Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A ocupação das propriedades rurais improdutivas:

análise das ações de ocupação dos trabalhadores rurais sem terra e a questão agrária no Brasil

Exibindo página 3 de 5
Agenda 18/09/2013 às 14:14

4.FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DAS OCUPAÇÕES DE PROPRIEDADES RURAIS IMPRODUTIVAS

Após a análise detalhada da evolução da questão agrária no Brasil e das concepções jurídico-filosóficos que norteiam o trabalho, serão definidos, neste capítulo, os fundamentos de legitimidade das ocupações de propriedade rurais improdutivas perpetradas pelo MST.  O primeiro momento se limitará ao estudo da função social da propriedade rural, evolução histórica e conceito, demonstrando os pontos mais divergentes que tocam a matéria. Posteriormente, serão analisadas as ações do MST e como elas contribuem para o resgate da cidadania daqueles que sofrem com a negação de direitos fundamentais. No último momento, a matéria será tratada sob a ótica do judiciário, culminando com o estudado de duas decisões proferidas nas mais altas Cortes deste país.

4.1A função social da propriedade rural

O modo como o direito de propriedade é tratado em matéria constitucional demonstra como está constituído todo o arcabouço que sustenta o Estado. Uadi Lammêgo Bulos defende que se trata de “um direito nodular à fisiologia do Estado e, conseqüentemente, de toda a base jurídica da sociedade[116]”. Seu conceito atual é fruto de um logo processo evolutivo, onde os preceitos individualistas foram deixados de lado, dando lugar a um imperativo de ordem econômica e social que a insere em uma posição de subordinação ao bem comum. Nessa nova conjuntura, surge o que é entendido como função social da propriedade.

Desse modo, para que este trabalho alcance o fim que almeja, é indispensável, mais uma vez, valer-se de uma análise histórico-jurídica da matéria, reservando uma atenção especial à propriedade rural.

As primeiras proposições sobre a função social da propriedade nascem na Grécia Antiga. Como um dos maiores pensadores desse tempo, Aristóteles defendia que a comunidade total dos bens geraria inúmeras dificuldades, tendo em vista que as desigualdades naturais existentes entre os homens criariam vantagens indevidas para alguns em detrimento dos outros. No entanto, o filósofo grego admite que os bens possam ter aspectos comunitários, ainda que pertençam a particulares, conforme passagem de sua obra[117]:

A propriedade privada deve ser comum em um certo sentido, mas, como regra geral, privada. Se a administração dos bens for feita por seus proprietários, não haverá reclamações de uns contra os outros, e prosperarão mais, porque cada um considerará tal tarefa como de interesse pessoal; e a virtude dos cidadãos ajustará sua aplicação, conforme diz o provérbio, “todas essas coisas devem ser, o mais possível, comuns entre amigos”. Mesmo hoje já são encontrados traços de um tal sistema, o que indica que não é impraticável, especialmente nas Cidades bem organizadas, em que já existem em parte, e a outra parte pode vir a funcionar. Pois, embora cada homem possua seus próprios bens, ele põe algumas coisas à disposição dos amigos, e também faz uso de alguns bens destes, como se fossem bens comuns.

Em Roma, a organização social e política que sustentava a sociedade tratou de moldar a noção de propriedade para aquele povo. O pater famílias detinha o poder sobre o núcleo familiar, além de tomar todas as decisões que diziam respeito ao patrimônio da gens. Nesse cenário, a propriedade, para o Direito Romano, possuía como característica o individualismo exclusivista e era exercida por meio do jus utendi, fruendi et abutendi.

Uma questão que é suscetível de engendrar discussões diz respeito à possibilidade de entender o direito de propriedade romano como absoluto. Em que pese a presença de elementos contrários ao bem comum, verifica-se que, desde a Lei das XII Tábuas, já existiam limitações ao direito de propriedade. Mais especificamente em relação ao Direito Romano, tinha-se, já no governo de Justiniano, a plena a noção de desapropriação por motivos de utilidade pública. Nesse sentido, ainda que seja considerada individualista, a propriedade romana não pode ser tida como absoluta[118].

O fim do Império Romano do Ocidente, decorrente das invasões bárbaras, proporcionou o surgimento de um novo regime de propriedade. Passa-se a ter uma superposição de direitos, pois o domínio é atribuído a mais de uma pessoa, o senhor feudal e o servo, pondo fim a uma das características do direito de propriedade romano, a exclusividade.

Da importância social que esse bem de produção desfrutava nessa estrutura decorrem conseqüências que singularizavam o regime jurídico da propriedade. Sua exploração tomou, juridicamente, a forma de vínculo entre os que a possuíam, mas não a cultivavam, e os que trabalhavam, mas dela não eram donos. A estes reconheceu-se o direito de possuí-la com a obrigação, porém, de satisfazer perpetuamente determinadas prestações, que revestiam diversas formas. Em suma, tinham um direito real na coisa alheia, mas não a propriedade. Conservava-se esta no domínio eminente das famílias nobres, que a senhoreavam, sem a trabalhar[119].

Entretanto, com aumento das relações comerciais, a migração de pessoas do campo para as cidades se intensificou, houve a concentração do poder político nas mãos do rei e foi dado início a um grande processo de renascimento da cultura greco-romana. Esses fatores, somados, provocaram a decadência do feudalismo na Europa ocidental.

A burguesia que emergia desse novo mundo, com o tempo, começou a contestar os privilégios recebidos pela aristocracia descapitalizada e a reclamar uma maior participação na política dos países. Desse estado de insatisfação, eclodiram as primeiras revoltas liberais.

Fazendo frente ao intervencionismo estatal, a propriedade passou a ser associada aos gritos de liberdade da época de tal forma que os filósofos do liberalismo lhe imprimiram um caráter absoluto nunca antes visto. Em meio a essa turbulência, foi aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que colocou, em seu art. 2º, a propriedade como inerente a própria natureza humana. Contudo, a consagração da doutrina liberal só chega com o Código Napoleônico que passa a influenciar textos normativos no mundo inteiro, inclusive no Brasil, com o Código Civil de 1916[120].

Marcelo Dias Varella sustenta que, nesse período, o “Estado nada poderia fazer frente ao direito sagrado, natural e absoluto do homem, gerando uma obrigação de não fazer erga omnes, excluindo o direito da coletividade[121]”.

Esse ambiente de individualismo exacerbado trouxe graves consequências para a sociedade. A crescente desigualdade social motivou o surgimento de novas doutrinas, desta vez em oposição ao Estado liberal. Filósofos como Karl Marx e Friedrich Engels passaram a defender a abolição da propriedade privada como forma de combater as deformações causadas pelo sistema capitalista de produção.

No campo jurídico, destacou-se Leon Duguit ao suscitar a tese da propriedade como uma função social. Segundo ele, todos os indivíduos possuem uma obrigação na sociedade. O homem possuidor de bens tem que cumprir a finalidade social que lhe é implícita, porque a propriedade não é um direito subjetivo, mas função social de quem a possui. Assim, quem não a utiliza ou a utiliza inadequadamente não é tido como proprietário[122].

