Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Barriga de aluguel: legalizar?

Exibindo página 1 de 2

A “barriga de aluguel” deve ser legalizada e regulamentada na forma de lei, tendo como base a Resolução 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina.

Sumário: Introdução; 1 Reprodução Humana Assistida; 2 Barriga de Aluguel no Ordenamento Jurídico Brasileiro; 3 A “Barriga De Aluguel” E A Legislação Internacional: Europa, Estados Unidos E Índia; 4 Filiação Na Reprodução Humana Assistida: Quem São Os Pais Biológicos E Quem São Os Pais Legais?; 4.1 Filiação Na Reprodução Humana Heteróloga; 4.2 Filiação Na Reprodução Humana Homóloga; 4.3 Filiação Decorrente Da Gestação De Substituição: Barriga De Aluguel; Considerações Finais; Referências Bibliográficas.

Resumo: O presente tema é atual e relevante pois a evolução da ciência genética não vem sendo acompanhada pela produção jurídica, deixando lacunas legais que são preenchidas por resoluções e regras específicas de cada órgão, como é o caso do Conselho Federal de Medicina sobre a Reprodução Assistida na resolução nº 2.013/13. Com objetivo de demonstrar essas disparidades e a necessidade de criação de normas jurídicas, realizou-se um estudo das técnicas mais utilizadas de reprodução assistida e discutiu-se sobre os temas onde a legislação é omissa, como a filiação, registro da criança havida da R.A. e a utilização do útero de substituição ou popularmente conhecida como barriga de aluguel. Por fim, o presente trabalho visa demonstrar que é legitimo o uso do útero de substituição bem como entender se é possível e aceitável a remuneração do útero de substituição. Utilizando-se para tanto, o método indutivo através da pesquisa bibliográfica.

 

Palavras-chave: Reprodução Assistida; Barriga de Aluguel; Filiação.


INTRODUÇÃO

O presente tema é atual e seu estudo de relevante importância, devido ao progresso da ciência e das técnicas acontecerem de modo tão rápido e inovador que o que era impossível ontem é hoje realidade. Porém amanhã poderá estar ultrapassado, impondo ao Ordenamento Jurídico a mesma rapidez no progresso e na normatização de dispositivos suficientes à regulamentar tais mudanças.

Desenvolvido pelo método indutivo[1] através da pesquisa bibliográfica, o presente estudo possui como objetivo principal destacar os pontos principais da legislação vigente sobre o útero de substituição, bem como os pontos nos quais a legislação é omissa.

No tocante a reprodução humana, o mais extraordinário acontecimento da vida, o nascimento, que para alguns casais antes era impossível devido a problemas médicos dos mais diversos, hoje já pode ser realizado por incontáveis técnicas, entre eles a gestação por substituição, que ocorre pelos mais variados métodos.

Essa alternativa traz muitas dúvidas e desafios ao legislador, e nesse ponto apresenta-se as formas mais comuns de reprodução assistida, bem como os conflitos éticos e de legislação a ela inerentes, como a remuneração da mulher que cedeu o útero.

No caso de inseminação artificial homóloga ou heteróloga, durante o casamento ou união estável, o Código Civil regulamenta a questão e não deixa margem a dúvidas sobre a paternidade ou maternidade. Todavia, tal legislação é totalmente lacunosa no que tange à reprodução se ausente o casamento ou a convivência, ou ainda,  em casos de casais homoafetivos, fato que já esta regulado pela Resolução CFM nº 2.013/13.

O lapso legislativo ocorre também, no caso da utilização de útero alheio para produzir filho próprio, fenômeno que atualmente é regulamentado pela Resolução 2.013/13 do Conselho Federal de Medicina, todavia, insuficiente para resolver outros temas pertinentes ao útero de substituição como a gestação por outra pessoa além do segundo grau de parentesco ou sem parentesco algum.

É por esses motivos que torna-se cada vez mais urgente a regulamentação legal do útero de substituição, por normas que tratem mais severamente as possíveis infrações legais e que regulamente igualmente todas as situações primando pelo principio fundamental da isonomia presente no nosso instituto jurídico.


