Introdução
O exame do crime, em uma perspectiva baseada no critério analítico, centra-se nos elementos que formam a estrutura do ilícito penal. Dentre esses elementos atenção se dá ao fato típico que é composto pela conduta, resultado, nexo causal e tipicidade penal.
Destaca-se desse rol a tipicidade penal. A mencionada tipicidade é integrada pela tipicidade formal e material. A tipicidade formal corresponde à subsunção da conduta praticada pelo agente no mundo real à descrição abstrata prevista no tipo penal consignado na lei. Já a tipicidade material caracteriza-se pela relevante lesão ou perigo de lesão à bem jurídico penalmente tutelado. Como bem leciona Marcelo Uzeda: “(...) o bem protegido deve ser relevante, sendo afastados aqueles considerados inexpressivos. A lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico é indispensável para a configuração da tipicidade material”[1]. A existência da tipicidade formal e material gera a tipicidade penal.
Verifica-se que é no campo da análise da existência da tipicidade material que o princípio da insignificância encontra respaldo para a sua aplicabilidade. O princípio da insignificância é o instituto que afeta diretamente o fato típico. Isso porque, apesar de o fato concreto se enquadrar na descrição abstrata do tipo penal (tipicidade formal), não gera perigo de lesão ou lesão de relevância ao bem jurídico tutelado. Desse modo, existindo a tipicidade formal, mas ausente a tipicidade material, não há que se falar em tipicidade penal, ocasionado, portanto, a atipicidade do fato. Entende-se, ainda, que o referido princípio desempenha um papel de interpretação restritiva do tipo penal.
1. Requisitos do princípio da insignificância
O Supremo Tribunal Federal analisa a aplicabilidade do princípio da insignificância não somente com base no valor da coisa objeto do ilícito, mas também com enfoque nos seguintes vetores: a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Destaca-se a ementa do julgado abaixo que bem ilustra a referida sistemática da Suprema Corte:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. INFRAÇÃO DO ART. 240, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL MILITAR. PRETENSÃO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPROCEDÊNCIA. 1. A restituição do bem furtado à vítima não leva à aplicação do princípio da insignificância e à atipicidade material da conduta imputada, mas está prevista como atenuante da pena a ser imposta pelo juiz quando proferir a sentença, nos termos do art. 240, caput, § § 1º e 2º, do Código Penal Militar. Precedentes. 2. O princípio da insignificância reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por consequência, torna atípico o fato na seara penal, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal. 3. Para a incidência do princípio da insignificância, devem ser relevados o valor do objeto do crime e os aspectos objetivos do fato, tais como, a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica causada. 4. Impossibilidade de incidência, na espécie vertente, do princípio da insignificância. Bem furtado dentro das instalações de instituição militar e de valor quase três vezes e meia o valor do salário mínimo da data dos fatos. 5. Ordem denegada” (HC 112224, Primeira Turma, relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 12-06-2012) (Grifo nosso).
É válido destacar que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 92961, além de fundamentar a aplicação do princípio da insignificância na existência dos requisitos supracitados, baseou-se também no princípio da dignidade da pessoa humana para concluir pela atipicidade do fato, conforme se verifica do seguinte trecho do voto do relator, o Ministro Eros Grau:
“A aplicação do princípio da insignificância no caso se impõe, a uma porque estão presentes seus requisitos, de natureza objetiva; a dois, como demonstrado no parecer ministerial, em razão da dignidade da pessoa humana, arrolada na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como princípio fundamental (art. 1º)” (DJe de 22-02-2008).
Com o objetivo de delimitar o fim para o qual se desenvolve o presente trabalho é merecedor de destaque a breve distinção, realizada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, entre furto de coisa de pequeno valor e a conduta formalmente tipificada como crime de furto, mas alcançada pelo princípio da insignificância:
“Por outro lado, convém distinguir, ainda, a figura do furto insignificante daquele de pequeno valor. O primeiro, como é cediço, autoriza o reconhecimento da atipicidade da conduta, ante a aplicação do princípio da insignificância. Já no que tange à coisa de pequeno valor, criou o legislador a causa de diminuição referente ao furto atenuado, prevista no art. 240, § 1º, do Código Penal Militar” (ARE 728826, Segunda Turma, relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 21-05-2013).
