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A omissão inconstitucional do Estado de Goiás em implementar a Defensoria Pública Estadual

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Agenda 13/12/2013 às 07:44

O artigo analisa a omissão do Estado de Goiás em implementar a Defensoria Pública sob a perspectiva do direito fundamental ao acesso à justiça, examinando a situação real da Instituição no Estado e as consequências da falta de acesso à justiça.

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, incisos II e III, dispõe que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em um Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

No artigo 3º, incisos I e III, a nossa Lei Maior estabelece dentre os objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, reduzindo-se as desigualdade sociais e regionais.

Mais adiante, nos artigos 5º, inciso LXXIV e 134, a Carta Republicana garante que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, incumbindo à Defensoria Pública, Instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação jurídica e a defesa dos necessitados, em todos os graus.

Não obstante tais direitos estarem positivados desde 05 de outubro de 1988, isto é, passados mais de 25 anos desde a promulgação de nossa Carta Constitucional, o Estado de Goiás ainda não conta com uma Defensoria Pública efetivamente implantada, com cargos de Defensores Públicos providos por profissionais aprovados em concurso próprio da Instituição, independentes e vocacionados para sua relevantíssima missão de promoção dos direitos humanos e da defesa, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral, aos cidadãos mais pobres.

Segundo o Mapa da Defensoria Pública no Brasil[2], publicado em março de 2013, pelo IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em parceria com a ANADEP – Associação Nacional dos Defensores Públicos, o Estado de Goiás conta com um déficit de 100% de defensores públicos para cada 10.000 pessoas com rendimento mensal de até três salários-mínimos, o que corresponde a um total aproximado de 39.497 cidadãos sem acesso à justiça, vale dizer, sem direitos de cidadania.

Portanto, mais de duas décadas após a promulgação de uma Constituição tida exatamente como “cidadã”, permanece para alguns analistas a sensação de que há, em nosso país, dois Brasis – um real e outro legal –, pois o ordenamento jurídico brasileiro seria condizente com as democracias mais avançadas, mas possuiria um significado mais simbólico do que efetivo (SADEK, 2005).

O Estado de Goiás, infelizmente, ratifica a existência desses dois Brasis, pois há uma Defensoria Pública estruturada somente no plano formal, com a Lei Complementar Estadual nº 51, de 19 de abril de 2005, e, no plano material, uma grave omissão em implantar e implementar uma real Defensoria Pública.

Nesse contexto, abordaremos de forma suscinta o direito fundamental ao acesso à justiça, verificaremos a situação atual da Defensoria Pública do Estado de Goiás, a condição dos necessitados em Goiás e a caracterização de uma omissão inconstitucional em efetivar o direito ao acesso à justiça por meio da criação da Defensoria Pública no estado.

No intuito de demonstrarmos a gravidade da omissão do Estado de Goiás em implementar uma Defensoria Pública conforme a Constituição da República, colacionaremos, ao final, quatro casos paradigmáticos que denunciam a ausência da Defensoria Pública em Goiás e sua urgente necessidade de implementação. Os casos referem-se à tutela de direitos como: (a) a vida da população em situação de rua; (b) a condição peculiar de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação; (c) o direito à saúde e (d) do direito ao acesso à justiça em si mesmo considerado, com o que entendermos ser um exemplo de negativa de acesso à justiça pela própria Defensoria Pública em Goiás.


