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Aborto: um enfoque à luz do pacto internacional sobre direitos civis e políticos e da convenção americana de direitos humanos

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Agenda 02/04/2014 às 11:50

A revisão da legislação penal quanto ao aborto é medida essencial para a defesa dos direitos à vida, à saúde, à autonomia, ao respeito e à dignidade das mulheres. E, sobretudo, um imperativo de direitos humanos, sob a perspectiva da saúde pública e da justiça social.

Resumo:  O presente artigo trata do tema do aborto à luz do direito comparado e dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro, em especial o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Estabelece, como premissa, a existência de um atraso pontual da legislação pátria, que criminaliza o aborto, quando comparada à legislação de países desenvolvidos, que permitem a interrupção da gravidez nos primeiros estágios da gestação. O aborto, principalmente durante o primeiro trimestre de gestação, já foi eliminado dos códigos penais de diversas partes do mundo. A maioria dos países desenvolvidos do Atlântico Norte e da Europa descriminalizou tal prática durante os primeiros estágios da gestação, de modo que a restrição severa ao aborto é medida prevalecente, apenas, nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Paralela e contrariamente a esse contexto de privação de autonomia individual da mulher brasileira, firmou-se o processo de universalização, positivação e especificação dos direitos humanos em âmbito internacional, legitimando a preocupação, globalizada, a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Isso porque, em face do avanço dos direitos humanos em nível global, a liberdade de procriação não pode ser objeto de manipulação estatal. Nesse sentido, com base na observação do tratamento internacional conferido à interrupção voluntária da gravidez, necessário se faz a cristalização de novos valores sociais sobre os direitos fundamentais da mulher no mundo contemporâneo, de modo que, sob uma perspectiva sociojurídica, esses direitos não podem ser negligenciados quando se buscam soluções mais justas e adequadas para a ultrapassagem dessa retrógrada fase de proibição do aborto. Essa é a problemática abordada pelo presente artigo.

Palavras-chave: 1. Aborto. 2. Legislação Brasileira. 3. Tratados Internacionais de Direitos Humanos. 4. Direito Internacional


1      INTRODUÇÃO

A análise do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos fundamenta o entendimento da possibilidade do direito de se legalizar o aborto com base nos direitos e garantias individuais (liberdade, intimidade, privacidade, autonomia reprodutiva), e sociais (saúde) da mulher.

As evidências têm demonstrado que a simples proibição do aborto em nada tem contribuído para diminuir sua prática entre as mulheres. Constata-se que países com legislações restritivas apresentam taxas mais elevadas de aborto entre mulheres em idade reprodutiva do que países que asseguram ampla autonomia da mulher em decidir pelo destino da gravidez, nos quais as taxas de aborto estão entre as mais baixas. Nesse contexto, o aborto já foi amplamente eliminado dos códigos penais, principalmente durante o primeiro trimestre de gestação, a exemplo do Canadá em 1969, Estados Unidos (1973), França (1975), Austrália (1975), Nova Zelândia (1977), Itália (1978), Holanda (1980), Espanha (1985), Alemanha (1993), tornando a proibição total uma medida que prevalece, apenas, nos países em desenvolvimento[1].

No Brasil, o aborto é considerado crime, com duas exceções: em caso de risco de vida para a mulher e em caso de estupro[2]. Apesar disso, dados coletados em todo Brasil urbano, comprovem que uma em cada cinco mulheres entre 18 e 40 anos de idade  já  realizou pelo menos um  aborto. Isso significa que mais de cinco milhões de mulheres em idade reprodutiva, ou 15% das mulheres nessa faixa etária, já realizaram o aborto[3].

Paralelamente a esse contexto, vivencia-se uma fase de universalização, positivação e especificação dos direitos humanos, sendo legítima e necessária a preocupação a respeito do modo pelo qual os habitantes de outros Estados são tratados, uma vez que a proteção dos direitos humanos não deve ser reduzida ao domínio reservado do Estado, isto é, não se deve restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional, o que inclui o tratamento dispensado ao tema alusivo ao aborto.

Com base no exposto, observa-se que a legislação interna, restritiva, e punitiva está em total desconexão com os parâmetros internacionais, contrariando, assim os princípios que regem as relações internacionais da República Federativa do Brasil, em especial a prevalência dos direitos humanos[4], consagrada no art. 4º, II, da Carta Magna. Assim, questiona-se se seria possível um avanço no plano legal associando o aborto aos direitos e garantias individuais (liberdade, intimidade, privacidade, autonomia reprodutiva), e sociais (saúde) da mulher, sem conflitar com a Norma Fundamental e com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados por nosso país. 

