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PEC das Domésticas: alterações legislativas em busca de justiça social

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Agenda 23/01/2014 às 09:36

É importante entender, ao longo da história, os motivos que ensejaram a uma equiparação legislativa tardia quanto aos direitos dos empregados domésticos.

Resumo: O presente trabalho tem o intuito de analisar o perfil do empregado doméstico brasileiro, bem como suas conquistas trabalhistas ao longo dos anos. Com a recente emenda à constituição devido à “PEC das Domésticas”, a qual buscou equiparar direitos dos domésticos com as demais categorias de trabalhadores, abriu-se nova discussão sobre a classe, levantando-se muitas dúvidas e polêmicas. Dentro desse novo contexto social, faz-se necessário entender, ao longo da história, os motivos que ensejaram a uma equiparação legislativa tardia.

Palavras-chave: empregado doméstico, conquistas trabalhistas, PEC das Domésticas, equiparação legislativa.


1. INTRODUÇÃO

A função do trabalhador doméstico sempre foi uma válvula de escape para os cidadãos, especialmente para mulheres em situação crítica de pobreza e outras diferentes dificuldades cotidianas, tais como escolaridade ediscriminação étnica, vivenciadas principalmente pelas imigrantes.

Essa categoria de trabalhadoras recebe do empregador, na melhor das hipóteses,casa e comida. Ademais, não é preciso diploma, currículo ou qualquer outro tipo de curso especial, apenas se exige disciplina e disposição física para atender aos afazeres domésticos ditados pelo patrão.

Dificilmente, a função da trabalhadora doméstica dará oportunidade de desenvolvimento e carreira profissional. Ela acaba sendo, infelizmente, uma válvula de escape, uma última opção daquelas que não conseguem uma locação melhor no mercado e precisam urgentemente trabalhar para não entrarem na zona da extrema pobreza e miséria que assola milhões de trabalhadoras brasileiras.

Nesse panorama, a melhor das hipóteses acaba sendo o trabalho doméstico, onde além de ganhar um dinheiro no fim do mês,mesmo que seja menos ou apenas um salário mínimo, muitas das vezes conseguido na informalidade, sem registro em carteira ou desrespeitando o piso salarial, ainda há a oportunidade de poder comer do que a família do empregador come eusufruir, muitas das vezes, de um lugar para dormir.

Seguindo este panorama, faz-se necessário analisarmos o perfil do trabalhador doméstico brasileiro e suas conquistas trabalhistas ao longo dos anos, bem como oatual contexto social em que se inserem tais conquistas.

Assim, é fundamental entendermos que a evolução das relações sociais trabalhistas exige novas respostas do direito a cada momento. Ademais, é necessária uma atividade atenta de legisladores, doutrinadores, juízes e demais envolvidos nesse processo de positivação, no intuito de comporem um direito aplicável a seu tempo, a fim de promover uma maior inclusão social dessas classe trabalhadora, rumo aos anseios de uma sociedade mais equilibrada.


2. O PERFIL DO TRABALHADOR DOMÉSTICO BRASILEIRO

Para que seja possível traçar um perfil do trabalhador doméstica atual, faz-se necessária uma análise do artigo 1º da Lei 5.859/72, onde épossível destacarmos três condicionantes, senão vejamos:

Art. 1º Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa a pessoa ou família, no âmbito residencial destas, aplica-se o disposto nesta lei.

A primeira delas nos diz respeito aos serviços prestados, onde os mesmos devem ser de natureza contínua, ou seja, o empregado doméstico não pode ser considerado como um trabalhador que exerce a sua atividade com intermitência ou apenas como eventualidade. Tal natureza deve ser interpretada de uma forma mais simples possível, pois caso não haja o compromisso do trabalhador em comparecer ao serviço todos os dias, nos horários certos e subordinar-se às ordens do contratante, é nítido que se trata de um trabalho eventual.