Ocorre que o Código Penal Militar, ao dispor sobre o furto atenuado no parágrafo primeiro do art. 240, consignou expressamente que caso o agente seja primário e de pequeno valor a coisa furtada (isto é, não excedente a um décimo da quantia mensal do mais alto salário mínimo do país), o julgador poderá, dentre outras medidas dispostas nesse parágrafo, considerar a infração como disciplinar. Há doutrina que interpreta esse dispositivo como “via ligada ao reconhecimento de não lesão ao bem jurídico, o que se tem entendido como manifestação legal do princípio da insignificância. Embora discutível – ainda mais em um delito como furto, em que a estrutura moral é abalada – tem-se admitido a aplicação do princípio da insignificância no Direito Penal Militar, e isso não só nas hipóteses legais, como aqui ocorre, mas também em hipóteses supralegais, como no caso do preculato-furto, por exemplo”[2].
No âmbito do direito penal militar há discussões pertinentes no tocante à aplicabilidade do princípio da insignificância, haja vista os bens jurídicos tutelados no meio militar. Ensina Cícero Coimbra e Marcello Streifinger que:
“Em suma, não é vedada a aplicação do princípio da insignificância em Direito Penal Militar. Todavia, sua aplicação depende, como vimos defendendo, de uma avaliação mais acurada, que prestigie não apenas o bem jurídico primeiramente focado pela norma penal, mas também outros bens jurídicos ligados às instituições militares, que podem estar evidentes ou velados na norma penal militar, a exemplo da hierarquia, da disciplina, da autoridade, enfim, de elementos que possam construir a regularidade das forças militares”[3]
Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, ao dispor sobre o crime de furto tipificado no art. 240 do Código Penal Militar, a saber “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, introduz seus ensinamentos sobre o referido crime militar consignando que:
“A vida militar tem os seus princípios e as suas regras que são diferentes daquelas que muitas vezes são observadas pelos civis em suas relações sociais. A defesa da pátria e da integridade física e do patrimônio das pessoas exige preparo, ética, disciplina e também observância da hierarquia. Na verdade, a vida militar é regida por um arcabouço de regras que no decorrer dos anos tem sofrido poucas modificações. Enquanto a sociedade civil brasileira vem passando por uma crise de valores, a ocorrência desses fatos não é admissível na seara militar, federal, estadual ou distrital. Muitas vezes a sociedade não consegue entender a importância do estamento militar para a exigência da Nação. Por mais que a diplomacia se esforce, a soberania de um país continua e continuará sendo mantida por uma Força Militar devidamente organizada e em condições a responder a uma eventual agressão estrangeira. Devido a todas estas questões é que o legislador resolveu de forma semelhante ao estabelecido no Código Penal Brasileiro punir o militar ou mesmo o civil que venha praticar o crime de furto, que é o primeiro ilícito penal que inicia o título denominado no CPM de crimes contra o patrimônio”[4].
É nesse contexto que passaremos a analisar o entendimento do Supremo Tribunal Federal no tocante à aplicabilidade do princípio da insignificância ao crime militar de furto cometido por militar.
2. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Verifica-se, por meio de pesquisa dos informativos de jurisprudência do STF, que a aplicação do princípio da insignificância ao crime militar de furto cometido por militar não é um tema pacífico perante a Suprema Corte. Em 2006 a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu pela aplicabilidade do princípio da insignificância ao fato comentido por fuzileiro naval referente à subtração de mochila com pertences de um soldado, objetos estes restituídos antes da instauração do inquérito policial militar e avaliados em R$ 154,57, e referente à violação de armário de outro militar para subtrair um par de coturnos. O voto vencedor da relatora, a Ministra Cármen Lúcia, consignou que o fato em tela é ausente de relevância no âmbito penal, sendo que apesar de existir lesão ao bem jurídico protegido pela lei, incide o princípio da insignificância que diminui o campo de proibição aparente da tipicidade legal e que, por isso, gera a atipicidade do fato. Sustentou que os patrimônios subtraídos não ocasionaram dano ou perigo de dano relevante, não havendo lesão ou risco ao bem jurídico na intensidade exigida pelo princípio da ofensividade. Esclareceu, ainda, que o direito penal somente deve atuar quando os demais ramos do direito (a título de exemplo citou o ramo do direito administrativo militar) não conseguirem promover a proteção dos bens jurídicos, a teor dos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade.