1 REPRODUÇÃO HUMANA  ASSISTIDA

Popularmente conhecida como barriga de aluguel, devido ao seu caráter remunerado em alguns países pioneiros, a reprodução humanamente assistida através de um útero de substituição, segundo o médico Arnaldo Schizzi Cambiaghi[2], consiste em uma “[…]doação temporária de um útero para uma mulher que não possa engravidar”.

 Tal procedimento é permitido nos casos em que a mulher, não pode engravidar sem que ocorra risco à sua vida, ou nas situações onde não consegue engravidar por algum problema clínico, sendo primordial em ambos os casos um parecer médico.

Com a chegada deste procedimento ao Brasil em 1984[3], muitas mulheres puderam realizar o sonho de ser mãe, como é o caso da funcionária pública Fernanda Medeiros, de 34 anos, que teve suas filhas gêmeas geradas no útero da avó materna, pois aos 13 anos Fernanda teve de retirar o útero, devido a problemas médicos, e, aos 20 anos quando casou-se teve frustrada a tentativa de adotar uma criança[4].

Assim como no caso da servidora, muitas mulheres passam a vida toda acalentando o sonho de ser mãe, pois “[…]antropologicamente, a filiação está na ordem da transmissão. Transmite-se algo a alguém; em geral, ao filho comunicam-se posses, direitos, tradição, status. A vontade de transmitir é o motor do desejo do filho[5]”.

 São conhecidas várias técnicas de fecundação assistida, baseadas fundamentalmente na possibilidade de introduzir espermatozóides, óvulos ou embriões (óvulos já fecundados in vitro) no útero da futura mãe. As mais comuns são: fecundação homóloga[6] e a fecundação heteróloga[7] onde o material genético masculino pode pertencer ao marido ou não. Além dessas, existem outras técnicas conhecidas pela medicina, embora pouco utilizadas, a exemplo da inseminação intrauterina, transferência de ovócitos para a trompa proximal e transferência intratubária do zigoto[8], podendo todas elas serem utilizadas para a realização da barriga de aluguel[9], como será analisada mais adiante.

Esses procedimentos devem ser feitos sempre em clínicas autorizadas pelos respectivos conselhos regionais de medicina. O site da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida conta com o cadastro de 22 clínicas em todo Brasil, todavia já existiam 170 centros brasileiros de medicina reprodutiva desde 2008[10], esse número com certeza cresce a cada ano, impossibilitando a quantificação exata hoje. Todavia, também em 2008, 10% desses laboratórios já contavam com cadastro de mulheres dispostas a locar o útero, e receber por isso.

Para comunidade leiga, é justamente a questão financeira entre as “mães”, que desdobra-se em inúmeras críticas a barriga de aluguel, como bem demonstra a reportagem publicada no jornal americano The New York Times, pela escritora e jornalista Alex Kuczynski, na qual a escritora deixa nítido tanto as diferenças estruturais entre a mulher com útero de substituição e a mãe autora[11].

Para Leocir Pessini, na visão da bioética[12], esta prática além de imoral é ilícita, pois leva à “coisificação” dos ser humano. Contudo, antes de decidir se a “barriga de aluguel” é certo ou errado, ou se é algo ético ou não, precisa-se conhecer a legislação nacional sobre o assunto e como este procedimento é regulado.


2 A BARRIGA DE ALUGUEL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Devido a crescente procura e ao avanço das técnicas de reprodução humana assistida –RA, aumentou também a urgência de normas legais que a regulem no Ordenamento Jurídico brasileiro. Atualmente esses procedimentos são geridos somente pela resolução CFM Nº 2.013/2013. Publicada no D.O.U. de 09 de maio de 2013, Seção I, p. 119[13].

Obrigatoriamente aplicada nos casos de reprodução humana medicamente assistida, tal resolução prevê que nos casos de gestação com útero de substituição ou “barriga de aluguel”, só será permitida onde exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética, bem como limitam a idade da candidata à gestação em 50 anos e obriga a produção do termo de consentimento informado[14] em todos os casos.

As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética ou de seu parceiro, num parentesco até o quarto grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina[15], com precedentes apenas no Estado de São Paulo e Minas Gerais. Há de ressaltar que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

A resolução também já permite a utilização da técnica de reprodução assistida para pessoa solteiras e para casais homoafetivos, por força das decisões do Superior Tribunal Federal, que reconheceu e qualificou como entidade familiar a união estável homoafetiva[16].