No entanto, a função social da propriedade como doutrina só vem a surgir com a Igreja Católica por meio das encíclicas papais inspiradas nos ensinamentos de São Tomás de Aquino. Na Suma Teológica, ele assevera que “os bens da terra foram destinados por Deus a todos os homens, sendo reservados, provisoriamente, à apreensão individual, e a utilização da propriedade deve visar ao bem comum[123]”.

A doutrina católica reconhecia o direito de propriedade, mas sempre condicionado a satisfazer o bem-estar da sociedade. Na encíclica Rerum Novarum, o Papa Leão XIII pregava que “o homem não deve possui as coisas exteriores como privadas, mas como comuns, de modo que facilmente as partilhe com os outros[124]”.

Outrossim, o Papa João XXIII, em Mater et Magistra, afirma que a propriedade, “intrinsecamente, comporta uma função social, mas é igualmente um direito que se exerce em proveito próprio e para o bem dos outros[125]”. No mesmo sentido, urge destacar, ainda, a sabedoria do Papa João Paulo II[126]:

A propriedade não implica, por si só, a destinação exclusiva do bem possuído ao uso do possuidor. A propriedade é uma administração. É um poder estável de administrar e dispensar os bens. O possuidor tem o direito de utilizar seus bens ao seu uso em primeiro lugar, a satisfazer de suas próprias necessidades. Em segundo lugar, às necessidades dos demais, confrontando sempre suas necessidades pessoais com as carências dos outros. Os bens dos possuidores estão hipotecados às carências dos que não possuem. Na doutrina da igreja a propriedade não se define pela alocação, mas pela responsabilidade.

Nota-se que, na doutrina da igreja, a propriedade privada não é considerada o grande mal da sociedade, conforme acreditava os comunistas, tampouco é uma função social, como entendia Duguit. Em sua concepção, ela é um direito natural exclusivo e transmissível, onde sua legitimidade decorre da necessidade de atender ao interesses gerais da sociedade. 

Esse pensamento norteou a compreensão atual acerca da função social, pois manteve a propriedade na esfera privada ao mesmo tempo que proporcionou uma mudança de consciência no modo como ela é entendida.

No Brasil, a função social da propriedade só veio a ser incluída no texto constitucional de 1934, sob forte influência da Constituição de Weimar. Carlos Alberto Dabus Maluf conta que se tratava de um golpe de morte no velho conceito de propriedade, que passaria a ter uma forma mais humana, flexível e dinâmica para atender as novas exigências sociais[127]. Nas demais Constituições, a prevalência do interesse público sobre o privado se manteve, embora variando quanto ao grau de importância.

Foi com a Constituição de 1988 que se deu o passo mais largo no desenvolvimento da doutrina da função social da propriedade ao incluí-la no rol dos direitos fundamentais. Analisando a questão, diz José Afonso da Silva[128]:

O regime jurídico da propriedade tem seu fundamento na Constituição. Esta garante o direito de propriedade, desde que este atenda sua função social. Se diz: é garantido o direito de propriedade (art. 5º, XXII), e a propriedade atenderá a função social (art. 5º, XXIII), não há como escapar ao sentido de que só garante o direito da propriedade que atenda sua função social. A própria Constituição dá conseqüência a isso quando autoriza a desapropriação, com pagamento mediante título, de propriedade que não cumpra sua função social (art. 182, § 4º, e 184).

Ademais, vale lembrar, ainda, que a propriedade privada e a função social, estão previstos como princípios da ordem econômica, consoante disposição do art. 170 da Lei Fundamental, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Nessa seara, novamente recorre-se a José Afonso da Silva[129]:

Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque submetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela só é legítima enquanto cumpra uma função dirigida à justiça social.

Nas palavras do autor, conclui-se que o conceito de propriedade privada foi relativizado para atingir os fins propostos pela Constituição de 1988. Para tanto, a sua estrutura teve que ser modificada, incorporando, entre os elementos internos, a função social, que, por incidir sobre seu conteúdo, serve de garantia de existência para o próprio direito em questão. No mesmo sentido, posiciona-se Eros Roberto Grau[130]:

O princípio da função social da propriedade, desta sorte, passa a integrar o conceito jurídico-positivo de propriedade (destas propriedades), de modo a determinar profundas alterações estruturais na sua interioridade.

Em razão disso – pontualizo – é que justamente a sua função justifica e legitima essa propriedade

Ante o entendimento exarado nos parágrafos anteriores, torna-se inevitável, neste momento, analisar se, independente da natureza do bem, todos os tipos de propriedade são dotados de função social.

Os bens, quanto ao seu aspecto econômico, podem ser classificados como de consumo e de produção. No primeiro caso, trata-se dos bens necessários a satisfazer as necessidades materiais, de prover a subsistência do indivíduo e de sua família. A segunda classificação, por sua vez, se refere aos bens destinados a produção de outros bens, a exemplo da propriedade rural, conforme já foi tratado no primeiro capítulo.

Para Eros Roberto Grau, a propriedade que serve de garantia a subsistência individual e familiar não cumpre uma função social, mas, sim, uma função individual. Desse modo, sustenta que apenas o art. 5º, XXII, da Constituição, se aplicaria a hipótese[131].

Já para Rosalinda P.C. Rodrigues Pereira, o princípio da função social, da forma com foi albergado na Constituição, estaria se referindo a propriedade de bens em geral e não a um único tipo em especial[132].

No mesmo sentido é o pensamento de José Afonso da Silva[133]:

A função social desses bens consiste precisamente na sua aplicação imediata e direta na satisfação das necessidades humanas primárias, o que vale dizer que se destinam à manutenção da vida humana. Disso decorre que sejam predispostos à aquisição de todos com maior possibilidade possível, o que justifica até a intervenção do Estado no domínio da sua distribuição, de modo a propiciar a realização ampla de sua função social. E este é um princípio que se superpõe mesmo ao da iniciativa privada. Assim, a intervenção direta na distribuição de bens de consumo (conceito que inclui também os de uso pessoal duráveis: roupa, moradia etc.), para fomentar ou mesmo forçar o barateamento do custo de vida, constitui um modo legítimo de fazer cumprir a função social da propriedade.

Com efeito, por estar consagrado tanto como um direito fundamental quanto como princípio da ordem econômica, é razoável entender que o constituinte ampliou a esfera de abrangência da função social para alcançar todos os tipos de propriedade. Ainda que alguns bens tenham por objetivo o consumo e a satisfação das necessidades básicas, isso, por si só, pode ser entendido como uma função social, na medida em que garante, ao núcleo familiar, a oportunidade de manter dignamente a sua existência. Dessarte, não há distinção jurídica entre os tipos de propriedade no que se refere à função social, o que existe são manifestações diversas conforme a natureza do bem. Assim compreende também Domingos Sávio Dresch da Silveira[134]:

Entendemos que a funcionalização do direito de propriedade atinge a todas as espécies de propriedade. A nosso ver, o que varia é o tipo de função social. Mesmo na pequena e na média propriedade que, nas condições previstas no artigo 182 da Constituição Federal, são insuscetíveis de desapropriação, o que há é uma função social cumprida independentemente da produtividade do imóvel. A função social, portanto, apesar de ser diversa da regra prevista para a propriedade fundiária, está presente e consiste na garantia ao desenvolvimento do núcleo familiar. Essa já é, em si, uma função socialmente relevante. Assim, a função social não é, necessariamente, coletiva. Diga-se, ainda, que ao contrário das constituições anteriores, a atual inclui a função social da propriedade dentre os direitos fundamentais e, não apenas, no capítulo da ordem econômica, o que parece indicar a funcionalização de todas as espécies de propriedades.