2. Acesso à Justiça e Defensoria Pública

Segundo Maria Tereza Aina Sadek, o acesso à justiça é um dos direitos mais básicos da cidadania:

“É um direito fundamental, erigido à condição de cláusula pétrea pelo constituinte de 1987-8. A própria Constituição traz os instrumentos que asseguram o seu exercício, como a impossibilidade de excluir da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, a proteção da ampla defesa e do contraditório nos processos em geral e o dever estatal de prover a assistência juridical integral e gratuita aos necessitados.” (SADEK, 2013, p. 21)

Ainda segudo SADEK, o direito ao acesso à justiça não se confunde nem se limita ao ingresso no Poder Judiciário. Trata-se de direito muito mais abrangente, pois refere-se a uma pluralidade de direitos que inclui desde o reconhecimento de direitos até a ciência sobre as diferentes formas de reclamá-los e sobre as instituições encarregadas de garanti-los. Envolve, ainda, a resolução de problemas por diferentes meios, como o acordo, a arbitragem, a conciliação, a mediação, enfim, tanto a via judicial como as vias extrajudiciais. (SADEK, 2013, p. 21)

A fim de garantir o acesso à justiça, a Constituição Federal atribuiu à Defensoria Pública a tutela dos direitos fundamentais dos indivíduos e grupos sociais necessitados, cabendo aos estados implantar esta Instituição.

Nesse contexto, conforme assinala FENSTERSEIFER:

 “Ao criar a Defensoria Pública, além de proporcionar às pessoas necessitadas o acesso ao sistema de justiça, a Constituição Federal também demonstra o seu compromisso com a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), de modo a construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I).” (FENSTERSEIFER, 2012, p. 338)

Conforme refere Ana Paula de Barcellos, o direito ao acesso à justiça compõe o mínimo existencial necessário a uma vida digna, sendo um instrumento de realização dos demais direitos fundamentais que compõem o mínimo existencial, como saúde, educação, moradia, alimentação, assistência social, saneamento básico, qualidade ambiental, entre outros. (FENSTERSEIFER, 2012, p. 350)

Para BARCELLOS, em um Estado de Direito:

“não basta a consagração normativa: é preciso existir uma autoridade que seja capaz de impor coativamente a obediência aos commandos jurídicos” de modo que “dizer que o acesso à justiça é um dos componentes do núcleo da dignidade humana significa dizer que todas as pessoas devem ter acesso a tal autoridade: o Judiciário”. (BARCELLOS, 2008, p. 325)

No plano internacional, destaca-se que a Organização dos Estados Americanos (OEA) expediu a Resolução nº 2.656, afirmando que o “acesso à justiça, como direito fundamental, é, ao mesmo tempo, o meio que possibilita que se restabeleça o exercício dos direitos que tenham sido ignorados ou violados, bem como:

“a importância fundamental do serviço de assistência jurídica gratuita para a promoção e a proteção do direito ao acesso à justiça de todas as pessoas, em especial daquelas que se encontram em situação especial de vulnerabilidade.”

Além disso, a OEA reiterou a todos os Estados Membros que já contam com o serviço de assistência jurídica gratuita que adotem ações tendentes a que os defensores públicos oficiais gozem de independência, autonomia funcional, financeira e técnica, e incentivou “os Estados membros que ainda não disponham da instituição da defensoria pública que considerem a possibilidade de criá-la”.

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Desse modo, o Estado de Goiás vem privando os cidadãos necessitados de um dos mais básicos direitos de cidadania, uma vez que grande parcela da população não dispõe de um meio que possibilite que se restabeleça o exercício dos direitos previstos em nosso ordenamento jurídico, conforme abordaremos no próximo ponto.


3. Panorama real da Defensoria Pública do Estado de Goiás

Em Goiás, a Lei Complementar nº 51, de 19 de abril de 2005, criou e organizou a Defensoria Pública estadual, dispondo, em seu artigo 17, que o ingresso na carreira de Defensor Público dar-se-á em cargos da Terceira Categoria, mediante aprovação prévia em concurso de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Goiás.

No anexo único da Lei mencionada, referente ao artigo 41, fixou-se o quantitativo do quadro de pessoal da carreira de Defensor Público do Estado, com 60 defensores na Terceira Categoria, 40 defensores na Segunda Categoria e 30 na Primeira Categoria, perfazendo um total de 130 defensores públicos.

