produzido na imprensa, ou a insegurança, o desassossego ou o medo que gera nos cidadãos a execução de certos crimes.
Neste prisma, percebe-se que a utilização da prisão preventiva, de modo a servir como forma de antecipação da pena mostra-se inconstitucional, tendo em vista permitir que a autoridade policial pudesse requerer prisões preventivas com base em critérios, de certo modo subjetivos, uma vez que o conceito de gravidade do crime, de clamor público e de perversidade do agente, pode variar conforme o caso em concreto, conforme a formação e personalidade da autoridade policial, dando grande margem de discricionariedade ao agente público quanto à interpretação de norma que está a alcançar o direito de liberdade do cidadão, o que por óbvio, não pode coexistir com o Estado Democrático de Direito[11], que assegura, por meio da Constituição Federal o princípio da presunção de inocência, o principio da legalidade, o principio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III da Constituição Federal)[12] e o princípio do devido processo legal.
Necessário destacar, que entendimento dominante na jurisprudência dos Tribunais Superiores não permite a decretação de prisão preventiva somente com base no clamor público, por compreender que essa atitude viola os princípios constitucionais da legalidade e da presunção de inocência previstos na Constituição Federal de 1988, visto que a liberdade do indivíduo só pode ser cerceada pela decretação da prisão preventiva quando presentes os seus requisitos legais, não sendo o clamor público, motivo previsto em Lei.
O Ministro Celso de Mello, neste diapasão, manifestou-se recentemente ao julgar o habeas corpus n° 96483, perante a segunda turma do Superior Tribunal de Justiça:
“HABEAS CORPUS - DECISÃO DE PRONÚNCIA - PRISÃO DECRETADA COM FUNDAMENTO NO CLAMOR PÚBLICO E NA SUPOSTA TENTATIVA DE EVASÃO - CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL - UTILIZAÇÃO, PELO MAGISTRADO, NA MANUTENÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR, DE CRITÉRIOS INCOMPATÍVEIS COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - SITUAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO CONFIGURADA - AFASTAMENTO, EM CARÁTER EXCEPCIONAL, NO CASO CONCRETO, DA INCIDÊNCIA DA SÚMULA 691/STF - HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO. A PRISÃO CAUTELAR CONSTITUI MEDIDA DE NATUREZA EXCEPCIONAL [...] A questão da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. O CLAMOR PÚBLICO NÃO BASTA PARA JUSTIFICAR A DECRETAÇÃO OU A MANUTENÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação ou a manutenção da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. O clamor público - precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual - não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do réu. Precedentes” (BRASIL, 2009, p. 1).
5 Considerações finais
Após desenvolvermos o presente ensaio, concluímos que toda prisão decretada com base no clamor público, mostra-se inconstitucional em face dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, além de infringir o sistema garantista de Luigi Ferrajoli, em virtude de todos os argumentos já expostos.
Resta claro que a decretação da prisão preventiva com base no clamor público não encontra amparo legal, por calar-se a Lei Processual Penal a respeito, como se nota da simples leitura do seu artigo 312. Ou seja, não foi incluída nesse dispositivo nenhuma referência ao clamor popular que assim, não pode servir de fundamento para a decretação de qualquer prisão preventiva, por maior que seja a pressão da imprensa ou da sociedade.
Temos de nos lembrar, conforme José Luiz Quadros de Magalhães (MAGALHÃES, 2006), que estamos fadados à autopoiésis, quer dizer, somos auto-referenciais e auto-reprodutivos, manifestando-se essa condição nos sistemas sociais e jurídicos.
O que isso quer dizer?
José Luiz Quadros de Magalhães faz uma reflexão sobre a autopoiésis, relatando uma experiência de dois biólogos chilenos chamados Humberto Maturana e Francisco Varela, os quais, estudando o aparelho ótico de seres vivos, viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo que passou a enxergar o mundo da mesma forma, indo sua língua na direção oposta, inclusive, quando era lançada para capturar uma presa.
Dessa reflexão, concluiu José Luiz Quadros de Magalhães:
“que o papel do observador na construção do resultado ocupa lugar essencial, sendo que entre nós e o mundo, existe nós mesmos, visto que entre nós e o que está fora de nós existem lentes, que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pela possibilidade de tradução de cada uma delas. Para que interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo temos um aparelho ótico limitado que é capaz de perceber uma série de coisas, mas não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens, pois algumas lentes se colocam entre nós e o mundo, podendo apresentar-nos instrumentos decodificadores, que ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros” (MAGALHÂES, 2006, p. 143-144) .
Isso por vezes é um perigo, pois quando “procuramos entender uma Constituição, um sistema legal ou somente um instituto de outro país, enfrentamos o problema que envolve as diferentes compreensões e percepções do mundo” (MAGALHÃES, 2006, p. 145).
Nosso Código de Processo Penal como dissemos no início deste ensaio, foi inspirado no Código de Processo Penal Italiano de 1930, gerado pelo regime fascista.
Em outras palavras, importamos a prisão preventiva de um país mais desenvolvido, que têm outra cultura, outra forma de ver o mundo, e inclusive outros institutos, que lá funcionam, mas aqui podem não funcionar.
O requisito ordem pública previsto no artigo 312 do Código de Processo Penal, ensejador da prisão preventiva, já é, obviamente, deveras abstrato, não podendo o clamor popular inserir-se em seu conceito, e nem, por si só, fundamentar esta modalidade de prisão cautelar.
As lentes as quais José Luzi Quadros de Magalhães se referiu, que estão entre nós e o mundo, bem como aqueles instrumentos descodificadores da realidade, podem nos apresentar uma realidade diversa da de fato, ou seja, podem encobrir o real.
Não podemos nos enganar e admitir a privação de liberdade de locomoção do indivíduo em detrimento de diversas garantias constitucionais e ao despeito da lei, pois pressões da mídia e da sociedade de um modo geral são desprovidas de fundamentação jurídica para este fim.
O processo penal, no que concerne um Estado Democrático de Direito é visto como uma garantia fundamental, apta à tutela dos Direitos Fundamentais. Neste quadrante, a aplicação de pena só é admitida como resultado de um procedimento cristalino, movido por ampla defesa, de contraditório, de igualdade entre as partes e paridade de armas, produção de provas e argumentação jurídica.
A pressão exercida pela sociedade contra o Estado, em virtude da ausência de segurança pública, educação, saúde e demais problemas sociais, tendo em vista a demora na resolução dos feitos e aumento da criminalidade, não pode ensejar uma transferência para o sujeito de direito da responsabilidade que envolve a falência do sistema estatal, incompetente para resolução das demandas a ele levadas, por variadas deficiências.
Pensamos que o problema pátrio é social e não Penal.
Nesse contexto, o caminho é o fomento de política econômica, de programas sociais e de educação efetivos que possam promover uma reforma intelectual no indivíduo, e não aplicação de sanção desprovida de garantias processuais e penais.
Enfim, para nós, o crime é resultado de um feixe de elementos em que o processo penal ocupa papel bastante secundário, se perfazendo, todavia, como única via legitimadora de aplicação de pena ao sujeito de direito, sendo injustificável eventual antecipação de pena, quanto mais decorrente de pressões sociais.
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