A metodologia será pautada no método bibliográfico.


2      OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES COMO DIREITOS UNIVERSAIS

A universalidade é uma das características básicas dos direitos humanos[5], reconhecida no preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH):

(...) o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo[6].

Tal característica significa dizer que os direitos humanos se estendem a todos os seres humanos existentes no planeta e tem como base a ideia de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e a titularidade de direitos. Dessa forma, a dignidade humana é colocada como o fundamento dos direitos humanos, pressuposto para o estabelecimento de uma ordem pública mundial, visto que abriga os valores considerados básicos da humanidade.

Ao fixar a ideia de que os direitos humanos são direitos universais decorrentes da dignidade humana, pressupõe-se que tais direitos não derivam das peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade, portanto, independente da cultura em que o indivíduo esteja inserido, cada ser humano, em sua individualidade, pelo simples fato de ter nascido, tem dignidade e direitos iguais a qualquer outro. Conforme esclarece Emmanuel Ribeiro[7], trata-se de universalizar os valores embutidos na ideia de dignidade humana, da qual decorre uma série de direitos que precisam ser institucionalizados e concretizados para garantir proteção, segurança e bem-estar a cada um dos membros da sociedade. Assim, cada sociedade em particular deve introduzir em sua estrutura normativa jurídica esse mínimo comum que garanta uma existência digna para os seus membros.

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Nesse sentido, a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio restrito do Estado, tampouco se limitar à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque se constitui em tema de interesse internacional:

O Direito Internacional dos Direitos Humanos pressupõe como legítima e necessária a preocupação de atores estatais e não estatais a respeito do modo pelo qual os habitantes de outros Estados são tratados. A rede de proteção dos direitos humanos internacionais busca redefinir o que é matéria de exclusiva jurisdição doméstica dos Estados[8].

Na medida em que há a cristalização da ideia de que o indivíduo, na condição de sujeito de Direito, deve ter direitos protegidos na esfera internacional, passam a ser admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos, e a noção tradicional de soberania absoluta do Estado passa a sofrer um processo de relativização, permitindo formas de monitoramento e responsabilização internacional, quando os direitos humanos forem violados[9].

Dessa forma, o consenso internacional a respeito de temas centrais focado nos direitos humanos, através da adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais, passam a ser admitidos como reflexo da consciência contemporânea compartilhada pelos Estados de que os direitos humanos devem ser tratados globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase[10].

O primeiro tratado de fundamental importância para a proteção dos direitos humanos das mulheres de âmbito global foi a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher[11], de 1979[12], que dentre suas previsões, consagrou a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação contra as mulheres, a fim de que se garantisse o pleno exercício de seus direitos civis e políticos, como também de seus direitos sociais, econômicos e culturais. No dizer de Andrew Byrnes:

Inúmeras previsões da Convenção também incorporam a preocupação de que os direitos reprodutivos das mulheres devem estar sob o controle delas próprias, cabendo ao Estado assegurar que as decisões das mulheres não sejam feitas sob coerção e não sejam a elas prejudiciais, no que se refere ao acesso às oportunidades sociais e econômicas[13].

Percebe-se, nessa Convenção a semente de todo um desenvolvimento normativo posterior no tocante à construção conceitual dos direitos reprodutivos, como direitos que demandam do Estado um duplo papel: de um lado negativo – dimensão própria dos direitos civis, como a não discriminação, o espaço da autonomia e da autodeterminação no exercício da sexualidade e reprodução – e de outro, positivo e promocional – dimensão própria dos direitos sociais, como o direito à saúde, mediante a implementação de políticas públicas positivas pelo Estado.

Em 1993, a Declaração de Direitos Humanos de Viena, que reitera a concepção de universalidade da DUDH[14], afirma, em seu parágrafo 18, que os direitos humanos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais[15].

Esses delineamentos foram aprimorados e consolidados a partir do Plano de Ação da Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994 e pela Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, que, embora não sejam tratados internacionais, mas declarações, apresentam valor jurídico, na medida em que deles são extraídos princípios internacionais, que constituem importante fonte do Direito Internacional a nortear e orientar a interpretação e a aplicação do Direito[16].

Feitas essas considerações sobre o alcance da concepção contemporânea de direitos humanos das mulheres, passa-se à reflexão do aborto no cenário internacional.


3 SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS:

A universalização dos direitos humanos fez com que os Estados consentissem em submeter ao controle da comunidade internacional o que até então era de seu domínio reservado, trazendo a necessidade de implementação de direitos comuns, mediante a criação de uma sistemática internacional de monitoramento e controle. Como a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, não apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, se faz necessário assegurar, de maneira juridicamente obrigatória, a observância dos preceitos nela contidos, é assim que surgem, em 1966[17], dois tratados internacionais distintos: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que passam a constituir referências necessárias para o exame do regime normativo de proteção internacional dos direitos humanos.