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Tal resolução não possui poder de Lei, sendo apenas um parâmetro a ser seguido, o que permite a prática ilegal da barriga de aluguel nas suas mais variadas formas. No âmbito do direito penal, encaixa-se a barriga de aluguel na Lei n° 9.434/97[17] que estabelece em seu art. 15 que comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano é crime punido com a pena de reclusão de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias, e, ainda incorre na mesma pena quem promove, intermedia, facilita ou aufere qualquer vantagem na transação.

Sobre a legislação que regula a R.A., é valido destacar que existe o projeto de Lei n° 90, de 1999, de autoria do Senador Lucio Alcântra, que dispõe sobre a procriação medicamente assistida, regulando tanto clínicas, qualificação do profissional médico, do consentimento prévio e todos os demais atos necessários para que aconteça a reprodução humana assistida[18].

O projeto citado além de regulamentar a prática da R.A., trás a tipificação de atos relacionados com essa prática, por exemplo, em seu artigo 26, determina que é proibido participar da prática de útero ou barriga de aluguel, na condição de beneficiário, intermediário ou executor da técnica, concedendo a pena de reclusão de um a três anos, e multa.

O art. 37 do mesmo projeto determina que realizar a procriação medicamente assistida em pessoas que não sejam casadas ou não vivam em união estável, é crime e deve ser punido com pena de detenção de seis meses a dois anos, ou multa. Incorrendo na mesma, homem ou mulher que solicitar o emprego da técnica para dela usufruir individualmente ou com outrem que não o seu cônjuge ou companheiro.

As disposições acima citadas foram feitas em 2001, quando o então projeto sofreu algumas modificações. Mesmo assim, devido a crescente evolução cientifica e a mutação social, tal projeto de Lei, arquivado na câmara dos deputados desde 2007, necessitará de muitas modificações até sua eventual aprovação.

Dessa forma ainda continuará o Brasil, sabe-se lá até quando, sem regulamentação legal para as mais diferentes formas de reprodução humana assistida. Todavia, mesmo em países que já regulamentaram a reprodução assistida e a “barriga de aluguel”, ainda persiste infindáveis discussões sobre o assunto.


3 A “BARRIGA DE ALUGUEL” E A LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL: EUROPA, ESTADOS UNIDOS E ÍNDIA

A normas legais e morais sobre a “barriga de aluguel” variam de país para país, e em alguns casos de estado para estado. A exemplo dos Estados Unidos da América, composto por cinquenta estados, e onde doze deles condenam e não permitem a prática da barriga de aluguel. Os demais analisam caso por caso, assim enquanto que na Califórnia e na Flórida o método é comumente usado e aceito, em Nova York e Michigan, é proibido a barriga de aluguel, deixando nítida disparidade de conceitos a respeito do tema[19].

Quanto a legislação, neste país, o processo para se chegar a barriga de aluguel ocorre da seguinte forma na maioria dos casos: é firmado um acordo, intermediado por um advogado, que elabora um contrato o qual deve obrigatoriamente conter especificações sobre, a guarda do filho ou filhos e relações parentais, os métodos de pagamento para a mãe de aluguel, garantias médicas, avaliações físicas e psicológicas dos pais e da mãe de aluguel, e a possível redução seletiva de nascimentos múltiplos. E ao fim o advogado deve explicar em detalhes os possíveis riscos legais e incertezas decorrentes da matéria objeto do contrato, bem como as consequências graves possíveis que resultariam de uma violação material do acordo pelas partes[20].

Assim como os E.U.A. toleram a prática da “barriga de aluguel”, sob certas condições, outros Estados também já o permitem, a Hungria é um deles, lá é permitido o empréstimo de útero somente entre parentes assim como no Brasil, nos termos já citados.

Porém em grande parte da Europa, a “barriga de aluguel” é amplamente criticada e proibida, entre os principais países contrários sobre o tema contam-se, Espanha, Itália, Portugal, Alemanha e França, embora esta última tenha recentemente facilitado a obtenção da nacionalidade para as crianças nascidas de barriga de aluguel fora do país[21] e autorizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo[22], o que demonstra crescente evolução social em relação a estes assuntos tão polêmicos.