Em divergência, os Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto decidiram pela inaplicabilidade do princípio da insignificância, haja vista que os fatos foram cometidos em ambiente castrense e contra outros militares. (Informativo de jurisprudência n. 444, RHC 89624, DJe de 07-12-2006).
Em contrapartida, ao analisar outro julgado, a Primeira Turma do STF decidiu pela inaplicabilidade do princípio da insignificância no que se refere à tentativa de furto cometido por militar, sendo que, no presente caso, a subtração foi de objeto pertencente à Fazenda Nacional. Trata-se de denúncia por furto qualificado de laptop (art. 240, § 5º, do CPM), fato este cometido dentro de local sujeito à administração militar. O relator, Ministro Ricardo Lewandowski, fundamentou no sentido da inaplicabilidade do referido princípio ao furto de patrimônio nacional. Inicialmente firmou entendimento no sentido de que o valor do bem furtado (R$ 2.229,00) não poderia ser tido como ínfimo. Concluiu seu voto pela ausência dos requisitos engajadores do princípio da insignificância ao considerar reprovável e relevante a conduta do militar tentar subtrair coisa de valor considerável do patrimônio nacional, deixando nítido, portanto, o desrespeito às instituições e leis nacionais. (Informativo de jurisprudência n. 552, HC 98159, DJe de 14-08-2009).
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em 06-12-2011, enfrentou a análise da aplicação do princípio da insignificância em favor de militar acusado de suposta subtração de coisa alheia móvel (art. 240, caput, c/c art 9º, I, do CPM). No presente caso, denunciou-se militar fardado que, no seu horário de serviço, subtraiu uma caixa de bombons de estabelecimento comercial, colocando o objeto do furto dentro do seu colete. A discussão sobre o tema foi acirrada. O Ministro relator, Joaquim Barbosa, acompanhado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, votou pela inaplicabilidade do princípio da insignificância. Entendeu-se pela abstração do valor da mercadoria subtraída e centrou-se na conduta do agente que colocaria a credibilidade da instituição militar em dúvida. Ressaltou-se que por se tratar de crime militar, deve-se também se resguardar a disciplina, a moralidade administrativa e a fidelidade do militar com suas atividades funcionais. Concluindo-se, portanto, pelo alto grau de reprovabilidade da conduta do militar, o que veda a aplicação do princípio da insignificância no caso em tela.
Suscitando divergência, o Ministro Gilmar Mendes, redator para o acórdão, entendeu pela aplicabilidade do mencionado princípio ao consignar que:
“Reconheço que estamos num processo de experimentalismo institucional, mas a própria ideia de insignificância, na verdade, é a concretização da ideia de proporcionalidade, e aqui ela se materializou de forma ainda mais radical. Talvez, pelo tipo de conduta, isso merecesse outro tratamento - indica algum desvio. Contudo, o próprio dolo, quer dizer, a intenção de cometer um crime de índole, de atingir o patrimônio de alguém, parece aqui longe de se concretizar.
Nesses termos, tenho que — a despeito de restar patente a existência da tipicidade formal (perfeita adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal) — não incide, no caso, a tipicidade material, que se traduz na lesividade efetiva e concreta ao bem jurídico tutelado, sendo atípica a conduta imputada ao paciente”.
No mesmo sentido, o Ministro Ayres Britto esclareceu que, pelo modo de consumação, não se evidenciou o objetivo de desfalcar o patrimônio alheio. Devido ao empate, foi deferido o habeas corpus. (Informativo de jurisprudência n. 651 , HC 108373, DJe de 07-03-2012).
