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A castração química à luz dos princípios da proporcionalidade, dignidade e vedação de penas cruéis:

uma sucinta reflexão sobre o projeto de lei 5398/13

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Agenda 25/03/2014 às 14:18

Analisa-se o Projeto de Lei 5398/13, que trata da aplicação de castração química a condenados por crimes contra a liberdade sexual para que possam ter livramento condicional ou progressão de regime.

Resumo: O artigo analisa brevemente o Projeto de Lei 5398/13, que trata da aplicação de castração química a condenados por crimes contra a liberdade sexual para que possam ter livramento condicional ou progressão de regime, versando sobre sua manifesta inconsistência por ser temporária, e inconstitucionalidade diante da ordem constitucional vigente, em especial devido à patente violação dos princípios da proporcionalidade, dignidade e vedação de penas cruéis.

Palavras-chave: Castração química. Inconstitucionalidade. Projeto de Lei.


INTRODUÇÃO

Não bastasse o já arquivado Projeto de Lei 552/2007, a polêmica da castração química de criminosos voltará a ser analisada nas casas do Poder Legislativo Federal, “graças” a novo projeto de lei do deputado federal Jair Bolsonaro (PP do RJ).

Visando a inserção de um parágrafo ao art. 83 do Código Penal, o projeto pretende exigir a realização de tratamento químico para que o apenado possa ser beneficiado pelo livramento condicional, instituto que permite a antecipação provisória da liberdade, sob certas condições a serem cumpridas pelo recuperando.

Apesar de não pretender a criação de medida compulsória, novamente o legislador, influenciado pelo sensacionalismo da mídia e revolta da população, visa à criação de mecanismos repressores da liberdade e dignidade às avessas da recente ordem constitucional.

Com intuito de criar novas reflexões acerca do assunto, o artigo adentrará numa conceituação e breve análise do instituto da castração química, versando em seguida de pormenores do Projeto de Lei 5398/13, e tratando, a seguir, de alguns princípios constitucionais que acabarão violados por sua aplicação.


CASTRAÇÃO QUÍMICA: CONCEITO E APLICAÇÃO 

A castração química “[...] é uma forma temporária de castração ocasionada por medicamentos hormonais para reduzir a libido. [...] É uma medida preventiva ou de punição àqueles que tenham cometido crimes sexuais violentos, tais como estupro e abuso sexual infantil.[1]

No Brasil, apesar de inexistir qualquer legislação que regulamente aplicação da castração química, uma parcela da sociedade vem há anos tentando implantá-la sob o pretexto de manifesta hediondez de delitos contra a liberdade sexual, e inexistência de violação a direitos e garantias fundamentais por tal medida.[2]

O projeto mais conhecido, que andou tramitando pelo legislativo federal, foi o PL 552/2007 de relatoria do senador Marcelo Crivela (PR), que visava a realização de castração química a criminosos considerados pedófilos:

Art. 1º Fica acrescido ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, o art. 226-A:

Art. 226-A. Nas hipóteses em que o autor dos crimes tipificados nos arts. 213, 214, 218 e 224 for considerado pedófilo, conforme o Código Internacional de Doenças, fica cominada a pena de castração química.[3]

Apesar de absurda concordância por parte da Comissão de Direitos Humanos, que entendia o projeto de lei como possível e constitucional, ele foi arquivado em janeiro de 2011[4].

Tal medida já vem sendo adotada em países como os EUA e Polônia, nos quais é aplicada em pessoas que cometem crimes sexuais, como estupro e pedofilia. Nos EUA, conforme dados trazidos pela Wikipédia[5], pelo menos nove Estados usam da castração química em criminosos que cometem abusos sexuais. O Estado da Califórnia foi o primeiro a prever em seu Código Penal, a castração compulsória como punição para criminosos sexuais em 1996. De lá pra cá, vários outros Estados passaram a efetivar disposições similares em sua legislação penal.

Na Polônia, uma lei foi publicada em setembro de 2009, para impor a castração química a molestadores de crianças. Na Europa a questão tem sido bem discutida em países como a Inglaterra, no qual uma petição eletrônica de mais de 30 mil assinaturas vem pedindo uma análise da questão pelo legislativo.

Já na Coreia do Sul foi noticiada a primeira castração química em maio de 2012, após aprovação de lei pelo país[6]. A Rússia também foi outro país, que no ano de 2011, por maioria, aprovou em 2011 a castração química de pedófilos[7].