A interpretação quanto à natureza contínua é simples, pois caso o contratante exija a presença do empregado através do cumprimento de horários, ainda que por apenas alguns dias da semana por ele estabelecido e mediante remuneração, fica claro que se trata de um trabalho de natureza contínua.[1]

Outro requisito elencado diz respeito ao fato de que o trabalho prestado tenha finalidade não lucrativa, ou seja, exercido fora da atividade econômica. Dessa forma, a noção de finalidade constrói-se sob a ótica dos serviços, e não de seu prestador.

Convém destacarmos ainda o tocante à natureza do serviço prestado, o qual no entendimento de Maurício Godinho Delgado dispõe:

A única limitação existente é de exclusivo caráter cultural, que tende a circunscrever tais serviços ao trabalho manual. Essa fronteira culturalmente estabelecida não tem, contudo, qualquer suporte ou relevância no âmbito da normatividade jurídica existente.

O tipo de serviço prestado (manual ou intelectual; especializado ou não especializado) não é, desse modo, elemento fático-jurídico da relação empregatícia doméstica (DELGADO, 2009, p.62).

Quanto ao terceiro condicionante, o trabalho deve ser dirigido à pessoa ou à família, e mais, no âmbito residencial destas.  Assim, uma empresa não poderá ter empregados domésticos, bem como nenhuma associação ou entidade, ainda que filantrópica.

Em suma, caracteriza-se como empregado domésticoaquele maior de 18 anos que presta serviços de natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas.

Convém destacarmos que o trabalho doméstico está proibido no Brasil para menores de 18 anos desde que entrou em vigor o decreto nº 6.481, assinado em 12 de junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o qual regulamenta a Convenção 182 da OIT de 1999, ao listar as piores formas do trabalho infantil.Antes do decreto, era legal a contratação, desde que registrada em carteira, de maiores de 16 anos e menores de 18 para exercer serviços domésticos.

O referido decreto coloca o trabalho doméstico na mesma categoria da extração de madeira, da produção de carvão vegetal, da fabricação de fogos de artifício, da construção civil e da produção de sal, já que os riscos ocupacionais citados para jovens que realizam trabalhos domésticos estão "esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual, longas jornadas de trabalho, sobrecarga muscular", entre outros.

Em suma, o traço diferenciador do emprego doméstico é o caráter não-econômico da atividade exercida no âmbito residencial do empregador. Nesses termos, integram a categoria os seguintes trabalhadores: cozinheiro, governanta, babá, lavadeira, faxineiro, vigia, motorista particular, jardineiro, acompanhante de idosos, entre outras. O caseiro também pode ser considerado empregado doméstico, caso o sítio ou local onde exerça a sua atividade não possua finalidade lucrativa.

Convém ainda ressaltarmos que o empregado doméstico, além de critérios próprios, apresenta todos os critérios da configuração do empregado latu senso, disposto no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho:

Art. 3º CLT: Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

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Dessa forma, tanto o trabalhador doméstico quanto o empregado comum são pessoas físicas que prestam serviços não eventuais, de forma subordinada e mediante salário. As únicas diferenças encontradas estão no fato de que a prestação de serviço doméstico se vincula ao âmbito familiar, sem fins lucrativos, enquanto que o trabalhador comum se presta a uma atividade empresarial que visa lucro.

O trabalho executado pelos empregados domésticos não constituí apenas externa de compra e venda de força de trabalho, mas também modo de vida. O trabalho doméstico é uma responsabilidade da mulher, culturalmente definida do ponto de vista social como dona de casa, mãe ou esposa. Esse trabalho dirigido para as atividades de consumo familiar é um serviço pessoal para o qual cada mulher internaliza a ideologia de servir aos outros, maridos e filhos. O trabalho realizado para sua própria família é visto pela sociedade como uma situação natural, pois não tem nenhuma remuneração e é condicionado por relações afetivas entre a mulher e os demais membros familiares, gratuito e fora do mercado. Quando uma mulher contrata uma terceira para executar essas tarefas, isto é, prestar tais serviços para uma família diferente da sua, esse trabalho doméstico, converte-se em “serviço doméstico remunerado”. (MELO, 1998, p. 213)

Em outras palavras, o diferencial de um trabalhador doméstico de um trabalhador comum seria a falta de alguns direitos aos empregados domésticos se justificarem na busca de redução de gastos por parte do empregador, ou seja, uma característica do tomador do serviço que prejudicou a categoria durante décadas.