Todavia, a surpresa surge na Inglaterra. Pois apesar do tradicionalismo característico daquele país, a pratica da “barriga de aluguel” é permitida, tanto entre parentes, quanto não parentes.

Devido a proibição e condições impostas em cada país, casais procedentes da Europa, Estados Unidos e até mesmo Brasil, tem procurado a Índia, mais precisamente Anand, conhecida hoje como a capital da barriga de aluguel[23]. A legislação indiana permite não só o aluguel do útero como também a remuneração por este “serviço”, a única proibição imposta até pouco tempo era a geração de crianças para casais homoafetivos[24].

Segundo a reportagem publicada no Jornal Folha de São Paulo, a Índia possui hoje cerca de 1.500, clinicas de reprodução assistida, que movimentam cerca de US$ 2 bilhões de dólares por ano. O aluguel do útero nestas clinicas custam em média US$ 20 mil dólares, valor que é dividido entre a clinica e a mãe de aluguel[25].

Mas o que deve ser primordialmente observado é que apesar dos aspectos legais variantes, o que leva casais heterossexuais ou homoafetivos à buscar essas clinicas e o método de inseminação e reprodução assistida é a vontade de ter um filho.

Contudo, é após o nascimento da criança que surgem os maiores problemas legais, pois teremos a mãe de aluguel que foi quem gerou a criança e o pais que concederam o material genético. Quem poderá registrar essa criança? Qual nacionalidade ela terá, se nascer na índia, mas tiver sido concebida com o material genético de pais brasileiros? A solução para questões como estas serão encontradas no próximo item que trata da filiação e do registro das crianças nascidas pela reprodução humana assistida.


4 FILIAÇÃO NA REPRODUÇÂO HUMANA ASSITIDA: QUEM SÃO OS PAIS BIOLÓGICOS E QUEM SÃO OS PAIS LEGAIS?

Segundo Maria Helena Diniz filiação é o vínculo existente entre os pais e filhos, podendo ainda ser uma relação socioafetiva entre pai adotivo e institucional e filho adotado ou advindo de inseminação artificial heteróloga[26], ou seja, a filiação biológica hoje não detém a supremacia sobre a filiação afetiva, como bem salienta Julie Cristina Delenski:

Nada mais autêntico do que reconhecer como pai quem age como pai, que dá afeto, quem assegura proteção e garante a sobrevivência. Imperiosa encontrar novos referenciais, pois não mais se pode buscar na verdade jurídica ou na realidade biológica a identificação dos vínculos familiares. A paternidade não é só um ato físico, mas principalmente, um fato de opção, extrapolando os aspectos meramente biológicos, ou presumidamente biológicos, para adentrar com força e veemência na área afetiva[27].

A questão da afetividade e da posse do estado de filho passa a ser primordial no estabelecimento da filiação e de seus consequentes direitos e obrigações, basta mencionar a adoção e a fecundação heteróloga como explica Maria Berenice Dias:

A identificação dos vínculos de parentalidade não pode mais se buscar exclusivamente no campo genético, pois situações fáticas idênticas ensejam soluções substancialmente diferentes. As facilidades que os métodos de reprodução assistida trouxeram permitem a qualquer um realizar o sonho de ter um filho. Para isso não precisa ser casado, ter um par ou mesmo manter uma relação sexual. Assim, não há como identificar o pai com o cedente do espermatozoide. Também não dá para dizer se a mãe é a que doa o óvulo, a que cede o útero ou aquela que faz uso do óvulo de uma mulher e do útero de outra para gestar um filho, sem fazer parte do processo procriativo. Submetendo-se a mulher a qualquer desses procedimentos torna-se mãe, o que acaba com a presunção de que a maternidade é sempre certa[28].