Superada essa questão, urge entender como a função social pode ser assegurada nos termos da Constituição.

Partindo da concepção de que o proprietário absorve, para a sua esfera particular, interesses externos que nem sempre coincidem com os seus, é imperativo fazer uso de um conjunto de limitações que venha a impedir a existência de condutas atentatórias aos interesses sociais como outrora se permitia.

Essas limitações se apresentam de forma externa ao direito de propriedade “vinculando simplesmente a atividade do proprietário, interferindo tão-só com o exercício do direito, e se explicam pela simples atuação do poder de polícia[135]”. Não se confundem com a própria função social, pois essa se encontra impregnada na estrutura interna do conceito de propriedade, faz parte do modo como se entende o instituto.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Dentre as limitações, a única que merece um estudo mais aprofundado por este trabalho é a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, prevista no art. 184 da Carta Política de 1988.

Por este dispositivo, a União fica autorizada a desapropriar, para fins de reforma agrária, imóveis rurais que não cumpre a função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária. Mais adiante a Constituição enumerou os requisitos necessários para que a propriedade rural se compatibilize com o bem-estar social.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Nesses termos, por clara disposição expressa, os requisitos supracitados devem estar presentes concomitantemente. Com isso, o constituinte procurou coibir a inércia do proprietário que “nada faz para auferir de sua propriedade vantagens inerentes a bens desta natureza e que têm repercussão benéfica na coletividade[136]”.

Todavia, o art. 185, II da Carta Magna permite, aparentemente, uma proteção diferenciada à propriedade rural produtiva uma vez que afasta, de sua órbita, a possibilidade de perda indenizada para fins de reforma agrária. Nessa esteira, uma análise literal de seu texto leva facilmente a conclusão de que um imóvel rural que se tornou produtivo ofendendo a legislação trabalhista e ambiental não seria atingido por essa forma de desapropriação.

Embora esse entendimento seja aceito por boa parte da doutrina e da jurisprudência, existem muitos posicionamentos contrários, que merecem igualmente uma devida atenção.

Sobre a matéria, Domingos Sávio Dresch Silveira afirma[137]:

Há outros que entendem que apenas a propriedade que se tornar produtiva respeitando os três elementos componentes da função social, expressamente previstos no artigo 186 da Constituição Federal, encontra-se excluída da reforma agrária. Argumentam que o contrário importaria em premiar a propriedade que descumpre sua função social ou, por outra, que respeita apenas o elemento econômico previsto no artigo 186. Assinale-se que essa interpretação é a que melhor se harmoniza com a concepção que defendemos de ser função social elemento constitutivo do direito de propriedade. 

Não obstante a falta de enfrentamento direto do tema pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Mandado de Segurança nº 22.164-0/SP, o Relator do caso, Ministro Celso de Mello, em breve passagem de seu voto, se manifestou favorável à possibilidade de desapropriação, para fins de reforma agrária, de imóvel rural que não cumpre o requisito ecológico da função social. Aqui, vale registrar o teor dos argumentos suscitados[138]:

O dever que constitucionalmente incumbe ao Poder Público de fazer respeitar a integridade do patrimônio ambiental não impede, contudo, quando necessária a intervenção estatal na esfera dominial privada, de promover, na forma do ordenamento positivo, a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária, especialmente porque um dos instrumentos de realização da função social da propriedade rural – consoante expressamente proclamado pela Lei nº 8629/93 (art. 9º, II e seu §3º) e enfatizado pelo art. 186, II, da própria Carta Política – consiste, precisamente, na submissão do domínio à necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente, sob pena de, em descumprido esses encargos, sofrer a desapropriação-sanção a que se refere o art. 184 da Lei Fundamental.

Da leitura do voto em apreço, observa-se que houve uma valorização das exigências impostas pelo art. 186 da Lei Maior com a singela inclinação pela possibilidade de desapropriação, para fins de reforma agrária, de propriedades rurais que não resguardam o patrimônio natural das ações predatórias oriundas da exploração econômica do imóvel. É uma posição de grande valor que enriquece ainda mais essa contenda, pois vem de um Ministro da mais alta Corte deste país.

Ademais, é mister ressaltar,  ainda, que a ausência dos elementos ecológico[139] e trabalhista[140] que caracterizam a função social da propriedade rural, já foi usado, inclusive, como justificativa para a edição de decretos expropriatórios que autorizaram o INCRA a propor as devidas ações de desapropriação para fins de reforma agrária.

Nessa mesma seara, é interessante mencionar a posição contraditória de José Afonso da Silva. Em sua obra, Curso de Direito Constitucional Positivo, o autor defende que a proibição de desapropriação, para fins de reforma agrária, de propriedade produtiva, mediante indenização, é absoluta e não seria científico interpretar de maneira diferente[141]. Por outro lado, na obra, Direito Ambiental Constitucional, o mesmo constitucionalista assevera que o proprietário que explora imóvel rural sem atender aos requisitos elencados no art. 186, da Constituição, fica sujeito à expropriação para fins de reforma agrária[142].

A maneira ambígua com que José Afonso da Silva reporta a matéria é um indicador da necessidade de amadurecimento do debate. Ante a relevância que reforma agrária possui, admitir que uma propriedade rural seja desapropriada por descumprir qualquer um dos requisitos que caracterizam a função social abriria, como consequência prática, um leque maior de imóveis rurais passíveis de sucumbir ao interesse social.

Pois bem, diante do que já foi dito, é certo que o estudo da função social suscita muitos questionamentos, sendo compreensível, já que existem diversos interesses que se misturam aos argumentos sustentados por cada lado na contenda. Porém, o mais importante, nesse momento, é destacar que a noção de propriedade rural, sob a ótica tradicional de natureza civilista, já não cabe mais no sistema jurídico brasileiro.

O novo enquadramento legal tem por base a Constituição e leva em consideração os aspectos sociológicos da propriedade rural. A superação das antigas concepções se deve a mudança de valores provocada pela própria evolução da sociedade, conforme explica Marcelo Dias Varella[143]:

O caráter absoluto da propriedade não mais pode ser considerado frente às novas concepções do direito civil, pois cada vez mais a sociedade como um todo impõe uma série de limitações ao seu exercício. Como ensinava Hegel, as instituições jurídicas nascem em um determinado momento histórico, no caso da propriedade, em um período de grande individualismo, onde vigiam determinados valores sociais, ultrapassados há dezenas de anos, defasados mesmo para a realidade da época e, passado estes valores, o instituto da propriedade como bem absoluto do homem perdeu sua razão de existir, perde todo o seu sentido e todo o seu direito. 