No mês de agosto de 2010, portanto, há mais de 5 (cinco) anos da promulgação da Lei Orgânica Estadual da Defensoria Pública do Estado de Goiás, foi publicado o edital do que deveria ser o primeiro concurso para provimento dos cargos de Defensores Públicos no Estado. A empresa responsável pela realização do certame foi o Instituto Cidades, contratada mediante dispensa de licitação, através do Contrato nº 17/2010, sob o argumento de que teria “inquestionável reputação ético-profissional”.

Ocorre que o Instituto Cidades já à época era alvo de investigações em diversas localidades no Brasil, a exemplo do ocorrido no Estado do Amazonas, em que o Ministério Público local ofereceu denúncia criminal contra referido Instituto em razão de fraude em concurso para defensor público, investigada pela Polícia Federal. O concurso público foi anulado depois que o Ministério Público encontrou provas com notas idênticas (80 pontos). Filhos de defensores públicos e de secretários municipais, além do irmão do superintendente regional do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), passaram no concurso com notas suspeitas.[3]

Outra denúncia contra o Instituto Cidades referia-se a um concurso no Município de São Luís do Curu, no Estado do Ceará, onde o Instituto responde por ato de improbidade administrativa em realização de concurso para o quadro permanente da prefeitura e cadastro de reserva. Neste caso, chegou a ocorrer o bloqueio judicial das contas do Instituto Cidades.

Sem a pretensão de esgotar todas as denúncias de fraude que pesam contra o Instituto Cidades, este também responde por denúncias referentes a certames realizados para a Junta Comercial do Ceará, bem como para os municípios de Luís Correia-PI, Santa Rita-PB, Natal-RN, Caucaia-CE e Bela Cruz, também no Ceará.

Destarte, por meio do Acórdão de nº 947 de 19 de abril de 2012, o Tribunal de Contas do Estado de Goiás, determinou a suspensão temporária do Concurso Público para Defensoria Pública de Goiás e a apuração das denúncias por meio de inspeção.

Outrossim, no dia 20 de abril de 2012, a juíza Suelenita Soares Correia, da 2ª Vara Fazenda Pública Estadual de Goiânia, concedeu liminar nos autos da Ação Declaratória nº 201201088180, suspendendo o concurso para o cargo de defensor público do Estado de Goiás. Entre os requisitos que justificaram a decisão, a magistrada apontou a não divulgação dos nomes dos componentes da banca examinadora.

Em julho de 2012, o procurador de Contas, Eduardo Luz Gonçalves, emitiu um parecer favorável à continuidade do certame, desde que fossem sanadas as supostas irregularidades, sugerindo ainda que fossem divulgados os nomes dos membros da banca examinadora e disponibilizados os recursos interpostos em relação às provas discursivas. No mês de setembro daquele ano, no entanto, a promotora de Justiça Fabiana Zamalloa do Prado recomendou à Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia a anulação do atual concurso e a deflagração de novo edital no prazo máximo de 60 dias.

No dia 26 de setembro de 2012, a Procuradoria Geral de Contas junto ao Tribunal de Contas de Goiás reiterou o seu parecer favorável a continuidade do concurso para Defensor Público no Estado. De acordo com o documento, “as irregularidades apontadas não devem servir per si de subsídio para paralisar o certame, mormente ao se levar em consideração o fato de este ser o primeiro concurso desta natureza, vale dizer, que a carreira de Defensor Público do Estado de Goiás ainda não foi implantada transcorridos quase 25 anos da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88.”

Em 15 de outubro de 2010, a Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP noticiou o envio de ofícios ao governador de Goiás, ao Ministério da Justiça, ao Procurador Geral da República, ao Ministério Público Federal em Goiás, ao Ministério Público Estadual, à OAB Nacional e à OAB Estadual denunciando irregularidades constitucionais no modelo de Defensoria Pública que vem sendo implantado em Goiás.[4]

De acordo com a ANADEP, a Lei Complementar nº 51/2005 que criou a Defensoria Pública em Goiás já havia sofrido duas alterações que desfiguravam o modelo nacional, estabelecido pela Lei Orgânica da Defensoria Pública (LC 80/94). Primeiro, a LC nº 61/2008 modificou a estrutura organizacional da Instituição. Em seguida, a LC nº84/2011 deu ao Governador do Estado o poder de nomear e exonerar qualquer advogado para o cargo de Defensor Público Geral, quando a Constituição Federal (art.134) estabelece que o cargo de chefe institucional deve ser privativo de integrantes de carreira.