Assim o parentesco psicológico prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal[29], na tentativa de regulamentar tais relações advindas da R.A. o legislador, embora ainda de forma insuficiente, trata dessas questões no art. 1597 do Código Civil:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

 Como pode ser observado, tal dispositivo prevê que são filhos presumidos aqueles nascidos de inseminação artificial homóloga ou heteróloga na constância do casamento, muito embora atualmente por força do art. 226[30] da Constituição da república federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, tais regras também podem ser aplicadas à união estável e aos casais homossexuais que já podem contrair matrimônio civil[31].

4.1 Filiação na reprodução humana heteróloga

Quanto a filiação heteróloga, esta é realizada com o esperma de um doador fértil, vezes estranho ao casal. Neste caso a paternidade é presumida uma vez que nem sempre é o marido que doa. Mas por estar unido em matrimônio presumisse que o filho da mulher casada foi gerado por seu marido, em todo caso somente existe esta possibilidade se o marido consentiu a prática, como disciplina o art. 1.597 do Código Civil.

As questões levantadas após a leitura do art. 1.597, inciso V, surge o entendimento de que a presunção presente neste dispositivo visa instaurar a vontade procriacional no marido, como meio de impedi-lo de desconhecer a paternidade do filho voluntariamente assumido ao autorizar a inseminação[32].

É nesse sentido que Guilherme C. Nogueira[33] afirma que o art. 1.597, V, gera a presunção juris et de jure  afim de impedir juridicamente que aquele que anuiu a inseminação, a impugnasse posteriormente, respeitando portanto o principio da paternidade responsável presente no art. 226, § 7° da CRFB/88.

Recente enunciado aprovado na VI Jornada de Direito Civil realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), em março, o enunciado n° 570[34], que segundo Otavio Luiz Rodrigues Junior, advogado da união que analisou a proposta, tal orientação tem por base uma pesquisa desenvolvida a respeito do tema e também considera a regra do artigo 226, da Constituição Federal, argumentando que:

É de se afirmar que as técnicas conceptivas são admissíveis em favor dos companheiros. Como não há presunção de paternidade do companheiro em relação ao filho de sua companheira – ainda que ele manifeste consentimento prévio à técnica de reprodução assistida heteróloga – é preciso identificar o mecanismo de estabelecimento do vínculo paterno-filial.

Na opinião de Otavio Luiz Rodrigues Junior, apesar de não ser propriamente um enunciado inovador, ele consolida um entendimento doutrinário e, por isso, dá mais segurança a quem dele necessitar em suas decisões[35].

Todavia outra questão é levantada, e se a filho advindo da inseminação artificial heteróloga com o consentimento do esposo, for fruto da infidelidade da mulher, segundo Holleaux[36] a anuência do marido somente poderá ser revogada até o momento da inseminação, após o ato, não poderá desconhecer a paternidade do filho de sua esposa.

Pois entre a verdade biológica e a verdade presumida deve-se dar abrigo àquela que melhor atender à dignidade humana, o direito da criança e o instituto da família[37], preservando-se a família em todas as maneiras possíveis.

4.2 Filiação na reprodução humana homóloga

De acordo com o art. 1.597, inciso III[38], do Código Civil vigente, considera-se filho do casal mesmo aquele concebido após a morte do marido.  Neste caso, o material genético pertence ao marido e a esposa motivo pelo qual não apresenta grandes discussões.

Pois se houve o consentimento livre e informado de ambas as partes para realização do procedimento, a lei lhes atribui a paternidade e a maternidade do filho assim gerado, havendo portanto, paridade entre a filiação biológica e a filiação jurídica.

O dispositivo em tela, portanto, atribui a paternidade dos filhos havidos por inseminação artificial homóloga ao marido ou companheiro, mesmo que o nascimento tenha ocorrido após o falecimento porque se o marido consentiu na realização da inseminação artificial com seu material genético aceitou a paternidade do filho, independentemente da época de sua concepção e de seu nascimento[39].

Do ponto de vista biológico, tais hipóteses não apresentam maiores indagações quanto à paternidade, já que o material utilizado pertence ao casal, de forma que o filho gerado será biologicamente filho do marido e da mulher, embora provoque discussões no âmbito do direito sucessório[40], considerando que o filho pode nascer e até mesmo ser concebido após a morte de seu genitor.