A seguir a análise do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, mas especificamente a análise de seu art. 6º, o qual dispõe sobre o direito à vida.

3.1 A proteção à pessoa humana conferida pelo Pacto Internacional Dos Direitos Civis e Políticos de 1966

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, elaborado em 1966, pela Assembleia Geral da ONU só entrou em vigor, em 1976, ao atingir o número mínimo de ratificações. Foi aprovado pelo Brasil em 1991 e entrou em vigor em 1992. Tal Pacto reafirma alguns dos ideais trazidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, introduzindo tais direitos entre os tratados de cumprimento obrigatório, e, principalmente, trazendo medidas contra a violação destes.

Quanto ao catálogo de direitos civis e políticos propriamente dito, o Pacto não só incorpora inúmeros dispositivos da DUDH, com maior detalhamento, como também estabelece o elenco desses direitos[18].

Dentre os principais direitos e liberdades contemplados pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos, está o direito à vida, consagrado em seu art. 6º, da seguinte forma: “O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido por lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”.

Ao dispor que o direito à vida é inerente à pessoa humana, o referido dispositivo leva a compreensão de que falar em vida humana e em pessoa humana não é a mesma coisa, e, assim, a proteção à vida do nascituro não é equivalente àquela proporcionada após o nascimento. Esse é o entendimento esposado pelo jurista Daniel Sarmento, em sua obra Legalização do Aborto e Constituição[19], e que tem prevalecido amplamente no mundo[20], como se pode, assim, observar:

(...) o nascituro, embora já possua vida, não é ainda pessoa. Isto, frise-se bem, decorre não apenas da lei. Recorde-se, no particular, que o Código Civil brasileiro é expresso ao estabelecer, logo no seu art. 2º, “que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos o nascituro”. [...] Neste ponto cumpre esclarecer que falar em vida humana e em pessoa humana não é a mesma coisa. Indiscutivelmente o embrião pertence a espécie homo sapiens, sendo, portanto, humano [...]  Possui o embrião identidade própria caracterizada pelo fato de que constitui um novo sistema em relação à mãe e é dotado de um código genético único, trata-se, portanto, de autêntica vida humana, e como projeto de pessoa, merece já o nascituro a proteção do ordenamento e da Constituição. Não, porém, o mesmo grau de proteção que se confere à pessoa[21].

Nesse mesmo sentindo, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao comentar a Constituição da República Portuguesa anotada[22], esclarecem:

A Constituição não garante apenas o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas. Protege igualmente a própria vida humana, independentemente dos seus titulares, como valor ou bem objectivo (...) Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito de vida humana parece abranger não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa (...).. É seguro, porém, que (a) o regime de protecção da vida humana, enquanto simples bem constitucionalmente protegido, não é o mesmo que o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, no que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (v. g., vida, saúde, dignidade, liberdade da mulher, direito dos progenitores a uma paternidade e maternidade consciente); (b) a protecção da vida intra-uterina não tem que ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento, desde a formação do zigoto até ao nascimento;(c) os meios de protecção do direito à vida designadamente os instrumentos penais podem mostrar-se inadequados ou excessivos quando se trate da protecção da vida intra-uterina."[23]

É possível notar que esse entendimento reconhece a tutela constitucional da vida intrauterina, mas atribui a ele uma proteção mais débil do que a concedida à vida extrauterina. Dessa forma, não nega à vida em formação qualquer proteção, porém, não a iguala por completo à da pessoa que já nasceu, uma vez que o embrião se encontra somente a caminho de se tornar homem.

Portanto, é possível concluir que a proteção à vida embrionária não possui peso absoluto; de forma que tal direito há que ser ponderado quando em confronto com os direitos fundamentais das pessoas já nascidas, in casu, os direitos das mulheres à saúde, privacidade, liberdade e autonomia reprodutiva, de modo a haver uma harmonização dos preceitos contidos não só na Constituição da República Federativa do Brasil como também em outros tratados internacionais sobre direitos humanos.


4 SISTEMA REGIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS – SISTEMA INTERAMERICANO

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos pode apresentar diferentes âmbitos de aplicação. Assim, podemos falar em dois sistemas: o sistema global e o regional. Os instrumentos de direitos humanos produzidos no âmbito das Nações Unidas, como, por exemplo, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, acima analisado, representam os Estado participantes da comunidade internacional; já os instrumentos que buscam internacionalizar os direitos humanos no plano regional, como, particularmente, na Europa, América e África, integram os sistemas regionais de proteção. Tal divisão visa a um consenso político mais facilitado.