Desta forma, antes mesmo que fosse concluído o concurso para a contratação de Defensores Públicos de carreira, foi nomeado o Defensor Público Geral interino João Paulo Brzezinski da Cunha, que, destaque-se, era advogado pessoal do Governador do Estado, Marconi Perillo, e criada uma estrutura de cargos comissionados, tanto na Administração Superior da Defensoria Pública de Goiás como na prestação dos serviços jurídicos à população, violando as normas que exigem concurso público e resultando na completa falta de autonomia funcional e  administrativa da Instituição, também definida na Constituição Federal.

Para agravar o quadro, a ANADEP recebeu vários documentos informando que o Defensor Público Geral interino e outros membros da Administração Superior estariam exercendo a advocacia em paralelo às atividades prestadas na Defensoria Pública, fato que é vedado pela Constituição Federal, pela lei estadual que criou a Defensoria em Goiás e pelo próprio Estatuto da OAB, que enfatiza que o exercício da advocacia é incompatível com atividades exercidas por ocupantes de cargos ou funções de direção em órgãos da Administração Pública direta ou indireta.

Segundo a ANADEP, a imprensa local havia divulgado a recente assinatura de um convênio da Defensoria Pública de Goiás com a OAB do Estado, para pagamento de honorários de advogado dativo no valor de R$ 23.712.314,15 (vinte e três milhões, setecentos e doze mil, trezentos e quatorze reais quinze centavos). Ou seja, o Governo estaria investindo na terceirização dos serviços da Defensoria Pública, por meio de um convênio com a OAB de Goiás, quando o próprio Supremo Tribunal Federal já havia rechaçado esse modelo e decidiu, por unanimidade, ser “inconstitucional normas que privilegiam a prestação – pelo Estado – do serviço de assistência jurídica gratuita através da contratação de advogados em detrimento do investimento na Defensoria Pública”(ADI 4163/São Paulo).

Segundo consta do ofício enviado pela ANADEP:

“Uma vez que não há uma Defensoria Pública de verdade no estado de Goiás nos moldes da Constituição Federal e da Lei Complementar Federal nº 80/94 e, ainda mais grave, estando em plena construção e implantação um modelo inconstitucional – já rechaçado em diversas oportunidades pelo Supremo Tribunal Federal – de assistência jurídica gratuita precária e terceirizada, não pode a assim chamada Defensoria Pública de Goiás receber qualquer verba do Governo Federal ou do BNDES para o fomento desse modelo.

 A ANADEP solicita, portanto, a manifestação do Ministério da Justiça no sentido da suspensão de qualquer repasse de recursos federais, seja da administração direta ou indireta, para a Defensoria Pública do Estado de Goiás, até que ela seja instalada nos moldes da Constituição Federal e da Lei Complementar Federal nº80/94; a elaboração de nota técnica, inclusive por parte dos demais órgãos acionados órgãos acionados, rechaçando os moldes legais em que se estrutura a Defensoria Pública goiana e, ainda, apoio para a efetiva implantação da Defensoria Pública daquela unidade da federação, inclusive para a imediata conclusão do 1º Concurso Público”

Recentemente, mais precisamente em 13 de agosto de 2013, o governador do Estado de Goiás firmou Termo de Ajustamento de Conduta - TAC com o Ministério Público estadual, comprometendo-se a realizar novo concurso para defensor público.

