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Processos éticos questionados no Poder Judiciário:

Parte I - Análise das decisões em processos éticos julgados por conselhos de classe das profissões da área da saúde

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Inobservância das Normas Previstas nos Códigos de Processo Ético

Os conselhos desempenham, por delegação, funções tipicamente estatais. Na condição de administradores devem reconhecer e seguir os princípios do direito administrativo. Na condição de julgadores devem se ater ao Código Ético e de Processo das profissões. No caso, processo diz respeito ao conjunto de atos coordenados para a obtenção de uma decisão 15. 

As normas previstas nos Códigos de Ética e de Processo Ético devem ser estritamente seguidas, pois se trata de poder-dever de punir o profissional nos exatos termos da legislação. O Princípio do Devido Processo Legal é o núcleo material comum de todas as garantias relacionadas à efetividade e à justiça, não apenas aos processos judiciais, mas também dos administrativos, pois sustenta a aplicação das garantias constitucionais processuais ao processo administrativo 19.

Várias decisões judiciais sugerem que é recorrente a falta de observância pelos conselhos de fiscalização, das normas previstas em seus próprios Códigos (Quadros 7 a 10):

Quadro 7 – Decisão julgada em desfavor dos Conselhos Regional de Medicina do Distrito Federal.

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONSELHO PROFISSIONAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. NULIDADE. CÓDIGO DE PROCESSO ÉTICO-PROFISSIONAL. PEDIDO PROCEDENTE. APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL NÃO PROVIDAS. 1. Nos termos do artigo 3º, § 2º, do Código de Processo Ético-Profissional, em se tratando de possível violação de ética profissional, deve o Presidente do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, ao tomar conhecimento do fato, designar um Conselheiro para emitir parecer, no prazo de 5 (cinco) dias, e, posteriormente submeter o assunto à deliberação do Plenário. 2. In casu, considerando que o próprio Presidente do Conselho Profissional emitiu o parecer indiciando o apelado, restou violada a regra do artigo 3º, § 2º, do Código de Processo Ético-Profissional, devendo ser reconhecida a nulidade do processo administrativo que culminou na pena de censura pública em publicação oficial ao autor. 3. Apelação e remessa oficial não providas.” [5]

Quadro 8 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal.

“PROCESSUAL CIVIL. PROCESSO CAUTELAR. CONSELHO PROFISSIONAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE CENSURA PÚBLICA EM PUBLICAÇÃO OFICIAL. FUMUS BONI JURIS E PERICULUM IN MORA. REQUISITOS PRESENTES. PEDIDO PROCEDENTE. APELAÇÃO NÃO CONHECIDA: RAZÕES DISSOCIADAS. REMESSA OFICIAL NÃO PROVIDA. 1. Não se conhece de recurso de apelação interposto com razões totalmente dissociadas da fundamentação da sentença. 2. Considerando que o indeferimento do pedido cautelar poderá acarretar o cumprimento imediato de pena de censura pública em publicação oficial aplicada em processo administrativo ético-profissional pelo Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (Processo 98/87), revela-se patente o requisito do periculum in mora. 3. Também se verifica o fumus boni juris no fato de o próprio Presidente do Conselho Profissional ter emitido parecer indiciando o apelado, em contrariedade à regra do artigo 3º, § 2º, do Código de Processo Ético-Profissional. 4. Presentes os requisitos autorizadores da medida, é de se manter a sentença que julgou procedente o pedido cautelar. 5. Apelação não conhecida. Remessa oficial não provida.” [6]  

Quadro 9 – Decisão julgada em desfavor do Conselho de Farmácia.

“ PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO PROFISSIONAL. PROCESSO ÉTICO DISCIPLINAR. RELATÓRIO FINAL. IRREGULARIDADES. REGULAMENTO DO PROCESSO DISCIPLINAR DA PROFISSÃO FARMACÊUTICA. DESCUMPRIMENTO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. 1. Constatada a violação ao princípio do devido processo legal, frente a inobservância aos ditames da Lei 3.820/1960 e ao Regulamento do Processo Disciplinar da Profissão Farmacêutica. 2. Apelação e remessa oficial a que se nega provimento.” [7]

Quadro 10 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Medicina.

“ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA. INVESTIGAÇÃO ÉTICA- PROFISIONAL. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NÃO OBSERVADO INTEGRALMENTE. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. O princípio da ampla defesa ínsito no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, pressupõe a intimação do indiciado em processo ético-profissional para todos os atos atinentes à investigação. Confessado pelo próprio Conselho impetrado que pelo menos em um deles, de alta relevância, não foi dado conhecimento prévio ao médico investigado, procede o pedido exordial para que seja judicialmente determinado, em caráter preventivo, a estrita observância do devido processo legal. 2. Remessa oficial desprovida.”[8]

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Carvalho Filho 4 observou que em todo processo administrativo devem ser respeitadas as normas legais que o regulam e que a amplitude deste princípio dá margem à interpretação de que tem ele estreita conexão com o Princípio da Legalidade, deste modo se pode inferir que somente é legítima a atuação do administrador se esta for lastreada em lei.