Contudo o direito de sucessões, no art. 1.784 do Código Civil põe a salvo somente o direito daqueles concebidos quando na abertura da sucessão, ou seja, somente terá direito à suceder aquele que já havia sido concebido quando ocorreu o falecimento, neste caso também o nascituro nos termos do art. 2° do Código Civil.

Art. 2°. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

[...]

Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

[...]

Art. 1.787. Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela.

[...]

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;

II - as pessoas jurídicas;

III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.

Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz.

[...]

§ 4º Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.

Todavia existe a possibilidade de ser comtemplado mediante testamento o filho fruto de uma reprodução assistida, quer homóloga, quer heteróloga, mesmo não concebido, contanto que nasça até dois anos após a abertura da sucessão conforme dispõe os artigos 1.799 e 1.800 supracitados.

4.3 Filiação decorrente da gestação de substituição: barriga de aluguel.

Diferente dos dois casos anteriormente apresentados, na gestação de substituição tanto a paternidade quanto a maternidade podem ser questionados, pois para muitos a verdadeira mãe é aquela que concebeu o bebê, e não quem forneceu o material genético. O mesmo acontece com o pai, pois se a lei diz que, presume-se pai o esposo da mulher que gerou e concebeu a criança, logo o pai será o marido daquela que carregou durante nove meses o feto.

Como pode ser observado a prática da gestação de substituição trouxe para o ordenamento jurídico do país mais um problema que ainda não possui norma que o regulamente, restando aos magistrados a resolução dos conflitos conforme os princípios do direito, a ética e a moral em cada caso concreto.

Assim, diante da ausência de regulamentação legislativa específica, e não se vislumbrando indício de ilegalidade a melhor solução para o caso coincide com o melhor interesse da criança e este consiste em se determinar a lavratura do assento de nascimento tornando por base a verdade biológica que, em muitos casos coincide com a verdade socioafetiva, da filiação[41].

Todavia, no projeto de Lei n° 90, de 1999[42], no capitulo que trata da filiação, dispõe em seu art. 19, que:

Art. 19 O doador e a genitora substituta, e seus parentes biológicos, não terão qualquer espécie de direito ou vínculo, quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa nascida a partir do emprego das técnicas de Procriação Medicamente Assistida, salvo os impedimentos matrimoniais.

E mesmo que ocorra a morte dos beneficiários segundo o art. 21, do mesmo projeto de lei, o pátrio poder dos pais biológicos não poderá ser restabelecido. Deste dispositivo surge mais uma dúvida, quem são os pais biológicos? Quem forneceu o óvulo e o esperma, ou quem gerou e carregou por nove meses o feto?

Para Elio Sgreccia, a luz da bioética, deveria ser registrada como “mãe” aquela de quem nasce a criança e não aquela que fornece o óvulo para a fecundação ou encomenda essa gestação, a menos que a mãe parturiente queira explicitamente não reconhecer a criança[43]. Compartilha do mesmo entendimento Kantrowitz, dizendo que tudo que se faz é transferir a dor de uma mulher para outra, de uma mulher que esta sofrendo com a sua infertilidade a uma que tem de desistir do seu bebê[44]. Infelizmente ou felizmente para aqueles que forneceram o material genético, a ciência jurídica não compartilha do mesmo entendimento.

Apesar da Lei n. 6.015/73, que rege os registros públicos, não contempla a hipótese de registro dos filhos pelos dos doadores genéticos[45], os juízes tem decidido por autorizar o registro pelos beneficiários, mediante pedido judicial para dirimir o conflito[46].

O juiz da comarca de Santa Helena de Goiás, Marcelo Lopes de Jesus, determinou que conste o nome dos pais biológicos nas declarações de nascidos vivos das gêmeas geradas no útero da avó, em Goiás. O documento é pré-requisito para que Júlia e Emanuele sejam registradas no Cartório de Registro Civil em nome deles.

A medida, divulgada pela assessoria do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) na tarde desta quinta-feira (10), foi concedida na última terça-feira (8), um dia antes das gêmeas deixarem a maternidade onde nasceram, em Goiânia.

“Biologicamente, as crianças nascidas desse evento são filhas dos autores e netas da doadora do útero, não tendo havido a doação do material genético, mas sim a doação temporária do útero, a gestação de substituição”, justificou o juiz na decisão.