Conforme o documento, o estado tem até o dia 2 de janeiro de 2014 para escolher a instituição responsável pela realização do concurso e divulgar o edital. A homologação precisa ser feita até 1º de julho de 2014 e a nomeação dos aprovados deverá acontecer no prazo de até 10 dias após a validação do resultado.[5]

O Ministério Público propôs a realização do concurso ao constatar, por meio de inquérito, que 78 servidores de outros órgãos, sendo 23 comissionados, desempenham irregularmente a função de defensor, em desvio de função. Além deles, há apenas seis servidores no órgão.

Ocorre que a Lei Complementar estadual nº 51/2005, como mencionado, determina que a Defensoria Pública de Goiás deve ser composta por um quadro de 130 defensores, de modo que a previsão de apenas 14 (catorze) vagas não é suficiente para sanar a omissão inconstitucional do Estado de Goiás em implantar uma Defensoria Pública nos moldes da Constituição Federal e da Lei Complementar federal nº 80/94.

O Estado de Goiás alega que a razão de o TAC prever apenas 14 vagas é que as 40 vagas restantes teriam de ser preenchidas por aprovados no concurso realizado pelo Instituto Cidades, regido pelo edital nº 011/2010. No entanto, é razoável antever que muitos dos candidatos que serão aprovados no certame de 2010, espalhados por todo o Brasil, já foram aprovados em outros concursos públicos e não terão interesse em assumir o cargo em Goiás.

Assim, ainda que o Estado de Goiás cumpra o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC firmado com o Ministério Público de Goiás, realizando o certame e provendo 14 cargos de defensor publico, estará, apenas, passando de uma omissão total para uma omissão inconstitucional parcial, sem resolver o problema do acesso à justiça dos necessitados.


4. Da omissão inconstitucional do Estado de Goiás

Segundo Gilmar Ferreira Mendes, a problemática atinente à inconstitucionalidade por omissão constitui um dos mais tormentosos e, ao mesmo tempo, um dos mais fascinantes temas do direito constitucional, sendo:

“fundamental sobretudo para a concretização da Constituição como um todo, isto é, para a realização do próprio Estado de Direito democrático, fundado na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho, da iniciativa privada, e no pluralismo político, tal como estabelecido no artigo 1º da Carta Magna.”(MENDES, 2009, p. 1.229)

A omissão inconstitucional, vale dizer, o descumprimento, por inércia estatal, de norma impositiva prevista na Constituição, poderá ser total ou parcial, configurando-se aquela diante de uma completa omissão e esta derivada de insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 598212, proveniente do Estado do Paraná, entendeu pela omissão daquele Estado em implantar a Defensoria Pública, em decisão monocrática do Relator, Eminente Ministro Celso de Mello, com a seguinte ementa:

“Defensoria Pública. Implantação. Omissão estatal que compromete e frustra direitos fundamentais de pessoas necessitadas. Situação constitucionalmente intolerável. O reconhecimento, em favor de populações carentes e desassistidas, postas à margem do sistema jurídico, do ‘direito a ter direitos’ como pressuposto de acesso aos demais direitos, liberdades e garantias. Intervenção jurisdicional concretizadora de programa constitucional destinado a viabilizar o acesso dos necessitados à orientação jurídica integral e à assistência judiciária gratuitas (CF, art. 5º, LXXIV, e art. 134). Legitimidade dessa atuação dos juízes e tribunais. O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo poder público. A fórmula da reserva do possível na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação constitucionalmente impostos ao Estado. A teoria das ‘restrições das restrições’ (ou da ‘limitação das limitações’). Controle jurisdicional de legitimidade sobre a omissão do Estado: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de observância de certos parâmetros constitucionais (proibição de retrocesso social, proteção ao mínimo existencial, vedação da proibição insuficiente e proibição de excesso). Doutrina. Precedentes. A função constitucional da Defensoria Pública e a essencialidade dessa instituição da República. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (AI 598.212, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 10-6-2013, DJE de 20-6-2013.)

