RESUMO: Abordagem sobre a alteração da data de vencimento do tributo por atos normativos infralegais. Inicia contextualizando o tributo, sua finalidade e conceito, discorrendo sobre os princípios do direito e princípios do direito tributário, traçando uma diferenciação entre lei e legislação tributária. Em destaque, discute a possibilidade ou não de alteração da data de vencimento do tributo por atos normativos infralegais. Discorre sobre os princípios da legalidade da Constituição Federal e estrita legalidade tributária prevista no Código Tributário Nacional. Analisa os dispositivos legais e constitucionais relacionados ao tema. Traz a posição atual da doutrina e decisões dos Tribunais Superiores com jurisprudências.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como objeto principal referenciar o estudo da alteração da data de pagamento do tributo por atos normativos infralegais, tema este cerne de discussões doutrinárias e jurisprudenciais, por refletir diretamente na relação obrigacional tributária.
Iniciamos o estudo contextualizando o tributo, sua finalidade e conceito, fazendo uma abordagem sobre princípios e princípios do direito tributário, antes de explorar os princípios da legalidade e estrita legalidade, utilizados estes como principal celeiro de discussões no âmbito do tema proposto.
Noutro momento traçaremos uma diferenciação dos termos “lei” e “legislação tributária”, e discutiremos a possibilidade ou não de alteração da data de vencimento do tributo por atos infralegais de acordo com os julgados mais recentes do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça quanto ao assunto, tudo em uma análise sob um ângulo constitucional e outro sob o prisma da legislação, sem deixarmos de destacar as contribuições doutrinárias predominantes.
Em meio ao processo constante de captação de receitas pelo Estado, as relações obrigacionais tributárias mostram-se em evidência, especialmente no que tange à possibilidade ou não de alteração de seu vencimento por meio de decretos do poder executivo ou outros atos normativos infralegais, o que traz à discussão se esta alteração deve respeitar ou não a exigência de lei.
Destarte, o tema referenciado encontra-se bastante discutido pelos Doutrinadores, tendo em vista o caráter positivista de interpretação adotada pelos Tribunais Superiores, o que compromete a segurança jurídica das relações entre o fisco e o contribuinte.
1. CONTEXTUALIZAÇÃO, FINALIDADE E CONCEITO DE TRIBUTO
Em meio à necessidade constante de arrecadação tributária decorrente do dever de cumprimento dos objetivos fundamentais dispostos no texto constitucional, o Estado busca meios de arrecadar recursos para manter sua estrutura e serviços que disponibiliza ao cidadão, sendo o tributo a sua principal fonte de receitas.
É o que dispõe a Constituição Federal de 1988[1] em seu artigo 3º:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Destarte, para alcançar os fins constitucionalmente previstos, o Estado intervém na economia desenvolvendo atividades para arrecadar, administrar e destinar estes recursos.
Nos termos do artigo 173 da Constituição Federal abaixo colacionado, quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou no caso de relevante interesse coletivo, o Estado poderá exercer atividade econômica como um particular, trajando as vestes de uma empresa privada, sujeitando-se ao regime próprio destas.
Dispõe o artigo 173, “caput” da CF/88[2] que:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
Ademais, mister destacar que o Estado poderá ainda arrecadar recursos explorando seu próprio patrimônio, isto é, quando o faz por meio de contratos realizados com os particulares, que são recursos oriundos de fontes não-tributárias, que Baleeiro[3] denomina de “receitas originárias” como sendo:
“as rendas provenientes dos bens e empresas comerciais ou indústrias do Estado, que os explora à semelhança de particulares, sem exercer os poderes de autoridade, nem imprimir a coercitividade à exigência de pagamentos ou utilização de serviços que o justificam, embora, não raro, os institua em monopólios”.
Nesse mesmo prisma de raciocínio, são as lições de Sabbag[4] ao definir a receita originária, como sendo “proveniente da exploração estatal de seus bens e empresas comerciais ou industriais, à semelhança de particulares, nas atividades de locação, administração ou alienação.”
Contudo, deve ser destacado que o exercício de atividade econômica é reservada ao setor privado, sendo a atuação estatal uma exceção e somente permitida nos casos enumerados no art. 173 da Constituição da República.
Como é elucidado por Machado[5], “o Estado exercita apenas atividade financeira, como tal entendido o conjunto de atos que o Estado pratica na obtenção, na gestão, e na aplicação de recursos financeiros de que necessita para atingir seus fins”.
Qualquer que seja a concepção de Estado que se venha a adotar, é inegável que ele desenvolve atividade financeira. Para alcançar seus objetivos precisa de recursos financeiros e desenvolve atividade para obter, gerir e aplicar seus recursos. Isto não significa que não possa atuar no campo econômico. E atua, com maior ou menor intensidade, ora explorando patrimônio seu, com o fim de lucrar, ora intervindo no setor privado da economia, na defesa da coletividade. De qualquer forma, pelo menos em princípio, o Estado não prescinde de recursos financeiros que arrecada do setor privado, no exercício de sua soberania.[6]
Ocorre que, para dar efetividade aos objetivos fundamentais estampados no artigo 3º da Constituição da República, somente as receitas originárias de recursos não seriam suficientes, e daí surgiu o tributo, denominado pela doutrina majoritária de receita derivada, tendo como principal função garantir recursos financeiros para o funcionamento do Estado, exercendo a função fiscal.