Com isso, não se pretende afirmar que houve, no Brasil, a incorporação de conceitos socialistas. A função social modificou o conteúdo do instituto sem retirar-lhe o caráter privado, o que se coaduna com o fato da propriedade ser garantida, como direito fundamental, em inciso próprio do art. 5º, da Constituição. Um reflexo desse entendimento é visto nas indenizações pagas pelo Estado em função das desapropriações de imóveis rurais para fins de reforma agrária.

Eros Roberto Grau argumenta que a função social da propriedade só tem sentido e razão de ser quando referida a propriedade privada, consubstanciando a segunda como pressuposto da primeira. Ademais, lembra que, a despeito disso, muitas vezes a união dessas expressões foi compreendida como algo revolucionário[144].

Esse mesmo raciocínio é observado, ainda, na concepção de reforma agrária proposta pela Carta Magna, onde se privilegia o modo de produção capitalista com a redistribuição das terras em benefício da unidade do núcleo familiar, reforçando, desse modo, a noção de propriedade particular e criando resistências a uma transformação socialista[145].

Contudo, todo raciocínio elaborado não é o bastante para dá a função social da propriedade rural a dimensão que lhe foi concebida pela Lei Fundamental. Por isso, é forçoso uma mudança nas bases que servem de apoio a sociedade para que esse novo momento seja assegurado plenamente.

É por meio desse entendimento que se chega ao ponto central deste trabalho, as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Assim, o próximo item será o espaço de discussão acerca de tais atos, compreendendo-os como uma tentativa de fortalecimento democrático da sociedade civil e de livre exercício da cidadania ativa.

4.2.O MST e o direito à terra

A estrutura agrária no país é fruto, conforme já visto, de um longo período de concentração fundiária que colocou à margem do processo produtivo milhões de brasileiros e desencadeou, por conseguinte, um profundo estado de exclusão social que tem reflexos tanto no meio rural como nos centros urbanos. Nesse ambiente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra surge como um ator social importante ao procurar meios de participação no processo de decisão que ditará os rumos da política nacional de reforma agrária.

Com a finalidade de promover um debate amplo sobre os problemas do campo brasileiro, o MST realiza ações de ocupação de propriedades rurais improdutivas, chamando a atenção do Estado para o cumprimento de norma programática inscrita na Constituição, cujo teor está sendo negligenciado pelo Estado em prejuízo dos trabalhadores rurais que buscam, na democratização do acesso à terra, um modo de regaste da sua própria dignidade.

Dessarte, cumpre analisar as iniciativas do MST e como elas podem contribuir para efetivar a conquista da cidadania por aqueles que, sistematicamente, são privados dos mais elementares direitos.

Primeiramente, é mister estudar a motivação para todas essas ações. A Lei Maior elenca como fundamentos da República, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, além de expressar o compromisso do país com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e da marginalização e com a redução das desigualdades sociais e regionais. Contudo, observa-se que, entre o texto constitucional e a realidade do campo brasileiro, existe, ainda, um caminho muito longo a ser trilhado.

A imensa injustiça social proporcionada pela má distribuição de terras no Brasil acaba servindo de estímulo para que o cidadão, desamparado pelo Estado, tome atitudes que objetivam a realização das necessidades mais básicas da vida humana. Nesse contexto, o MST, como movimento de massa nacional, assume o papel de coordenador da luta campesina, cobrando direitos e se posicionando contrariamente as ações governamentais que agravam a exclusão social no campo.

Assim, a ocupação de propriedades rurais improdutivas reflete o estado de indigência instalada entre os trabalhadores rurais sem terra, que, diante da desesperança, buscam em terras ociosas uma luz para minimizar as péssimas condições em que vivem. Nesse sentido, explica Suzana Angélica Paim Figueiredo[146]:

Característica marcante dessas ações é o motivo e a destinação porque são realizadas. Deve-se considerar que os atos de ocupação têm, inicialmente, como móvel uma situação de fato. O que determina a ocupação para a maioria das famílias é o estado de penúria e necessidade em que se encontram. Sem trabalho, sem condições de sobrevivência, arrastados pela fome, os ocupantes buscam em solos vazios, sem destinação social, em áreas “produtivas não utilizadas” ou “áreas aproveitáveis não exploradas” - para utilizar uma definição do próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária -, condições de mitigar a fome, imperativo maior para a prática da ocupação de terras.

Nessa esteira, o MST une os trabalhadores rurais sem terra em causa comum, praticando ações que visam despertar as autoridades para a efetivação de programa introduzido no bojo da Constituição. A força de suas pretensões encontra-se presente no esforço coletivo de seus membros que, de forma organizada, tentam dar vida à reforma agrária.

Seus atos intensificam as discussões acerca do tema, chamando a sociedade para dentro do problema. Isso é “fundamental para a consecução da reforma agrária constitucionalmente orientada, uma vez que o mascaramento e o debate ideológico intransigente, antítese da convivência democrática, acabam por desnaturar os respectivos ditames constitucionais[147]”.

Dessa sorte, não se pode falar que exista tão somente a motivação social para a questão, pois há, também, um componente político nas ocupações. Por consequência, o MST, quando atua, atrai para si a discordância daqueles que enxergam suas ações como atos de desordem. É assim porque muitos interesses são colocados em disputa, de um lado aqueles que querem a manutenção do status quo, do outro aqueles que vislumbram um mínimo de transformação social.

João Baptista Herkenhoff afirma que “quando a ordem social, em vez de ser ordem é desordem, os movimentos sociais repõem a ordem essencial, rebelando-se contra a desordem imposta e lutando pela ordem na sua conceituação ontológica[148]”.

A luta do MST contra a ordem imposta justifica-se pela grande distância entre o mundo real e o projeto de mundo idealizado por seus integrantes. Se o primeiro assumisse a percepção de justo não existiria razão para as ocupações de propriedades rurais improdutivas. Todavia, como a realidade não consegue satisfazer o mínimo existencial, torna-se necessária e legítima a pressão por mudanças.

Nesse cenário, urge lembrar que o embate assumido pelo MST é desproporcional, porquanto versa sobre aspectos profundos da sociedade. Acerca da questão, Paulo Freire salientou, em entrevista à TV PUC/SP, que os trabalhadores rurais sem terra, quando lutam pela democratização a sociedade, marcham contra uma vontade reacionária histórica implantada no Brasil[149].

Com efeito, a situação aludida acima é, certamente, o maior obstáculo a ser superado por qualquer o movimento social. Em função disso, é inevitável associar as estratégias de luta dos trabalhadores rurais sem terra com os atos de desobediência civil estudados no capítulo anterior. Esse processo de identificação torna-se, no momento, importante para atestar a legitimidade do MST como catalisador das transformações sociais dentro da ordem democrática.