O serviço doméstico é uma das ocupações que apresenta pior qualidade de trabalho, com extensas jornadas, baixas remunerações, escassa cobertura de proteção social e um alto nível de descumprimento das normas trabalhistas.

Conforme estudo da OIT de janeiro de 2013, intitulado “Trabalhadores Domésticos em todo o mundo”, pelo menos 52,6 milhões de pessoas no planeta — principalmente as mulheres — são empregadas como trabalhadoras domésticas. Dessas, somente 10% estão cobertas pela legislação geral do trabalho em igualdade com profissionais de outras categorias.[2]

O Brasil tem 7,2 milhões de empregados domésticos, sendo 6,7 milhões de mulheres e 504 mil homens, e aparece como o país com a maior população de trabalhadores domésticos do mundo em números absolutos, segundo estudo feito em 117 países e divulgado pela  Organização Internacional do Trabalho (OIT) em janeiro de 2013. [3]

Quanto à remuneração, estas apresentam rendimento extremamente baixo, embora tenha ocorrido um significativo incremento do salário mínimo, em diversos países, somado ao aumento da demanda pelo serviço doméstico.

Desde janeiro de 2013, o aumento do salário mínimo de R$622,00 para R$678,00 beneficiou empregadas domésticas em 21 Estados e no Distrito Federal.Nos estados onde há o piso regional – Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo – o valor do piso regional nesses estados é superior, podendo chegar, como no caso do Paraná a R$914,82.

Outro dado importante elaborado pela pesquisa da Fundação Seade e do Dieese aponta que em 2010,a proporção de mulheres negras foi predominante no trabalho doméstico empraticamente todas as regiões.Em Salvador, 96,7% das ocupadas nos Serviços Domésticos eram negras, já em São Paulo, o total de trabalhadoras negras ocupadas no setor (48,9%) foi ligeiramente inferior ao de não negras (51,1%). Em Porto Alegre, a população negra é bem menor: 26,5% das ocupadas nos Serviços Domésticos são negras, as demais, não negras (73,5%). Somente 26,8% destas trabalhadoras tem carteira assinada. Entre as negras, o nível ainda é de 25,2%, enquanto que dentre as brancas, 30,5%.[4]

Em suma, nenhuma categoria profissional expressa tão claramente a discriminação de gênero e raça no mercado de trabalho brasileiro como o trabalho doméstico.

Os trabalhadores domésticospossuíamextensas e exaustivas jornadas de trabalho, em média de 58 horas semanais,as quais superam em muito uma jornada de trabalhonormal de 40 horas. Ademais, níveis de cobertura de proteção social são baixíssimos. Em média, menos de um terço das trabalhadoras domésticas da América Latina é registrada e a proporção que consegue aposentar-se é ainda menor. Neste cenário, a possibilidade de fazer uso do direito de proteção à maternidade é quase impossível.

Contudo, em meio a este triste panorama, surgiua esperança de melhorias coma referida “PEC das Domésticas”, a qual busca ampliar os direitos dos trabalhadores domésticos, por meio da reforma do artigo 7º da CF/88.


2. UMA CONQUISTA TARDIA, MAS HISTÓRICA ...

O empregado doméstico sempre foi uma categoria diferenciada em nosso país, pois se trata de um grupo de trabalhadores, os quais sempre foram negados os direitos garantidos aos demais tipos de empregados, inclusive com restrições constitucionais.