Quebra do Sigilo dos Processos Éticos

A Constituição Federal, no seu artigo 37, prevê expressamente que a administração pública deve observar o Princípio da Publicidade. Este diz respeito à obrigação de levar ao conhecimento de todos os seus atos, contratos ou instrumentos jurídicos. O objetivo é dar transparência e conferir a possibilidade de qualquer pessoa questionar e controlar a atividade administrativa para que esta represente o interesse público, por isso, não se justifica, via de regra, o sigilo. Entretanto este princípio pode ser relativizado quando o interesse público ou a segurança o justifiquem15. A própria CF/88 prevê exceções no seu artigo 5º quando determina que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

Nos processos éticos o sigilo confere a intenção de preservar a identidade do profissional até que este seja julgado, permitindo acesso aos autos apenas aos interessados (réu e denunciante), conforme estatui o Código de Processo Ético da Profissão Farmacêutica no seu artigo 2º “A competência disciplinar é do Conselho Regional de Farmácia (CRF) em que o faltoso estiver inscrito ao tempo do fato punível em que incorreu, devendo o processo ser instaurado, instruído e julgado em caráter sigiloso, sendo permitida vista dos autos apenas às partes e aos procuradores, fornecendo-se cópias das peças requeridas”. A divulgação das informações processuais antes da decisão definitiva de mérito do processo revela atitude precipitada e lesiva à honra e à boa imagem do recorrente, a merecer imediata e justa reparação, conforme decisão contra este conselho (Quadro 11).

Quadro 11 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Farmácia.

“ADMINISTRATIVO E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DO ESTADO DE SERGIPE. PROCESSO ÉTICO-DISCIPLINAR. DECISÃO CONDENATÓRIA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. AMPLA DIVULGAÇÃO. RECURSO COM EFEITO SUSPENSIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. LESÃO À HONRA CONFIGURADA. 1. Discute-se, na hipótese, se o Conselho Regional de Farmácia do Estado de Sergipe, ao divulgar, por meios não oficiais, decisão condenatória em processo ético-disciplinar, quando sujeita a questão a reexame em recurso dotado de efeito suspensivo, deve, ou não, ser condenado ao ressarcimento dos prejuízos morais experimentados pelo autor da ação. 2. As decisões administrativas, incluindo as deliberações tomadas pelos Conselhos de Fiscalização Profissional, devem ser regularmente publicadas em Diário Oficial, meio ordinário de publicidade das questões de interesse do Poder Público. 3. Embora o recurso com efeito suspensivo não impeça seja publicada a decisão recorrida, na hipótese dos autos, não se limitou o recorrido à publicação oficial. A divulgação em meio de comunicação de massa, bem como a desnecessária utilização de ofício-circular, antes da decisão definitiva de mérito do processo, revelam atitude precipitada e lesiva à honra e à boa imagem do recorrente, a merecer imediata e justa reparação. 4. Recurso provido.”  [9]

O sigilo processual supera a situação de imperativo técnico na relação que os Conselhos mantêm com os profissionais; neste sentido, assume uma dimensão ética que fundamenta a própria relação. Resguardar a privacidade dos colegas de profissão significa proteger a classe e dar sentido à própria autarquia. Como guardião da ética, perde o sentido da existência aquele conselho que não a respeita.


Cerceamento da Ampla Defesa e do Contraditório

De acordo com o artigo 5º da Constituição Federal 3 “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

Novelino 19 definiu o contraditório como a ciência dos atos processuais com a possibilidade de contrariá-los. Deve ser composto por dois elementos: informação e reação. Para o autor, a ampla defesa decorre do contraditório, admitindo a utilização de todos os meios legais e admitidos.

Sobre o assunto, Cione e Silva 5 sustentaram que o processo é o meio prático para ser deduzida uma pretensão de natureza pública ou privada que se desenvolverá por meio de atos lógicos e coordenados, formando o devido processo legal. O indispensável na tramitação processual como garantia da efetividade e correta aplicação da Lei, esteia-se no contraditório e na ampla defesa.