Os atos de desobediência civil, como já visto, se destacam pela publicidade, não violência e aparente ilegalidade.  Sempre que ocorrem ocupações de propriedades rurais improdutivas, uma preocupação constante das lideranças é a ampla divulgação das suas ações. Para tanto, são utilizados comumente os veículos jornalísticos tradicionais, além do próprio sítio eletrônico do movimento. Essa medida é uma característica do MST e se faz necessária por servir de instrumento de pressão junto ao Poder Público.

No que tange a não violência, verifica-se que esse ponto é bastante polêmico quando se estuda os movimentos sociais. Por isso, é imperioso lembrar que não se pretende, com este trabalho, justificar toda e qualquer forma de atuação do MST. A proposta que está sendo seguida se restringe à análise, in abstrato, das ações de ocupação de propriedades rurais improdutivas à luz da ordem democrática.

Feito esse esclarecimento e dando prosseguimento ao estudo, sustenta-se que a abdicação da violência é uma forma de justificação moral para todo o movimento social que pretende se legitimar perante a opinião pública. Entretanto, isso, por si só, não evita a existência de confrontos nos processos de ocupação de terras improdutivas.

Nessa seara, ressalta-se que, em boa parte das vezes, a força externada pelo MST assume a forma reativa àquela utilizada contra o movimento. Logo, para caracterizar a desobediência civil, basta que a ação seja praticada de tal modo que fique configurada uma hipótese de legítima defesa. No entanto, somente o aplicador do direito, na análise do caso concreto, poderá dirimir a dúvidas que venham a pairar sobre a questão.

Esse é o entendimento de José Carlos Garcia, conforme aduz[150]:

Creio que a exigência de não violência para a caracterização dos Sem-Terra como desobedientes não deve ser entendida necessariamente como sinônimo de vocação para o martírio, e sim como uma dupla exigência de outra ordem: que eles não tomem a iniciativa do confronto violenta; e de que, quando agredidos, limitem sua eventual reação de forma proporcional e moderada, o que exigirá sempre uma atividade de ponderação por parte do intérprete não diferente daquela sempre necessária para caracterizar ou não o exercício da legítima defesa

Por fim, a última característica estudada será a ilegalidade, prima facie, das ações do movimento quando, supostamente, desrespeitam o direito de propriedade.

Ocorre que os trabalhadores rurais sem terra elegeram como objeto principal de suas críticas a propriedade rural improdutiva, apresentando um discurso moral baseado na defesa de sua função social. Nesses termos, o que movimento propõe é a ocupação de terras ociosas para assegurar que elas sejam destinadas ao trabalho e a sobrevivência humana e não mais como reserva de valor. Tal posicionamento é fruto da interpretação sistemática da Carta Magna feita pelo próprio MST e que representa uma discordância acerca da constitucionalidade da política de reforma agrária desenvolvida pelo Poder Público.

Dessarte, observa-se que o movimento afasta a ilegalidade de seus atos, buscando, para tanto, embasamento na Lei Fundamental. Nesse sentido, suas ações são uma tentativa de democratização da sociedade pela inclusão de atores sociais não pertencentes à esfera estatal no processo de interpretação constitucional. Essa situação encontra refugio na teoria da sociedade aberta dos intérpretes proposta por Peter Häberle, conforme passagem de sua obra[151]:

Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta, ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição.

Deveras, como o MST é, também, um intérprete da Constituição, as ocupações de propriedades rurais improdutivas são, na verdade, uma forma não oficial de controle de constitucionalidade. Elas se fazem necessária diante da posição omissa do Poder Público em relação aos dispositivos elencado na Lei Maior, notadamente os que se referem à reforma agrária. Assim, dentro de um Estado Democrático de Direito, essas ações representam uma evolução da sociedade no sentido de abrir o processo decisório de interesse coletivo à participação da comunidade política.

Quando, se compreende os fatos dessa maneira, é fácil concluir pela legalidade e legitimidade das ocupações de terras improdutivas pelo MST. De modo a reforçar essa percepção, é mister lembrar que os membros do Ministério Público de todo o país aprovaram, no seu 11º Congresso Nacional, a seguinte tese: “considerando a caracterização do estado de necessidade, pode-se concluir que a ocupação de terras improdutivas por trabalhadores e suas famílias que não possuem meios de prover a própria subsistência é ato lícito[152]”.

De igual sorte, o desembargador Gercino José da Silva, ouvidor agrário nacional, defende a legalidade e legitimidade das ocupações[153]:

No que se refere às ações para melhorar a reforma agrária, o Governo Federal, através da Ouvidoria Agrária Nacional, tem notificado os movimentos sociais de que nós apoiamos integralmente as mobilizações, desde que sejam dentro da legalidade. Essa legalidade, no nosso ponto de vista, segue a premissa de que as propriedades rurais produtivas, legitimamente destacadas do patrimônio público para o particular, e que estejam cumprindo a função social, não podem ser objeto de ocupação, haja visto que a Constituição Federal nega sua desapropriação para fins de reforma agrária. Com referencia às áreas improdutivas e griladas, nós entendemos que as ocupações destes imóveis são legítimas, desde que no processo de ocupação não aconteçam crimes como destruição de patrimônio, matança de gado, colocação de pessoas na condição de refém e outros crimes que estão na categoria de crimes comuns e nada têm a ver com a reforma agrária. É bem-vinda a atuação dos movimentos sociais dentro do processo da legalidade. O processo de Reforma Agrária seria mais lento sem a sua atuação.

Desse modo, limitando o estudo às ocupações de terras improdutivas, verifica-se que tais ações se identificam perfeitamente como atos de desobediência civil. Aliado a isso, fica atestado, outrossim, a legitimidade do MST como movimento social inserido no contexto democrático.

Nesse desiderato, é mister mencionar, ainda, no bojo deste estudo que os trabalhadores rurais sem terra mobilizados agem em contraposição às atitudes ofensivas do Estado sobre os direitos e garantias fundamentais, objetivando efetivar a conquista da verdadeira cidadania por meio do respeito à dignidade da pessoa humana. Ante isso, algumas considerações se impõem para o momento.

Ingo Wolfgang Sarlet conceitua a dignidade da pessoa humana, nestes termos[154]:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida

Nesse diapasão, garantir a existência de uma vida digna significa proteger os direitos basilares que asseguram ao ser humano um estado de proteção as necessidades mínimas de existência. Esse ideal passa, inevitavelmente, pelo que se entende por cidadania enquanto “status para o cidadão e um direito fundamental[155]”.

Logo, ser cidadão é ter sua dignidade respeitada enquanto pessoa e isso não é outra coisa senão ter, ao alcance, todos os direitos relativos à sua condição humana. Essa afirmação é reforçada pelo pensamento de Hannah Arendt quando preleciona que a cidadania é o direito de ter direitos[156].

Dessarte, aquele que se vê privado da sua posição de cidadão pela negação de direitos fundamentais sofre a maior das violências. Nesse caso, ele será obrigado a viver as margens da sociedade sem um mínimo de dignidade e a ter o seu desenvolvimento pessoal comprometido pela falta de perspectiva em um futuro socialmente mais justo, conforme se observa facilmente em todos os cantos do país, em especial no meio rural.