Para tanto, diversos são os argumentos utilizados a fim de justificar o trato diferenciado, dentre os quais o que conta com a maior adesão da doutrina e jurisprudência trabalhistas é o que dispõe da relação essencial de confiança deste trabalhador, muitas vezes definido como “quase um membro da família”, mas com um precário tratamento por parte do legislador.

Contudo, mesmo que tardiamente, a trabalhadora doméstico foi conquistando seus direitos como a Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, regulamentada pelo Decreto nº 71.885, de 09 de março de 1973. Lei esta que passou a garantir acategoria o direito a carteira de trabalho (art. 2º, I) e as férias anuais remuneradas (art. 3º), fixadas em 20 dias, bem como o vale-transporte previsto na Lei 7418/85, tanto para os empregados comuns e domésticos.

Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, demais direitos foram predispostos no parágrafo único do artigo art. 7º e seus incisos, o qual concedeu outros direitos sociais aos empregados domésticos, tais como: salário- mínimo; irredutibilidade salarial; repouso semanal remunerado; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, 1/3 a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de 120 dias; licença-paternidade; aviso-prévio; aposentadoria e integração à Previdência Social.

Com a edição da Lei nº 11.324, de 19 de julho de 2006, houve a alteração da Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, onde foi firmado aos domésticos o direito a férias de 30 dias, a estabilidade para gestantes, o direito aos feriados civis e religiosos, além da proibição de descontos de moradia, alimentação e produtos de higiene pessoal utilizados no local de trabalho e o direito ao repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos.

A Lei n. 10.208/2001, apenas facultou aos empregadores domésticos aderirem ao FGTS, para que seus empregados possam usufruir dos depósitos do Fundo e do seguro desemprego, possibilidade que permaneceu na Lei n. 11.324/2006.

Faz-se necessário observar que essa Lei n. 11.324/2006 teve origem na Medida Provisória n. 284/2006, aprovada, com alterações, pelo Congresso Nacional, com modificações que continham vantagens trabalhistas, tal a obrigatoriedade das contribuições patronais para o FGTS, mas que foram vetadas pelo então Presidente da República à época, Luiz Inácio Lula da Silva, sob o enfoque de “poupar” o empregador de maiores despesas.  Assim, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o seguro-desemprego ficaram a critério do empregador conceder ou não.

Após 50 anos de lutas, em 16 de junho de 2011, as trabalhadoras domésticas conseguiram uma reinvindicação histórica da categoria, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovou, de acordo com Convenção nº 189, a equiparação de direitos destas com os demais trabalhadores.

Em suma, a Convenção e a Recomendação da OIT sobre trabalho digno para trabalhadores domésticos caracterizou-se como a primeira Convenção dedicada exclusivamente ao trabalho doméstico que o define como "trabalho", tornando-o parte integrante do desenvolvimento social, já que estabelece padrões de direitos humanos para a categoria, na qual os governos, empregadores e trabalhadores devem atuar comprometidamente.

De acordo coma “PEC das Domésticas”, os direitos tão discutidos na referida convenção eacrescidos à Constituição Federal Brasileira devem ser: jornada de trabalho não superior a 8 horas diárias e 44 semanais; pagamento de horas extraordinárias; adicional noturno; indenização em caso de despedida sem justa causa; seguro-desemprego em caso de desemprego involuntário; FGTS; garantia de salário mínimo para quem recebe remuneração variável; proteção salarial sendo crime a retenção dolosa do pagamento; salário-família; observância das normas de higiene, saúde e segurança no trabalho; auxílio-creche e pré-escola para filhos e dependentes até 05 anos de idade; reconhecimento dos acordos e convenções coletivas; seguro contra acidente de trabalho; proibição de discriminação de salário, de função e de critérios de admissão, proibição de discriminação em relação à pessoa com deficiência, proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 16 anos.

Dentre os direitos mencionados, alguns já se encontram regulamentados desde abril de 2013,como se constata na Emenda 72, senão vejamos:

Artigo único. O parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 7º .....................................................................................

..........................................................................................................