Com base na lei e na doutrina, é possível inferir que aos profissionais envolvidos em processos éticos devem ser concedido o direito do contraditório e da ampla defesa, de modo que possam trazer os dados necessários à sustentação de sua defesa, além da possibilidade de recurso em caso de decisão desfavorável. Deste modo, o indeferimento de provas só se justifica no caso de repetição ou impertinência destas para o deslinde da questão. Neste caso, a decisão de indeferimento deve ser motivada e justificada. O cerceamento da defesa do profissional pode gerar a nulidade do processo, conforme se denota dos julgados apresentados nos quadros 12 à 16.

Quadro 12 – Decisão julgada em desfavor o Conselho Regional de Medicina Veterinária.

“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. REMESSA OFICIAL. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA/GO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. I - Ao Conselho Regional de Medicina Veterinária cabe a fiscalização do exercício da profissão do médico veterinário, consoante determina o artigo 7º da Lei nº 5.517/68. II - Nulo é o processo ético profissional instaurado pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária ante o cerceamento de defesa do impetrante. III - Remessa oficial não provida.” [10]

Quadro 13 – Decisão julgada em desfavor o Conselho Regional de Medicina.

“ADMINISTRATIVO. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. INVESTIGAÇÃO ÉTICO-PROFISSIONAL.PRINCÍPIO DO AMPLO CONTRADITÓRIO. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. I - Afigura-se nulo o procedimento recursal, em que não se assegurou ao recorrido o direito constitucional de contraditório, como previsto no art . 66 do Código de Processo Ético-Profissional, e na forma estabelecida pela Constituição da República (CF, artigo 5º, incisos LIV e LV). II - Apelação e remessa oficial desprovidas. Sentença confirmada” [11]

Quadro 14 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Medicina.

“ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA. INVESTIGAÇÃO ÉTICA- PROFISIONAL. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NÃO OBSERVADO INTEGRALMENTE. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. O princípio da ampla defesa ínsito no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, pressupõe a intimação do indiciado em processo ético-profissional para todos os atos atinentes à investigação. Confessado pelo próprio Conselho impetrado que pelo menos em um deles, de alta relevância, não foi dado conhecimento prévio ao médico investigado, procede o pedido exordial para que seja judicialmente determinado, em caráter preventivo, a estrita observância do devido processo legal. 2. Remessa oficial desprovida.” [12]

Quadro 15 – Decisão julgada em desfavor do Conselho Regional de Odontologia.

“ADMINISTRATIVO. CONSELHOS PROFISSIONAIS. PROCESSO ADMINISTRATIVO POR INFRAÇÃO A NORMAS ÉTICAS. DEVIDOPROCESSO LEGAL. OBSERVÂNCIA. NECESSIDADE. 1. Mantida a sentença que concedeu a segurança para anular o processo administrativo no qual a citação não veio acompanhada de cópia da denúncia ou representação, pois se trata de medida expressamente exigida pelo Código de Processo Ético Odontológico, artigo 9º, e cuja ausência dificulta a defesa, restando desobedecido o princípio constitucional do devido processo legal, aplicável também aos processos administrativos. 2. Apelação e remessa oficial improvidas.” [13]

Quadro 16 – Decisão julgada em desfavor o Conselho Regional de Odontologia.

“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO REGIONAL DE ODONTOLOGIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. ANULAÇÃO DO INQUERITO ADMINISTRATIVO. 1. reforce a competência do judiciário o exame dos motivos considerados pela administração para efeito de instaurar processo administrativo a fim de verificar a existência de falta disciplinar. 2. caracterizada a ilegalidade do procedimento, pelo cerceamento de defesa, e de ser decretada a sua anulação. 3. recurso provido.” [14]

Dentre os poderes que tem a Administração, um deles é o poder disciplinar, que consiste na faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. Devido à discricionariedade conferida ao administrador, que pode, dentre as penalidades previstas em lei, aplicar a sanção que se afigurar conveniente e oportuna (uma certa falta não implica numa sanção específica, mas em uma das sanções previstas) se faz necessário o contra-peso, facultando ao infrator o contraditório, a ampla defesa e o devido processo, só assim esse princípio estará resguardado, cabendo ao administrador legislador não olvidá-lo 14.

Sobre os autores
Giorgia Bach Malacarne

Advogada. Especialista em Processo Civil. Atuação em processos da área da saúde. contato: advocacia@praticaclinica.com.br

Alcion Alves Silva

- Doutor em Odontologia - Coordenador do Grupo Prática Clínica de pesquisa e direito biomédico - Autor da obra Prática Clínica Baseada em Evidências - Diretor Adjunto da QPS Empreendedorismo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALACARNE, Giorgia Bach; SILVA, Alcion Alves. Processos éticos questionados no Poder Judiciário:: Parte I - Análise das decisões em processos éticos julgados por conselhos de classe das profissões da área da saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3778, 4 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25659. Acesso em: 23 dez. 2024.

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