Assim, quando tenta retardar o acesso à terra àqueles que querem tirar dela o seu sustento e de sua família com respaldo em uma interpretação vesga do direito de propriedade, o Estado brasileiro contribui para a perpetuação da situação de exclusão em que vivem os trabalhadores rurais sem terra e impede que eles exerçam a sua verdadeira cidadania.

Fernando da Costa Tourinho Neto aduz que a propriedade rural é garantida para proteger os direitos fundamentais do ser humano de tal modo que, caso não seja utilizada para esse fim, deixa de ser direito individual fundamental para ser de interesse social[157]. Essa é, sem dúvida, a essência da reforma agrária, a qual se apresenta como uma saída viável para retirar milhões de brasileiros do estado de abandono em que se encontram.

Nesse contexto, conclui-se que só existe cidadania com reforma agrária e é sob essa ótica que o MST procura efetivá-la. A atuação proposta pelo movimento traz um novo ânimo à luta pela terra, pois dá à cidadania um caráter ativo em conexão com o conceito de soberania popular.

Relacionando as duas expressões, Maria Garcia assevera[158]:

A cidadania, exercício da soberania popular e de suas prerrogativas (direitos atribuídos com caráter de exclusividade ao seu titular), compreende os deveres cívicos, a classe dos direitos políticos e todos os que a Constituição e as leis atribuem ao cidadão, em especial a participação na vida política, administrativa e cívica do país; permitem tomar parte na expressão da soberania nacional e procedem ao mesmo tempo da idéia de liberdade política e da liberdade individual, de natureza ou caráter misto, portanto, inerentes, especificamente, à cidadania.

É por meios desse entendimento que se chega a uma concepção de governabilidade democrática. Sabendo disso, o MST promove atos de ocupação de propriedades rurais improdutivas, movido pelo exercício da cidadania ativa de seus membros, a fim de colocar, na agenda do Poder Público, demandas sociais que historicamente tiveram sua concretização adiadas por interesses que não se coadunam com um Estado Democrático de Direito.

Há que se pensar em um novo projeto de reforma agrária, onde as relações econômicas, políticas e sociais sejam geridas pela convivência democrática.  Esse modelo deverá ter nos movimentos sociais, notadamente o MST, o apoio necessário para o seu adequando desenvolvimento.

O desafio da democratização da sociedade agrária passa por um processo em que os movimentos populares rurais se sintam sujeitos capazes e necessários de um Projeto de Reforma Agrária que altere as bases do modelo de desenvolvimento atual e que crie novas bases de integração, reestruturando a produção agrícola e fortalecendo a cidadania dos trabalhadores rurais, entendida como garantia de direitos fundamentais e capacidade de intervenção democrática na definição de política que lhe dizem respeito[159].

Por derradeiro, reafirma-se a posição do MST como legítimo movimento que luta pela reforma agrária e indispensável para o fortalecimento da democracia. Todavia, a tarefa de levar adiante as mudanças necessárias na estrutura agrária no Brasil é pesada demais para ser suportada por um ator social. Nessa empreitada, o papel do Poder Judiciário é dos mais importantes, visto que cabe a ele a função de julgar os conflitos que rodeiam a propriedade rural.

Posto que assuma, em muitas oportunidades, um entendimento avesso as mudanças propostas pelos movimentos populares rurais, em alguns julgamentos, os tribunais já romperam com seu tradicional estilo conservador e adotaram uma postura mais afinada com as transformações sociais. Dessa sorte, insta fazer uma discussão sobre esse ponto no próximo item, analisando o comportamento do Judiciário frente aos conflitos agrários, bem como seu papel na construção de uma nova sociedade.

4.3.Um novo paradigma para a solução de conflitos agrários

A realidade do campo brasileiro é marcada pela presença de inúmeros conflitos coletivos relacionados, dentre outros motivos, pela falta de acesso aos bens de natureza patrimonial ocasionada pela negação de direito essenciais à manutenção das necessidades humana. Sendo esse cenário de desigualdade social o grande estímulo aos conflitos que envolvem a propriedade da terra, conforme destacado neste trabalho reiteradamente, é imperativo analisar a contenda também sob a ótica do Judiciário.

Desse modo, avançando a discussão, cumpre anotar que o ordenamento positivo brasileiro, consoante afirmação de Antônio Carlos Wolkmer, “não consegue garantir uma correta regulação de tensões coletivas que abrangem o acesso à terra e o conseqüente processo de ocupação nas áreas rurais e urbanas[160]”. É assim porque o Poder Legislativo, em crise de legitimidade, se encontra destoante do mundo real e apático diante dos problemas sociais que deveria enfrentar.

Como consequência da inércia das instituições normativas oficiais, os trabalhadores rurais sem terra, excluídos e marginalizados pela sociedade, procuram transformar suas carências em direitos reconhecidos e regulamentados pelo Estado. Para tanto, criam seus próprios espaços de produção jurídica alternativa de cujas relações sociais emergem pretensos direitos legitimados na falta de eficácia da legalidade dominante[161].

Acerca desse ponto, João Baptista Herkenhoff aduz que a prática jurídica popular desmonta as velhas concepções de Direito. Esse, segundo o autor, é posto como algo a ser construído pelo homem e pelas organizações coletivas em meio a uma luta dura e diuturna[162].

No mesmo sentido, a tese de Roberto Lyra Filho corrobora com a ideia da conquista do Direito pela luta populares[163]:

O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda. Por isso, é importante não confundi-lo com as normas em que venha a ser vazado, com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social. Estas últimas pretendem concretizam o Direito, realizar a Justiça, mas nelas podem estar a oposição entre a Justiça mesma, a Justiça Social atualizada na História, e a “justiça” de classes e grupos dominantes, cuja ilegitimidade então desvirtua o “direito” que invocam.  

Para o jurista, o Direito brota das oposições, dos conflitos e da libertação perante as dominações ilegítimas. Acrescenta, assegurando que, embora se relacione frequentemente com a legalidade, as duas expressões não se confundem, pois o Direito não se acomoda em normas envelhecidas e degradadas, mas, sim, no processo histórico de lutas sociais onde as condições para sua realização são formuladas.

De fato, a lei não deve ser encarada como o único e exclusivo caminho que leva ao Direito. Ela é elaborada para o homem abstrato e padece de naturais imperfeições. Não se quer, com isso, tirar o brilho do regime da legalidade, pois, reconhecidamente, é nele que se apóia o Estado Democrático de Direito. Pretende-se, sim, afastar da cultura jurídica o monopólio da lei como verdade incontestável que apenas contribui para frear os avanços conquistados pela luta popular.

Assim sendo, os direitos não se encontram em uma lista pronta e acabada. Eles são ampliados conforme o surgimento de outras demandas. Dessa sorte, os espaços criados pelo MST para a afirmação de novos direitos refletem as necessidades do momento que envolve uma parcela significativa da sociedade.