Em seu voto, o Ministro Celso de Mello ressaltou a essencialidade da Defensoria Pública como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que também são titulares as pessoas carentes e necessitadas, bem como destacou que:

“Lamentavelmente, o povo brasileiro continua não tendo acesso pleno ao sistema de administração da Justiça, não obstante a experiência altamente positiva dos Juizados Especiais, cuja implantação efetivamente vem aproximando o cidadão comum do aparelho judiciário do Estado. É preciso, no entanto, dar passos mais positivos no sentido de atender à justa reinvindicação da sociedade civil que exige, do Estado, nada mais senão o simples e puro cumprimento integral do dever que lhe impôs o art. 134 da Constituição da República.”

Celso de Mello ainda afirmou que a omissão do Estado qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, uma vez que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.

Em outro aresto do Excelso Tribunal, da lavra do Eminente Ministro Carlos Ayres Britto, Relator do Recurso Extraordinário nº 574.353/PR, consignou-se que:

“5. (...) De saída, anoto que as defensorias públicas são aparelhos genuinamente estatais ou de existência necessária. Exercentes de atividade estatal permanente, portanto. Mais que isso, unidades de serviço que se inscrevem no rol daquelas que desempenham função essencial à jurisdição. Tudo nos termos do art. 134 e do inciso LXXIV do art. 5º da Carta Magna, a saber: “Art. 134. A defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. § 1º Lei complementar organizará a defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. § 2º Às defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa, e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.” “Art. 5º LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.” 5. Ve-se, portanto, que a Constituição Federal alçou a defensoria pública ao patamar de instituição permanente, essencial à prestação jurisdicional do Estado. Uma instituição especificamente voltada para a implementação de políticas públicas de assistência jurídica, assim no campo administrativo como no judicial. Pelo que, sob este último prisma, se revela como instrumento de democratização do acesso às instâncias judiciárias, de modo a efetivar o valor constitucional da universalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º do Texto Magno). Fazendo de tal acesso um direito que se desfruta às expensas do Estado, em ordem a se postarem (as defensorias) como um luminoso ponto de interseção do constitucionalismo liberal com o social. Vale dizer, fazem com que um clássico direito individual se mescle com um moderno direito social. Tornando a prestação jurisdicional do Estado um efetivo dever de tratar desigualmente pessoas economicamente desiguais. Os mais pobres a compensar a sua inferioridade material com a superioridade jurídica de um gratuito bater às portas do Poder Judiciário. O que já se traduz na concreta possibilidade de gozo do fundamental direito de ser parte processual. Parte que, perante outra, vai compor a relação sem a qual a jurisdição mesma não tem como operar na órbita dos chamados processos subjetivos. A jurisdição e os órgãos que lhe são essenciais a se imbricar, portanto, sem que se possa dizer onde começa uma e terminam os outros. Numa frase, aparelhar as defensorias públicas é servir, sim, ao desígnio constitucional de universalizar e aperfeiçoar a própria jurisdição como atividade básica do Estado e função específica do Poder Judiciário. Daí o prestígio que a EC 45/2004 conferiu a todas as defensorias (públicas),in verbis: “Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º. (Art. 168, com a redação introduzida pela EC 45/04).” (grifamos)

Desse modo, o Supremo Tribunal Federal, em referidos julgamentos, colmatou omissões governamentais e conferiu real efetividade a direitos essenciais, dando-lhes concreção e viabilizando, desse modo, o acesso das pessoas à plena fruição de direitos fundamentais cuja realização prática lhes estava sendo negada, injustamente, por arbitrária abstenção do Poder Público. (CELSO DE MELLO)

Em Goiás, a realidade da Defensoria Pública insere-se perfeitamente no quadro da arbitrária abstenção por parte do Poder Executivo, fazendo com que um número considerável de cidadãos permaneçam sem “direito a ter direitos”, na célebre expressão de Hannah Arendt, conforme se abordará no próximo ponto.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Bruno Malta. A omissão inconstitucional do Estado de Goiás em implementar a Defensoria Pública Estadual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3817, 13 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26107. Acesso em: 5 nov. 2024.

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