BREVE ANÁLISE DO CONTEÚDO DO PROJETO DE LEI 5398/2013 

O Projeto de Lei 5398/2013 prevê no seu primeiro artigo o acréscimo de um parágrafo único ao art. 83 do Código Penal, visando exigência de tratamento químico para concessão do benefício de livramento condicional aos condenados por estupro, conforme a seguir transcrito:

Art. 1º O parágrafo único do Art. 83, do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 83. (...) Parágrafo único. Para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir e, nos casos dos crimes previstos nos artigos 213 e 217-A, somente poderá ser concedido se o condenado já tiver concluído, com resultado satisfatório, tratamento químico voluntário para inibição do desejo sexual.”

Além disso, o projeto em comento visa aumento da pena para o crime de estupro em seus artigos 2º e 3º. O estupro simples (art. 213), terá pena de 9 a 15 anos, e o estupro de vulnerável pena de 12 a 22 anos.

Prosseguindo, o artigo 4º veda a progressão de regime a reincidentes específicos, dizendo de sua possibilidade, somente se realizarem castração química. In verbis:

 Art. 4º O § 2º do artigo 2º, da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 2º. (...)  § 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente,e, se reincidente específico nos crimes previstos nos artigos 213 e 217-A, somemente poderá ser concedida se o condenado já tiver concluído, com resultado satisfatório, tratamento químico voluntário para inibição do desejo sexual. (NR)”

Apesar da intenção de reduzir a reincidência em estupros, o projeto de lei vai em nítido desencontro ao recente paradigma constitucional pátrio. Apesar de não impor expressamente a pena de castração química, o PL 5398/2013 a insere na legislação penal como “benefício”, criando ainda, em caso de reincidência específica, o já extirpado e odiado impedimento à progressão de regime prisional.

Após análise de alguns princípios dentre os mais intrinsecamente ligados à questão, o artigo passará por reflexão sobre a patente inconstitucionalidade dos dispositivos acima citados.


A INCONSTITUCIONALIDADE DA CASTRAÇÃO QUÍMICA DIANTE DA ATUAL ORDEM CONSTITUCIONAL PÁTRIA

“Condeno o cabra Manoel Duda pelo malifício que fez a mulher de Xico Bento e por tentativa de mais malifícios iguais, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete. A execução da pena deverá ser feita na cadeia desta villa. Nomeio carrasco o Carcereiro. Feita a capação, depois de trinta dias o Carcereiro solte o cujo cabra para que vá em paz.[8]

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Soa bastante reprovável perante o recente ordenamento jurídico a prolação de sentença com teor tão cruel.

Apesar do banimento de penas cruéis do ordenamento brasileiro, por algumas vezes o legislador, refletindo a indignação de certas parcelas da sociedade, e bombardeios da mídia, costuma levar à Casa Legislativa algumas aberrações que são até motivo de piadas[9].

Contudo, apesar da onda de mudanças que a legislação penal vem sofrendo (principalmente para criminalizar determinadas condutas ou majorar penas) não é com medidas drásticas que um Estado pune atitudes das mais repugnantes.

Aceitar a castração química a criminosos sexuais pode corresponder à concordância de que homicidas sejam enforcados, ladrões tenham o braço decepado e difamadores tenham a língua cortada. Um país democrático jamais pode restringir tanto as liberdades, pois como lembra as palavras de Silva Sanchéz em sua obra “A Expansão do Direito Penal”:

 Ali onde chovem leis penais continuadamente, onde por qualquer motivo surge entre o público um clamor geral de que as coisas se resolvam por novas leis penais ou agravando as existentes, aí não se vivem os melhores tempos para a liberdade- pois toda lei penal é uma sensível intromissão na liberdade, cujas conseqüências serão perceptíveis também para os que as exigiram de forma mais ruidosa. (2002, p.19).

Tanto o povo quanto a mídia, desolados pela alta criminalidade, ainda esperam do direito penal alguma solução para tantas mazelas criminais. Apenas haverá modificações na criminalidade e reincidência, diante de verdadeiras políticas públicas que se preocupem com a busca da igualdade social e ressocialização dos apenados. No Brasil, parece que tal possibilidade continua a ser descartada.