Entretanto, na maioria dos casos nem se tratam de novos direitos propriamente ditos, mas novas formas para a sua obtenção, conforme explica Antonio Carlos Wolkmer[164]:

Ainda, que os chamados direitos “novos” nem sempre sejam inteiramente “novos”, na verdade, por vezes, o “novo” é o modo de obtenção de direitos que não possuam mais pelas vias tradicionais – legislativa e judicial –, mas provêm de um processo de lutas e conquistas das identidades coletivas para o reconhecimento pelo Estado. Assim, a designação de “novos” direitos refere-se à afirmação e materialização de necessidades individuais (pessoais) ou coletivas (sociais) que emergem informalmente em toda e qualquer organização social, não estando necessariamente prevista ou contidas na legislação estatal positiva.   

Dessarte, concluir-se que a estratégia usada pelo MST objetiva a transformação da ordem jurídica por meio de mobilização de massa, entendida, aqui, como uma prática alternativa às tradicionais vias de efetivação de direitos. Ou seja, o que o movimento procura, é a conversão do legalismo instituído em uma legalidade democrática fundada nos princípios condutores da justiça social.

Essas aspirações somente serão possíveis com a superação de uma cultura dominada pelo formalismo e tecnicismo no exercício da função jurisdicional. Desse modo, para que possa haver uma resposta satisfatória aos conflitos agrários, o magistrado não deve se apegar, excessivamente, à técnica, pois a mesma inviabiliza, no momento de aplicação da norma genérica e abstrata, a realização da justiça como fim supremo do Direito.

A função jurisdicional transcende a modesta e subserviente atividade de acender aos caprichos e à vontade do legislador (ou dos mandatários do poder), pois, como poder criador, o Juiz não se constitui em simples técnico que mecanicamente aplica o Direito em face dos litígios reais, mas, buscando solucionar os conflitos de interesse entre sujeitos individuais e coletivos de Direito, o operador jurídico aparece como uma verdadeira força de expressão social que se define pelo exercício de uma função capaz de explorar as fissuras, as antinomias e as contradições da ordem jurídica burguesa[165].

Nesses termos, se afastando da posição de técnico, o magistrado pode adaptar os preceitos legais às necessidades fundamentais da comunidade. Isso somente é forçoso porque a norma abstrata, isoladamente, não consegue refletir todo o Direito, tornando a beleza do interprete indispensável para que a ordem jurídica positiva ganhe vida dentro do corpo social.

Assim, o abandono dessa lógica formal é indispensável para que a legalidade ganhe legitimidade e consiga ser, antes de tudo, um instrumento de realização da justiça. Dessa sorte, o interprete torna-se uma força a serviço do progresso, “construtor de uma hermenêutica comprometida com o avanço social, com a melhor distribuição de bens, com a universalização do Direito[166]”.

A proposta apresentada no parágrafo anterior não pretende romper com ordem jurídica oficial, mas buscar a sua transformação dentro do próprio sistema estatal. Não obstante possuir um viés inovador, esse entendimento não é algo incomum nos tribunais, pois facilmente são encontradas decisões judiciais que se coadunam com a posição, aqui, assumida.

Nesse sentido, tem-se o julgamento do Habeas Corpus nº 5.574/SP pelo Superior Tribunal de Justiça que, há um certo tempo, firmou entendimento no sentido de afastar a ocorrência de ilícito penal dos atos de desobediência civil praticados pelos trabalhadores rurais sem terra. Na análise desse acórdão, foram suscitados vários argumentos pelos Ministros, mas que, a despeito do grande valor, não excluem, da decisão final, a importância do MST para o aperfeiçoamento da democracia brasileira.

A ementa de decisão foi exarada nestes termos[167]:

HC – CONSTITUCIONAL – HABEAS CORPUS – LIMINAR – FIANÇA – REFORMA AGRÁRIA – MOVIMENTO SEM TERRA – Habeas corpus é ação constitucionalizada para preservar o direito de locomoção contra atual, ou iminente ilegalidade, ou abuso de poder (Const., art. 5º, LXVIII). Admissível a concessão de liminar. A provisional visa a atacar, com a possível presteza, conduta ilícita, a fim de resguardar o direito de liberdade. Fiança concedida pelo Superior Tribunal de Justiça não pode ser cassada por Juiz de Direito, ao fundamento de o Paciente haver praticado conduta incompatível com a situação jurídica a que estava submetido. Como executor do acórdão, deverá comunicar o fato ao Tribunal para os efeitos legais. Não o fazendo, preferindo expedir mandado de prisão, comete ilegalidade. Despacho do Relator, no Tribunal de Justiça, não fazendo cessar essa coação, por omissão, a ratifica. Caso de concessão de medida liminar. Movimento popular visando implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando implantar programa constante na Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado Democrático de Direito. 

Trata-se de Habeas Corpus impetrado em favor dos lideres do MST no Pontal do Paranapanema contra o indeferimento da liminar em sede de anterior Habeas Corpus pelo Desembargador Segundo Vice Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, objetivando a revogação da ordem de prisão preventiva. As acusações que pesavam sobre os pacientes se referiam à prática de esbulho possessório, além de formação de quadrilha.

Pois bem, o caso gira em torno do tema central deste trabalho, as ocupações de propriedades rurais improdutivas pelo MST. Destacou-se no acórdão a tese defendida pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro que, dentre outros fundamentos usados para defender sua posição, se manifestou favorável às ocupações de terras ociosas como legítima pressão popular em face do Poder Público.

Eis, aqui, um fragmento extraído de seu voto:

A postulação da reforma agrária, manifestei, em Habeas Corpus anterior, não pode ser confundida, identificada com o esbulho possessório, ou a alteração de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao Direito. Sabido, dispensa prova, por notório, o Estado, há anos, vem remetendo a implantação da reforma agrária.

Deveras, as ocupações promovidas pelos trabalhadores rurais sem terra têm por fim chamar a atenção do Estado para a realização da reforma agrária, afastando, com isso, o dolo necessário para a configuração do crime de esbulho possessório.  Outrossim, não há que se falar em crime de formação de quadrilha ou bando, pois esse exige, para sua configuração, a finalidade de cometer delitos, o que não ocorre na hipótese, por consequência lógica da inexistência do esbulho.

Desse modo, o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro procurou salientar que não houve crime contra o patrimônio na hipótese. O que existe, na verdade, é a reivindicação para que o Poder Público, efetivamente, cumpra uma norma programática constitucional. Tal conclusão se sustenta no próprio exercício da cidadania ativa e na noção de soberania popular que fundamentam o Estado Democrático de Direito.

Avaliando a concretização da reforma agrária como uma obrigação que o Estado não pode se ausentar, verifica-se que o acórdão traz um novo paradigma na solução dos conflitos que envolvam movimentos sociais, haja vista a realização de uma exegese sociológica na análise do caso que possibilitou a identificação de fatos fundamentais que orbitavam a matéria, mas que, certamente, seriam desconsiderados se fossem adotados métodos conservadores de interpretação da norma.

A posição assumida é uma amostra de que o Judiciário está sensível as demandas sociais, embora de forma tímida. Por outro lado, é imperioso destacar que isso só foi possível graças à constante mobilização popular, a exemplo do que faz o MST, em prol de direitos que assegurem ao cidadão viver com mais dignidade.