A Convenção Americana de Direitos Humanos – analisada adiante – é o principal e mais importante instrumento do sistema regional interamericano de proteção dos direitos humanos.

4.1 A proteção à vida conferida pela Convenção Americana de Direitos Humanos (1969).

A Convenção Americana de Direitos Humanos, denominada, também, de Pacto de San José da Costa Rica, foi assinada em San José, Costa Rica, em 1969, entrando em vigor em 1978, sendo ratificada pelo Brasil, apenas, em 1992.

Substancialmente, ela assegura um catálogo de direitos civis e políticos similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Dentre os direitos consagrados, dispõe, no item 4.1, sobre o direito à vida da seguinte forma:

4.1Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

  Observa-se que o Pacto de San José protege a vida desde a concepção, reforçando a Teoria Concepcionista[24], pela qual o ser humano adquire personalidade jurídica desde a fecundação, sendo já considerado pessoa, ainda que em situação extracorpórea. É com base, nessa Teoria, que os segmentos que reprovam a liberalização do aborto fundamentam a incompatibilidade instransponível entre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez e o disposto no Pacto.

  De fato, uma primeira impressão pode dar margem ao entendimento de que o Pacto de San José  da  Costa  Rica  é  antagônico ao aborto, mas o emprego da expressão ‘em geral’, no texto do item 4.1, revela que não se pode falar em proteção absoluta à vida intrauterina. A esse propósito, afirma o jurista e professor Fábio Konder Comparato:

Ao dispor o art. 4º que o direito à vida deve ser protegido pela lei desde o momento da concepção, vetou em princípio a legalização do  aborto.  Digo  “em  princípio”,  porque  a  cláusula  em  geral, constante  dessa  disposição,  parece  abrir  a  possibilidade  do estabelecimento  de  exceções  à  regra.[25]                                                

Este também é o entendimento professado por Daniel Sarmento, que afirma que o uso da cláusula ‘em geral’ mostra que a proteção à vida intrauterina deve ser concebida como um princípio e não como uma regra, de forma que a proteção do nascituro seria um ‘mandado de otimização’ em favor de um interesse constitucionalmente relevante, qual seja, a vida embrionária, sujeito, contudo, a ponderações com outros princípios constitucionais e que pode ceder diante deles em determinadas circunstâncias, vejamos:

A tese que ora se sustenta também parte da premissa de que a proteção da vida se inicia no momento da concepção. Apenas afirma que a tutela da vida anterior ao parto tem de ser menos intensa do que a proporcionada após o nascimento, sujeitando-se, com isso, a ponderações de interesses envolvendo outros bens constitucionalmente protegidos. Notadamente os direitos fundamentais da gestante. Aliás, o emprego da expressão “em geral”, no texto do artigo em discussão, revela com nitidez que as partes celebrantes do tratado não quiseram conferir à vida intra-uterina uma proteção absoluta. Neste particular, o uso da cláusula em geral evidencia que a proteção à vida intra-uterina deve ser concebida como um princípio e não como uma regra. Em outras palavras, e empregando a conhecida fórmula de Robert Alexy, a proteção ao nascituro constitui um “mandado de otimização” em favor de um interesse constitucionalmente relevante – a vida embrionária – sujeito, contudo, a ponderações com outros princípios constitucionais, e que pode ceder diante deles em determinadas circunstâncias[26].

Nota-se que esse entendimento se reforça diante da interpretação sistemática da CADH, que consagra uma série de outros direitos titularizados pelas mulheres e também pelas gestantes, quais sejam: direito ao respeito à integridade física, psíquica e moral (art. 5º,1), direito à liberdade e segurança pessoais (art. 7º,1), direito à proteção à vida privada (art. 11, 2).

Ademais, deve-se ainda buscar uma harmonização entre o disposto no Pacto de San José da Costa Rica e os demais tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, de modo que os direitos da mulher à saúde, à privacidade, à autonomia reprodutiva, aos direitos sexuais, não podem ser esquecidos em detrimento do direito à vida do nascituro, todos esses são direitos constitucionalmente relevantes e que merecem ser devidamente protegidos.

Sobre a autora
Suzana Carolina Dutra

Advogada<br>Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela UFRN.<br>Extensão em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito.<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACÊDO, Suzana Carolina Dutra. Aborto: um enfoque à luz do pacto internacional sobre direitos civis e políticos e da convenção americana de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3927, 2 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27364. Acesso em: 23 dez. 2024.

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