Antes de adentrar mais precisamente na crítica ao projeto de lei em comento, importante uma leitura rápida de alguns preceitos constitucionais que vão a seu desencontro.

3.1. Da violação do princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade pode ser entendido como aquele pelo qual fins e meios são proporcionais entre si. Acerca disso explicita o grandessíssimo constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho em sua obra “Direito Constitucional”:

 Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação do meio para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à «carga coactiva» da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de «medida» ou «desmedida» para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim. (1993, p. 382-383) (grifou)

Quanto a tal princípio, ensina o STF por meio do HC 94404, constante do Informativo 516:

[...] O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público. Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade. Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente ao princípio da proporcionalidade, que se qualifica – enquanto coeficiente de aferição da razoabilidade dos atos estatais (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 46, item n. 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros) – como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público. Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado – inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa – adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do “due process of law”. (STF- HC 94404. Publicado no Inf.516 do STF).

Através da leitura dos citados, depreende-se que o poder judiciário precisa evitar que excessos prejudiquem a aplicação da lei no caso concreto. Deve atuar com ponderação, de forma racional, para que jamais retire do sujeito direitos que lhe são inerentes. Nessa linha lembra o professor Alexandre de Moraes em seu “Direito Constitucional”:

 Para que o Estado, em sua atividade, atenda aos interesses da maioria, respeitando os direitos individuais fundamentais, se faz necessário não só a existência de normas para pautar essa atividade e que, em certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode derrogar (Estado de Direito), como também há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo para se ponderar até que ponto se vai dar preferência ao todo ou às partes (Princípio da Proporcionalidade), o que também não pode ir além de um certo limite, para não retirar o mínimo necessário a uma existência humana digna deda prova, ser chamada assim”. (TORQUATO AVOLIO apud MORAES, 2006, p.126).

A partir do momento que o Poder Público cria medida que pretende efetivar pena gritantemente superior à atitude do delinqüente (como a castração química), não há dúvidas de que o princípio da proporcionalidade é intimamente violado.

Não é razoável, ainda que de forma facultativa, que pessoas sejam castradas quimicamente para que possam aferir benefícios penais. Tal medida, pretendida pelo PL 5398/2013, impede progressão de regime e aplicação de benefícios legais, atuando em total inobservância do direito constitucional à individualização da pena (Art. 5º, XVLI).

A castração química pune o transgressor por duas vezes, pois exige para que seja beneficiado, tenha que se submeter a tratamento.

3.2. Da violação do princípio da dignidade humana

O princípio da dignidade da pessoa humana visa garantir a cada um o mínimo para suprimento de suas necessidades básicas, papel também do Estado e do STF, que conforme manifestação do Ministro Celso de Mello no Agravo de Instrumento 677274, devem se esforçar ao máximo para auxiliar à garantia do mínimo existencial a todos.

 NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). Salientei, então, em tal decisão, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, que se identificam – enquanto direitos de segunda geração (como o direito à educação, p. ex.) – com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO). É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal. (Inf. 520 STF)

A preservação do mínimo necessário não pode ser obliterada pelo envolvimento de alguém em um crime, pois conforme a letra da própria Carta Magna, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Por isso, jamais é possível permitir que ocorra a exploração de direitos dos criminosos, pois como rememora o Min. Carlos Velloso no RE 359.444:

 Sendo fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, o exame da constitucionalidade de ato normativo faz-se considerada a impossibilidade de o Diploma Maior permitir a exploração do homem pelo homem. (RE 359.444. Relator Min. Carlos Velloso. Publicado em 28 de maio de 2004.)

Adentrando nos pormenores do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é preciso expressar que se trata de um dos fundamentos da República Brasileira, significa mais do que um direito, é uma razão de ser do Brasil. Sem garantir a dignidade a seus pátrios, uma república jamais conseguirá alcançar à isonomia. Segundo Alexandre de Moraes em seu “Direito Constitucional”:

 A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (2006, p.16)

Acerca do tema também elucida o Prof. Kildare Carvalho em seu “Direito Constitucional” (2006, p. 156):

 A dignidade da pessoa humana significa ser ela, diferentemente das coisas, um ser que deve ser tratado e considerado como um fim em si mesmo,e não para a obtenção de algum resultado. A dignidade da pessoa humana decorre do fato de que, por ser racional, a pessoa é capaz de viver em condições de autonomia e guiar-se pelas leis que ela própria edita: todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas, já que é marcado, pela sua própria natureza, como fim em si mesmo, não sendo algo que pode servir de meio, o que limita consequentemente, o seu livre arbítrio [...]