O magistrado argumenta que a medida evita uma série de prejuízo às crianças, como a ausência do registro ou necessidade de posterior alteração dele, além da não inclusão das gêmeas no plano de saúde dos pais.

De acordo com a nota do TJ, o juiz respeitou todas as exigências da Resolução 1.957/2010 do Conselho Regional de Medicina e o artigo 227 da Constituição Federal, que determina que a proteção à criança e ao adolescente deverá ser feita com prioridade, garantindo, entre outras coisas, a convivência familiar.

Para a família, a decisão foi um alívio, pois evitou uma série de burocracias futuras. "Registramos as meninas hoje e já vou entrar com o pedido de licença maternidade e incluí-las no plano de saúde”, contou a mãe biológica das gêmeas, a funcionária pública Fernanda Medeiros, de 34 anos[47]. (Destacou-se).

No Brasil, por tramitarem em segredo de justiça é muito difícil ter acesso aos processos para registro do nome pelos pais beneficiários do útero de substituição, o pouco que se conhece é divulgado pela impressa, como ocorre com a notícia acima.

Como bem pode ser observado é permitido sim o registro do nascimento em nome dos pais biológicos, que são os que forneceram o material genético, fato que pode facilmente ser constatado através de um exame de DNA.

Após o julgamento do STF, na ADI 4.277[48] e ADPF 132[49], reconhecendo e qualificando a união estável homoafetiva como entidade familiar. O registro dos filhos havidos da R.A. ocorre igualmente para casais homoafetivos, com precedente na 1° vara de direito da família e registro civil da comarca de Recife, com sentença[50] que concedeu o direito à dois homens unidos por união estável há mais de quinze anos, recentemente convertida em casamento civil, para que registrassem em seus nomes a filha advinda de gestação de substituição, utilizando o material genético de um deles[51].

Todavia sempre surge o questionamento quanto às consequências psicológicas de uma criação onde há dois pais ou duas mães. Segundo pesquisa realizada pela American Psychological Association (APA):

“[...] não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de lésbicas teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças de pais heterossexuais. Realmente, as evidências sugerem que o ambiente promovido por pais homossexuais e lésbicas é tão favorável quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e habilitar o crescimento “psicológico das crianças”. A maioria das crianças em todos os estudos, funcionou bem intelectualmente e “não demonstrou comportamentos egodestrutivos prejudiciais à comunidade”. Os estudos também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais, autoestima, habilidade de liderança, egoconfiança, flexibilidade interpessoal, como também o geral bem-estar emocional das crianças que vivem com pais homossexuais não demonstravam diferenças daqueles encontrados com seus pais heterossexuais.[52]

Revela-se, igualmente importante a partir desta pesquisa, em verdade, destacar que mais prejudicados são aqueles menores submetidos a maus-tratos, abuso sexual, abandono ou alienação parental. Outrossim, o desejo de partilhar com uma criança o amor, o carinho e o cuidado, tem, ao revés, o condão de construir e de curar.

Portanto, observado tanto a decisão monocrática citada como precedente quanto a pesquisa destacada, o operador da justiça deve entender que não somente nos casos heterossexuais é possível o registro do menor e o reconhecimento da filiação, os casais homossexuais também são protegidos e lhes é assegurado tal direito.

Como fruto do novo entendimento da filiação com base na afetividade e não somente do parentesco consanguíneo direto. Demonstrando que o direito brasileiro apesar da demora, vem a cada dia mais, sendo regido pelos princípios e não mais somente pelo letra seca da lei que nem sempre atende as expectativas e a realidade fática.

Sobre os autores
Marisa Schmitt Siqueira Mendes

Mestranda do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, Linha de pesquisa Hermenêutica e Principiologia Constitucional; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES

Yury Augusto dos Santos Queiroz

Possui Graduação em direito pela Universidade do Vale do Itajaí –UNIVALI, campus Balneário Camboriú, colaborador do grupo de pesquisa e extensão PAIDEIA. (yury.queiroz@hotmail.com)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Marisa Schmitt Siqueira; QUEIROZ, Yury Augusto Santos. Barriga de aluguel: legalizar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3807, 3 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26030. Acesso em: 22 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!