Por outro lado, não se poderia deixar de mencionar, que outra função atrelada aos tributos é a função extrafiscal ou não arrecadatória, quando os tributos são utilizados como instrumentos de regulação de oferta dos produtos tributados (v. g. imposto sobre importação, imposto sobre exportação, imposto sobre produtos industrializados, etc.), que no presente estudo não cabe enveredarmos, por não corresponder ao tema proposto.
Quanto às receitas derivadas, o Estado, de modo vinculado (art. 5º., II, CF/88), e valendo-se do seu poder de império, na execução de atividades que lhes são típicas, fará “derivar” para seus cofres uma parcela do patrimônio das pessoas sujeitas à sua jurisdição. Tais entradas intitulam-se “receitas derivadas” ou “de economia pública”, indicativas de receitas ordinárias obtidas à luz de imposição coativa e de manifestação soberana do Estado, no uso típico de sua autoridade ou de seu constrangimento direcionados à invasão patrimonial dos particulares.[7]
No que tange ao termo tributo, em várias acepções é utilizado, mas a definição técnica do significado de tributo, nos moldes do artigo 146, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, é dada por lei complementar.
Nessa toada, importa frisar que a Lei 5.172 de 1966 que instituiu o Código Tributário Nacional, apesar de formalmente tratar-se de lei ordinária federal quando da sua recepção pela vigente Constituição, ganhou força de lei complementar dentro do atual sistema tributário.
Assim, sendo recepcionada pela Constituição Federal com status de lei complementar, traz o Código Tributário Nacional[8] em seu artigo 3º a definição de tributo:
Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
E mesmo que a o legislador não tenha por costume trazer definições em textos de lei, no caso do tributo, devido aos vários conceitos que lhe eram dados pela doutrina, resolveu defini-lo e assim o fez no artigo 3º do Código Tributário Nacional.
2. PRINCÍPIOS DO DIREITO TRIBUTÁRIO
Após a Segunda Guerra Mundial, erguendo-se de um período de aguçada ruptura dos Direitos Humanos surgiram esforços voltados à valorização da pessoa humana, fundados em um novo modelo baseado na dignidade da pessoa humana e marcado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nesse momento, as Constituições se abrem aos princípios, que ao lado de regras, incorporam as exigências da justiça e dos valores éticos. Diante de um positivismo em crise, ganha relevo uma concepção fincada nos cânones axiológicos, assegurados em normas principiológicas, proporcionando ao sistema jurídico interno coerência e harmonia.
Nesse sentido, os princípios surgem como normas jurídicas de grande carga valorativa com relevância em relação a todas as demais normas jurídicas, servindo de caminho na interpretação de todo o sistema jurídico.
Não é outro o entendimento de MELLO[9]:
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.
Como do próprio nome deduz-se, princípio é aquilo que vem antes, primeiro, que serve de base a todo um fundamento futuro. Para o direito, são as bases de sustentação de todo o ordenamento jurídico, e no direito tributário não é diferente.
Quanto à compreensão a respeito dos princípios, várias são as concepções que tentam definir o real significado.
Há tempos, REALE[10] já definia princípios como:
[...] verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis.
Princípios são verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade.[11]
E sendo o sistema jurídico tributário brasileiro integrante do sistema jurídico nacional, submete-se aos princípios gerais do direito. Adicionalmente, apresenta princípios jurídicos próprios, que muitas vezes reafirmam ou especificam princípios gerais. Tais princípios da tributação encontram-se, muitos deles, descritos nos artigos 150 a 152 da Constituição Federal.
Significativas são as orientações de Machado[12]:
Sendo, como é, a relação de tributação uma relação jurídica e não simplesmente de poder, tem-se como induvidosa a existência de princípios pelos quais se rege. Dentre esses princípios destacamos aqueles que, em virtude de sua universalidade, podem ser considerados comuns a todos os sistemas jurídicos, ou pelo menos aos mais importantes. [...]
Tais princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do Poder. Em face do elemento teleológico, portanto, o intérprete, que tem consciência dessa finalidade, busca nesses princípios a efetiva proteção do contribuinte.
Como mencionado, os princípios guiam o jurista na interpretação das normas como verdadeiros vetores que dirigem a sua aplicação e alcance.
No caso do tema que orienta o presente trabalho, cabe destacar exclusivamente o princípio da legalidade tributária previsto no artigo 150, inciso I da CF, e o princípio da estrita legalidade disposto no art. 97 do CTN, cerne de discussão quanto à possibilidade ou não de alteração da data de pagamento do tributo por atos infralegais.
Como é cediço, a Constituição da República de 1988 dispõe em seu artigo 5º, inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Tal regramento constitucional revela o princípio da legalidade, pontualmente prestigiado pelo legislador constituinte.