Parágrafo único. São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e, atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social."

Assim, recente conquista nos leva a refletir sobre o fato de que durante anososvalores e princípios que nortearam a sociedade, enredaram-se da proteção social para a proteção econômica, valorizando o custeio de mão-de-obra barata.

É preciso desmistificar a ideia deturpada de que o trabalhador doméstico, como “quase membro da família”, apresenta-se como uma figura ingrata, que não reconhece os favores que recebe do “patrão”, merecendo, portanto, tratamento diferenciado ante os benefícios que usufrui no seio da família na qual trabalha.

Em que pesem críticas a respeito enfocando a sobrecarga tributária do empregador, o que poderá levar a uma maior informalidade, não se pode negar a importância do reconhecimento social, ainda que tardio, que foi dado à categoria.


4.EM BUSCA DE JUSTIÇA SOCIAL

Como já explanado, a desigualdade legislativa no trato com as trabalhadoras domésticas não foi nem mesmo corrigida pela Constituição de 1988, aclamada pelos constituintes como “Constituição Cidadã”.

Aliás, é preciso ter cautela nos valores e interesses que são constitucionalmente protegidos, na medida em que a Constituição não é tão inocente ou justa como deveria parecer, já que pode abrigar o conservadorismo dos grupos dominantes.

Tal desigualdade decorre da discriminação secular sofrida pelo tipo de trabalho (doméstico) e pelas pessoas quena maioria das vezes o exercem, quais sejam, negros e mulheres, história marcada especialmente pelo regime escravagista.

Com a abolição da escravatura nos fins do século XIX, “ajudantes” passaram a ser acolhidas nas casas. Essa ideia de ajuda, obviamente, sem qualquer remuneração, ainda é comum, sobretudo nas cidades interioranas das regiões Norte, Nordeste e mesmo de Minas Gerais.

As atividades laborais destinadas às mulheres estavam vinculadas ao serviço doméstico – como dona de casa, governanta, ou dama de companhia-; ao magistério – que normalmente rendiam melhores salários -; ao serviço fabril ou à prostituição.[5]

As mulheres negras (abolida a escravidão) eram forçadas a empregar-se nas piores condições, reservadas às escalas inferiores da hierarquia social: agricultoras nas fazendas, operárias na infame indústria do tabaco, empregadas no serviço doméstico (que embora fosse uma alternativa melhor que as outras, evocava os maus tratos e a falta de liberdade do tempo da escravidão). (PINSKY, 2003, p. 282)

Nos dias de hoje, essa mão de obra normalmente se preenche por migrantes, oriundas de regiões pobres, de baixíssima escolaridade, haja vista ser a categoria que apresenta a mais alta taxa de analfabetismo entre os trabalhadores urbanos.

Em suma, a desvalorização do trabalho doméstico foi sendo alimentada depois da abolição, notadamente em momentos importantes para a evolução social, econômica e política do país, como exemplo, quando do advento da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, que afastou, expressamente, de sua proteção, os empregados domésticos.

Verifica-se, claramente, nesse processo, a supremacia dos interesses econômicos da classe empregadora, considerada a finalidade não lucrativa de sua atividade, diante da preocupação em não onerá-la com encargos e direitos trabalhistas, em detrimento da igualdade de direitos trabalhistas dos domésticos, cujo trabalho tem valor econômico para si, por constituir sua fonte de sustento próprio e da família.

Segundo Marilena Chauí, o dilema que envolve a identidade e a alteridade é fato incidente em nossa cultura e no direito, senão vejamos:

As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direito, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de parentesco, isto é, de cumplicidade ou de compadrio, e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assumia a forma de favor de clientela, de tutela e de cooptação (CHAUÍ, 2000, p.89).

Neste contexto, cabe colocar a questão referente ao princípio da igualdade e verificar as consequências da sua não aplicação aos direitos concernentes aos trabalhadores domésticos, já que o parágrafo único do art. 7º, embora seja uma norma constante na CF/88, nunca esteve de acordo com o princípio da igualdade, nem com o art. 193, também da Carta Magna: "A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais".