Posto isso, torna-se oportuno finalizar a discussão, lembrando das palavras de Ihering[168]:

Todo direito que existe no mundo foi alcançado através da luta, seus postulados mais importantes tiveram de ser conquistados em um embate contra as legiões de opositores, todo e qualquer direito, seja o direito de um povo, seja o direito do indivíduo, só se afirma através de uma disposição ininterrupta para a luta. O direito não é uma simples idéia, é uma força viva. Por isso a justiça sustém em uma das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio do qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que a manipula.

Com esse espírito, o MST procura ser um sujeito ativo e influenciador da produção jurídica nacional, reivindicando, do Estado, o reconhecimento de direitos ou exigindo a efetivação dos que já foram positivados.

Outro acórdão de enorme relevância para este trabalho é o julgamento do Mandado de Segurança nº 24.764-9/DF pelo Supremo Tribunal Federal. Segue a ementa, in verbis[169]:

Mandado de Segurança. 2. Desapropriação para fins de reforma agrária. 3. Os recursos administrativos, sem efeito suspensivo, não impedem a edição do decreto de declaração de utilidade pública (Lei 9.794/99, art. 61). Precedente: MS nº 24.163, DJ de 19.9.2003. Inocorrência de ofensa ao princípio do contraditório e da ampla defesa. 4.  Vistorias parceladas. Admissibilidade. Glebas exploradas autonomamente por arrendatários distintos. 5. Configuração de plausibilidade da impetração de modo a obstar medidas tendentes a dificultar a própria produtividade do imóvel, especialmente se, como no caso, a invasão ocorre em áreas onde haja água, passagem ou caminhos. 6. Ocupação pelos “sem-terra” de fração que, embora diminuta, é representativa para a administração da propriedade denominada Engenho Dependência. Superação da Jurisprudência do STF firmada no MS nº 23.054-PB, DJ de 4.5.2001 e MS nº 23.857-MS, DJ de 13.6.2003, segundo a qual, a ínfima extensão da área invadida, não justifica a improdutividade de imóvel. 7. Mandado de Segurança parcialmente deferido.

O caso referido, diz respeito a um Mandado de Segurança impetrado pela Companhia Brasileira de Equipamentos – CBE contra o Decreto do Presidente da República que declarou de interesse social, para fins de reforma agrária um imóvel rural de propriedade do autor.

Dentre os pontos abordados pelo Impetrante, destaca-se a tentativa de se beneficiar do texto inserido no § 6º, do art. 2º, da Lei nº 8.629/93, com alteração imposta pela Medida Provisória nº 2.183-56/2001, sob a alegação de que o imóvel rural foi objeto invasão motivada por conflitos agrários há menos de dois anos.

A antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assentada nos Mandados de Segurança nº 23.054-0/PB e nº 23.857-7/MS, estabelecia que a ocupação de pequena parte da propriedade rural não tinha força para impedir a vistoria, avaliação ou desapropriação do imóvel. Todavia, na oportunidade, prevaleceu o entendimento do Ministro Gilmar Mendes ao defender que a ocupação, ainda que atinja uma parte ínfima da imóvel rural, não pode ocorrer “em área onde haja água, passagens ou caminhos”, devido ao seu potencial lesivo à administração da propriedade.

No caso, foi superada a jurisprudência que reinava anteriormente, mas sem se distanciar por completo da sua inteligência. Continuou-se a mitigar os efeitos da Medida Provisória nº 2.183/2001, o que permite a continuidade das movimentações do MST, especialmente no que se refere às ocupações de terras ociosas.

Considerando que essas ações são o seu principal instrumento de pressão sobre o Poder Público, o afastamento da interpretação literal da norma adotado pelo Supremo Tribunal Federal é da maior importância, pois possibilita a busca por uma solução para o conflito ao mesmo tempo que se evita sufocar o movimento social.

Sobre o tema, aduz Renata Albernaz[170]:

Tal medida provisória, aliás, criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi “um chute no estômago” para o MST, haja vista que a ocupação é, justamente, sua principal forma de afirmação de direito à ações governamentais de reforma agrária e à de criação de assentamentos. E o judiciário tem aplicado sobejamente os dispositivos legais desta medida provisória quando de julgamentos envolvendo processos desapropriatórios, pois entende que, com tal limitação, o legislador quis evitar o prejuízo ao proprietário expropriado pela redução que macularia o preço de seu imóvel após a notícia da invasão e das depredações possíveis causadas na propriedade. Isto gerou uma enxurrada de defesas de proprietários de áreas ocupadas alegando tais dispositivos de lei para evitar medidas desapropriatórias. Diante desse contexto, que inclusive mataria pela raiz a possibilidade de luta dos movimentos sociais do campo, o Supremo Tribunal Federal interveio mitigando estas restrições [...].

Ronald Dworkin, genericamente, endossa a posição da Corte ao sustentar que o Estado tem como obrigação exteriorizar uma atitude conciliatória em relação aqueles que discordam da aplicação de determinada lei. Suas decisões devem ser flexíveis e tomadas de forma equilibrada sempre que forem compatíveis com outras políticas oficiais[171].

Observa-se, no acórdão em estudo, a necessidade de analisar as divergências com um lado pacificador. Os interesses em disputas devem ser ponderados pelo magistrado a fim alcançar os fins sociais e às exigências do bem comum, na forma apregoada por este trabalho.

Portanto, do estudo das duas decisões citadas acima, extrai-se pontos importantes na defesa de novo paradigma para a solução dos conflitos agrários. O magistrado deixa de ser um servo da lei e passa a ser um agente preocupado com os problemas da sociedade. Ademais, suas responsabilidades se ampliam, já que, na tarefa de procurar os melhores caminhos que levem Justiça, cabe a ele mover a lei de forma a conciliar os interesses dos excluídos e marginalizados, que são necessariamente a ampliação e efetivação de direitos, com o dos proprietários de imóveis rurais.

De igual sorte, deve ter a sensibilidade para assegurar o direito à terra, à vida, à moradia, ao trabalho, dentre outros direitos fundamentais, além de considerar, em suas decisões, a influência da dignidade da pessoa humana e do livre exercício da cidadania como fundamentos para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Deve ser, ainda, compreensivo diante das formas de atuação do MST, haja vista a insuficiência de mecanismos oficiais que garantam o atendimento de seus pleitos. Nesse sentido, a mobilização dos trabalhadores rurais sem terra torna-se uma via natural de luta por direitos devido à força transformadora que um movimento de massa tem sobre as estruturas conservadoras do Estado.

Em breve passagem, ensina Ihering que “a luta necessária ao nascimento do direito não é nenhuma maldição, mas uma benção[172]”. Assim, procurando conquistar direito e promover mudanças mais profundas na sociedade, o MST contribui para a saúde da democracia brasileira, algo que, dentro da razoabilidade, merece um olhar especial.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARANHA, Hialey Carvalho. A ocupação das propriedades rurais improdutivas:: análise das ações de ocupação dos trabalhadores rurais sem terra e a questão agrária no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3731, 18 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25323. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!