Destaca-se outro julgado proferido pela Segunda Turma do STF que decidiu pela inaplicabilidade do princípio da insignificância. Refere-se à subtração, por militar, de bens (no valor total de R$ 165,00) pertencentes a outros colegas de farda. Fatos esses realizados em ambiente sujeito à administração militar. O Ministro relator, Ricardo Lewandowski, acompanhado pelos demais ministros componentes da Turma, consignou que apesar dos valores dos bens, a conduta do militar foi abrangida por relevante reprovabilidade em face da ação de furtar bens de colegas de farda, no interior do aquartelamento. O que demonstra desrespeito às leis e às instituições castrenses do país. A referido julgado foi decidido por unanimidade no julgamento do ARE 728.826-AgR, DJe de 21-05-2013.
Recentemente, em setembro de 2013, a Primeira Turma do STF enfrentou novamente a análise do tema por meio do julgamento do HC 117215. O Relator, Ministro Dias Toffoli, decidiu pela inaplicabilidade do princípio da insignificância diante do furto de um celular avaliado em R$ 85,00 e um chip avaliado em R$ 10,00 pertencentes a outro militar, crime este cometido por militar dentro da caserna. Entendeu-se que apesar dos valores reduzidos dos bens furtados, a relevante reprovabilidade da conduta subsiste diante do fato de o ilícito ter sido cometido por um militar contra o colega de farda e dentro de local sujeito à administração militar. Diante desse contexto, destacou-se que a conduta do militar não pode ser considerada insignificante, haja vista a incompatibilidade da mesma com a disciplina e a hierarquia próprias do regime militar. Colhe-se a ementa do referido julgado:
“EMENTA Habeas corpus. Penal militar. Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. Crime de furto (art. 240 do Código Penal Militar) praticado dentro da caserna. Reprovabilidade da conduta. Precedentes. Ordem denegada. 1. A aplicabilidade do postulado da insignificância ao delito de furto foi afastada na espécie, uma vez que não se pode falar em reduzido grau de reprovabilidade da conduta, a qual foi praticada pelo paciente dentro da caserna e contra um colega de farda. 2. Conforme já assentou o Supremo Tribunal, “é relevante e reprovável a conduta de um militar que, no interior do aquartelamento, furta bens de dois colegas de farda, demonstrando total desrespeito às leis e às instituições castrenses de seu País” (ARE nº 728.826/RS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 21/5/13). 3. Ordem denegada” (HC 117215, Primeira Turma, relator o Ministro Dias Toffoli, DJe de 14-10-2013).
Conclusão
Por fim, conclui-se que diante da polêmica do tema perante a Suprema Corte, o importante é harmonizar os institutos basilares do militarismo, a saber a disciplina e a hierarquia, com o valor do bem, a ofensividade da conduta do agente, a periculosidade social da ação, o grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica. Assim, deve-se analisar com cautela cada caso concreto para viabilizar a aplicabilidade ou não do princípio da insignificância no âmbito militar, haja vista que “qualquer que seja o bem jurídico evidentemente protegido pela norma, sempre haverá, de forma direta ou indireta, a tutela da regularidade das instituições militares”[5] .
Desse modo, torna-se necessário averiguar as peculiaridades de cada caso concreto com intuito de se ponderar os supracitados pilares do militarismo com a dignidade da pessoa humana a fim de se concluir pela existência ou não de conduta ocasionadora de relevante lesão ou perigo de lesão à bem jurídico penalmente tutelado.
Bibliografia
ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Código Penal Militar Comentado. Volume 2. 2° Ed. Belo Horizonte: Editora Líder, 2013.
UZEDA, Marcelo. Direito Penal Militar. Coleção Sinopses para concursos. Salvador: Editora Juspodivm, 2012.
NEVES, Cícero Robson Coimbra.STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 3° ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.
NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 2° ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
Notas
[1] UZEDA, Marcelo. Direito Penal Militar. Coleção Sinopses para concursos. Salvador: Editora Juspodivm, 2012. p. 99.
[2] NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 3° ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. p. 1173.
[3] NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 2° ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 85.
[4] ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Código Penal Militar Comentado. Volume 2. 2° Ed. Belo Horizonte: Editora Líder, 2013. p. 230-231.
[5] NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 3° Ed.São Paulo: Editora Saraiva, 2013. p. 50.