Se a dignidade é algo intrínseco à condição de ser humano, toda conduta que prevê sua violação deve ser totalmente repelida, pois retira do indivíduo algo que lhe permite sentir-se isonômico, igual aos demais. Apesar de cerceadora da liberdade, a prisão permite o retorno do apenado à vida em sociedade de maneira digna e normal.

Tal não ocorre no caso de uma castração química, em que os efeitos, apesar de se diminuírem com o tempo (pois o tratamento ocorre apenas durante a prisão), continuarão a afetar a vida sexual daquele que tomou os medicamentos, suprimindo seu direito de constituir família (art. 226 da CRFB/88), e de ter uma vida normal em sociedade.

Mister asseverar mais uma vez que não é através de atitudes violentas que se pune a violência. Quanto a isso, é importante demonstrar opinião extraída de blog que tratou do assunto no artigo “Flertando com o desastre”:

 “Mas Sally, você não gostaria que um homem que te estuprou fosse castrado?”. Sim, castrado e morto. Gostaria sim. Mas não é assim que se fazem leis, pensando em revanche. Se fazem pensando no melhor para a sociedade. E nosso sistema penal não tem por objetivo a vingança, como por exemplo nos EUA, onde das famílias das vítimas vão bater palminhas para a execução do assassino. Se fosse comigo é claro que eu ia querer tudo de ruim para a pessoa, mas a pergunta é: eu quero viver em um país onde o Estado pode fazer tudo de ruim a um condenado? Minha raiva pessoal não deve virar lei. Se virar, será um perigo.[10]

Portanto, permitir que a castração química seja prevista, ainda que como um “benefício” dentro da legislação penal, desrespeita efetivamente à dignidade humana. Possibilita, ainda que voluntariamente, que a dignidade do indivíduo seja violada, em prol de diminuição do cárcere.

3.3. Da violação à vedação de penas cruéis e tratamento degradante

Além da afronta aos princípios da dignidade e proporcionalidade, a pena de castração química, face à CRFB/88, ainda desrespeita dois direitos fundamentais: a vedação à prática de tortura e tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III); e a proibição de penas cruéis (art. 5º, XLVII, e)

A castração química trata de pena degradante, que nos conformes do Aurélio (2004) priva de dignidades, torna vil, estraga, deteriora aquele que é submetido a ela. É ainda cruel, pois desumana, dolorosa, prejudica enormemente a vida daquele que a receba como parte da reprimenda. Acerca do assunto, elucida Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar em artigo que versa acerca da castração química:

 A castração química também não é isenta de problemas. A privacidade do condenado é brutalmente atingida, pela interferência em sua integridade física. Além disso, a maior parte da doutrina nacional considera que qualquer pena que atinja o corpo do condenado é cruel e, portanto, vedada constitucionalmente [...] a castração, física ou química, é inaceitável como pena em nosso ordenamento jurídico, e os projetos de lei nesse sentido são flagrantemente inconstitucionais. A esse respeito, vide a contundente crítica de Spalding à lei da Flórida que prevê essa pena. Apesar de se referir ao ordenamento jurídico norte-americano, suas conclusões aplicam-se perfeitamente à situação brasileira.[11]

Num país em que vige a plena democracia, não se pode mais permitir o retorno a um Estado de exceção, no qual haja disposições legais como a pleiteada pelo Projeto de Lei 552/2007. A jurisprudência do STF é cediça em afastar continuamente qualquer modalidade de juízo condenatório e degradante nas decisões[12], e certamente o fará em caso de aprovação de qualquer aberração jurídica como a castração química.

Por mais que a castração química seja aplicada apenas na vigência da reprimenda penal, inexiste dúvida quanto a seu nítido efeito colateral, que se prolongará para o resto da vida daquele que a receber[13].

3.4. O projeto de lei 5398/2013 e a recente ordem constitucional: algumas reflexões

Como visto anteriormente, os princípios dispostos mais essencialmente no art. 5º do Diploma Maior brasileiro vedam que o Poder Público tome medidas que violem os direitos e garantias mais fundamentais de cada ser humano.