Embora superior no plano legal, a norma maior, não tem autorização de seus próprios princípios para discriminar o empregado doméstico, concedendo-lhe menos direitos que ao trabalhador comum. Nunca houve justiça social neste panorama. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, é inadmissível que o trabalhador doméstico apresente-se em um regime diferenciado.

Na opinião do professor José Cretella Júnior, apesar de ter posicionamento contrário à ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos, assim manifestou a contradição do legislador constituinte:

O art. 7º, parágrafo único da Constituição de 5 de outubro de 1988, que estamos comentando, alterou os princípios que informam a nossa Oitava Constituição da República Federativa do Brasil, o da igualdade entre eles. Se “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, o regime jurídico do trabalhador doméstico, advindo da relação empregatícia é equiparado ao regime jurídico trabalhista dos demais empregados de fábricas, indústrias ou empresas (...) (CRETELLA JR, 1994).

Ao romper com o princípio da igualdade, coloca-se em xeque todo o sistema democrático brasileiro, o que acaba por incentivar um dos piores vícios que pode existir em uma sociedade, ou seja, o preconceito social.

Assim, em que pese o desrespeito para com os trabalhadores domésticos, diante dos princípios e regras fundamentais da Constituição Federal Brasileira, que resguardam a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, o trabalhador não pode ser colocado apenas a serviço dos interesses econômicos dos empregadores, que, na maioria das vezes, preocupam-se com o aumento de lucros e redução de gastos. Convém reiterar que, à luz da Lei Maior, que tem por fim proteger a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, inc. III), o trabalho deve ser visto sempre como valor social (art. 1º, inc. IV), sendo certo, assim, que tanto a ordem econômica quanto a ordem social devem ter por base o primado do trabalho humano (CF, arts. 170 e 193).[6]

Sendo assim, o direito deve ser um instrumento para a construção de uma sociedade mais justa, mesmo que forças econômicas afastem leis sociais, ou, influenciando a política, façam leis antissociais serem criadas.

Em suma, o direito do trabalho, ao contrário do direito em geral, não se preocupa apenas como o modo de vida da sociedade, mas também com a amenização da exploração do trabalho humano, o qual se realiza nitidamente em descompasso com a justiça.

O direito do trabalho não pode ser examinado nos estritos contornos do direito em geral porque suas premissas são distintas. O direito do trabalho não é um direito de dominação, mas de subversão. Sua estrutura não deixa de ser marcada pelo positivismo, mas à sua base está, indiscutivelmente, uma preocupação com a justiça, mais especificamente com a justiça social(MAIOR, 2000, p. 248).

O que atravancaessa justiça social, marcada pelo capital versus trabalho, ou seja, identificada na busca incessante pelo lucro, é que referido capital se obtém de uma mão-de-obra mal remunerada, que se submete a péssimas condições de trabalho em troca da sobrevivência.

Não se deve perder de vista que a luta por uma sociedade mais justa está impregnada de diversos valores, o que não seria diferente no campo do direito do trabalho, já que os titulares das relações jurídicas têm nítidos interesses contraditórios.

No entanto, o direito do trabalho não deve ser visto como único instrumento de justiça social, a organização e o acesso a informações são fundamentais para que por meio de um diálogo social possa-se transpor tantos anos de submissão legislativa.

As relações do trabalho doméstico devem ser impregnadas de dignidade, para que o empregado não só tenha condições mais dignas para exercer sua função social, mas para que seja reconhecido como cidadão e possa reivindicar sua posição na sociedade como qualquer outro profissional.

Sobre a autora
Danielle Regina Bartelli Vicentini

Advogada, formada em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC-PR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTINI, Danielle Regina Bartelli. PEC das Domésticas: alterações legislativas em busca de justiça social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3858, 23 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26484. Acesso em: 23 dez. 2024.

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