Há séculos já existia a preocupação de frear o poder estatal quanto à cobrança de exações, no sentido de limitar a atuação tributária do Poder Público, até então caracterizada por discricionariedades, arbitrariedades e abusividades em tais cobranças.
O princípio da legalidade é multissecular, com previsão inaugural na Carta Magna inglesa, de 1215, do Rei João Sem Terra. À época a nobreza e a plebe, reunindo esforços e se insurgindo contra o poder unipessoal de tributar, impuseram ao príncipe João um estatuto, visando inibir a atividade tributária esmagadora do governo. Em outras palavras, objetivavam impor a necessidade de obtenção prévia de aprovação de súditos para a cobrança de tributos, do que irradiou a representação “no taxation whitouch representation”.[13]
Em nossa órbita doméstica, o princípio da legalidade tributária é previsão centenária, percorrendo todos os textos constitucionais, com exceção da Constituição Federal de 1937, omissa a respeito, podendo-se observá-lo, de modo genérico, no art. 5º, II, da atual Carta Magna sob a disposição “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.[14]
Ademais, o princípio da legalidade foi previsto, igualmente, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, base da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, quando dispôs em seu texto que as exigências do direito natural só podem ser determinadas pela lei.
Nas palavras de Lenza[15], o princípio da legalidade surgiu com o Estado de Direito, opondo-se a toda e qualquer forma de poder autoritário, antidemocrático. Segundo o mesmo autor, o princípio da legalidade já estava previsto no artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
O princípio da legalidade inserido que está no Título II da Constituição Federal vigente é uma garantia a todos os brasileiros e estrangeiros, estes em território nacional, tendo como principal objetivo limitar o poder estatal impedindo sua utilização com arbitrariedades.
Assim, como assevera Nogueira[16], “O princípio da legalidade tributária é o fundamento de toda tributação, sem o qual não há como se falar em Direito Tributário.
Contudo, para a plena realização, o princípio em questão exige a elaboração de lei e para isso, a Constituição Federal confere ao Poder Legislativo a função de criá-las, como órgão que reflete a vontade do povo, mas sempre levando em consideração critérios de razoabilidade e os balizamentos constitucionais. Daí a idéia de que o tributo deve ser consentido, ou seja, o povo deve autorizar por meio de seus representantes no legislativo que o Estado invada seu patrimônio com o objetivo de arrecadar tributos.
A preocupação do Poder Constituinte Originário em delimitar o poder soberano do Estado, sobremodo quanto ao seu poder de tributar, que o Estado faz de forma compulsória e invadindo o patrimônio do particular, contribuiu seguramente para que os Constituintes reforçassem em outro capítulo da Constituição o princípio da legalidade, o que fez quando dispôs na parte das limitações ao poder de tributar. Daí passou o Estado a ter sua atuação no campo das receitas derivadas incondicionalmente baseada na lei, limitado à reserva legal.
Nesse sentido, necessário destacar as lições de Machado[17]:
[...] O povo consenti que o Estado invada seu patrimônio para dele retirar os meios indispensáveis à satisfação das necessidades coletivas. Mas não é só isto. Mesmo não sendo a lei, em certos casos, uma expressão desse consentimento popular, presta-se o princípio da legalidade para garantir a segurança nas relações do particular (contribuinte) com o Estado (fisco), as quais devem ser inteiramente disciplinadas, em lei, que obriga tanto o sujeito passivo como o ativo da relação obrigacional tributária.
Enfim, o princípio da legalidade tributária confere ao âmbito tributário a exigência de lei para a criação ou majoração de tributos, limitando o poder coercitivo do Estado de exigir a exação, que no caso só poderá intervir no patrimônio do particular (contribuinte) se houver previsão ou autorização por lei.
Não obstante o disposto na Constituição Federal de 1988, o Código Tributário Nacional traz em seu artigo 97 os caracteres que a lei instituidora do tributo deve conter, também denominado como princípio da estrita legalidade, reserva legal ou tipicidade fechada, por trazer uma lista taxativa de elementos obrigatórios que deverão constar na lei criadora do tributo.
Coaduna com essas reflexões Coêlho[18] ao fazer menção ao princípio estrita legalidade, quando menciona que este princípio “é uma extensão lógica da legalidade material”
Vejamos o que dispõe o artigo 97 do CTN:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
§ 1º Equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso.
§ 2º Não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo.
Como se depreende do dispositivo de lei colacionado, o princípio da estrita legalidade determina quais as matérias que se submetem à exigência de lei, ou seja, ao princípio da legalidade, especificando os assuntos que exigem a previsão legal.
Conforme se observa do artigo mencionado acima, a lei instituidora do tributo deverá obrigatoriamente conter instituição do tributo ou a sua extinção, a majoração ou redução, a definição do fato gerador da obrigação principal, a fixação da alíquota e base de cálculo do tributo, as penalidades, como também a hipótese de exclusão, suspensão e extinção do tributo.