O Projeto de Lei 5398/2013, apesar de não apresentar redação que imponha obrigatoriedade à castração química peca gravemente por inseri-la como moeda de troca para o apenado. Isso, porque somente permite a concessão de livramento condicional ou a progressão de regime, caso concorde com a realização de “tratamento químico voluntário para inibição do desejo sexual.”

A exigência pretendida cria diversas polêmicas.

A primeira, diz sobre a implementação por meio do sistema jurídico penal, de medidas de natureza coercitiva aos criminosos, já que nenhum outro ramo do direito tem o condão de obrigar alguém a “se tratar”[14].

A medida poderá levar futuramente à exigência, para fins de progressão ou benefícios, que toxicômanos, bêbados, cleptomaníacos, dentre outros, tenham que passar por tratamento específico.

Infelizmente tal lamentável ocorrência desvirtua a própria natureza do direito penal. De ramo voltado à “fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação”[15], ele passará a se dedicar a medidas voltadas ao tratamento e correção de problemas psíquicos e sociais.

Essa não é a função da ciência criminal.

Além disso, direitos subjetivos do apenado não podem ser vedados por leis ordinárias, usados como se fossem "benefício", salvo se possibilitados pela Constituição.

O STF já deixou muito claro em incansáveis precedentes que são inconstitucionais a vedação à progressão de regime,[16] concessão de liberdade provisória,[17] e substituição da prisão por pena restritiva de direitos[18].

Tais exemplos reforçam muito a compreensão de que qualquer medida que imponha restrições ao direito de progressão de regime ou concessão de livramento condicional, exigindo submissão a práticas cruéis, desumanas para deferimento, não serão bem recebidas pelo Guardião da Carta Maior e pelo Poder Judiciário, pois suprimem direitos, garantindo-os somente para os que aceitem "se tratar".

Saindo do campo jurídico, a castração química, conforme estudos realizados por profissionais da área de saúde, não resolve efetivamente o problema, pois cessado o tratamento, os efeitos também findarão[19], subsistindo aqueles colaterais como a depressão e diabetes.  Portanto, ela não auxiliará significativamente na redução de delitos com fins libidinosos. Cessado o tratamento, gradativamente há retorno da libido.

Não bastasse, muitas pesquisas realizadas[20] deixam claro que o melhor a se fazer para reduzir a reincidência nesses casos, é o tratamento e acompanhamento psíquico, pois muitos criminosos têm histórico de abusos na infância e grandes rupturas. Sobre o assunto interessante reportagem constante no sítio via blog:

Para o psicólogo e psicodramatista Maher Musleh trabalha há cerca de 20 anos com o atendimento de pessoas que cometerem o crime de abuso sexual de crianças e adolescentes. Para Musleh, que utiliza o termo “vitimizadores sexuais”, compreender os motivos por trás do abuso é uma forma de evitar sua reincidência. “Não desisto de cuidar do vitimizador, porque meu objetivo é o fim da violência sexual de crianças e adolescentes”, diz. A maioria dos abusadores atendidos por Musleh foram vítimas durante a infância e, segundo ele, tais pessoas tendem a repetir o mesmo padrão de violência. Para o psicólogo, é preciso olhar de forma mais humana para o vitimizador e, além da punição, oferecer tratamento terapêutico, o que poderá mostrar-se uma medida bastante eficaz. De acordo com o psicólogo, quando os abusadores compreendem que estão repetindo o que sofreram quando crianças, a maior parte não volta a reincidir na agressão após o tratamento[21].

Enfim, apesar da existência de parcela da sociedade favorável a adoção das medidas trazidas pelo deputado Jair Bolsonaro, incentivando a realização de castração química (pois ela não será compulsória), a questão merece ser melhor discutida, pois está muito longe de ser, conforme acima versado, a solução aos crimes contra a liberdade sexual.

Sobre o autor
Pedro Henrique Santana Pereira

É licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei e Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves. Advogado militante e professor . Pós-graduado em Direito Público pela UCAM e em Educação Ambiental pela UFSJ. Pós graduado em Direito Penal e Processual Penal, Tribunal do Júri e Execuções Penais, LGPD, Direito Previdenciário, Direito Imobiliário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Pedro Henrique Santana. A castração química à luz dos princípios da proporcionalidade, dignidade e vedação de penas cruéis:: uma sucinta reflexão sobre o projeto de lei 5398/13. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3919, 25 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27058. Acesso em: 23 dez. 2024.

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