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A teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas

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Agenda 10/04/2014 às 15:15

3. A FORMAÇÃO DO SISTEMA DE DIREITOS A PARTIR DE UMA COMPREENSÃO DE EQUIPRIMORDIALIDADE ENTRE AUTONOMIA PÚBLICA E AUTONOMIA PRIVADA E A RECONSTRUÇÃO DOS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO ESTADO DE DIREITO

Uma vez que foi possível compreender o papel que é posto ao Direito positivo moderno no processo de integração social – bem como a mudança de posição assumida por Habermas em seus últimos trabalhos publicados – deve-se passar a um olhar mais aprofundado sobre a construção do sistema de direitos à luz de uma compreensão equiprimordial entre autonomia pública e autonomia privada.

Com o processo de desencantamento, o Direito moderno se configura como parte de um sistema de normas positivas e obrigatórias; todavia essa positividade vem associada a uma pretensão de legitimidade, de modo que normas expressam uma expectativa no sentido de preservar equitativamente a autonomia de todos os sujeitos de direito (HABERMAS, 2002b:286; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). Segundo Habermas (2002b:286), o processo legislativo deve ser suficiente para atender a essa exigência. Há uma relação entre o caráter coercitivo e a modificabilidade do Direito positivo, por um lado, e o processo de positivação ou de estabelecimento desse Direito capaz de gerar legitimidade, por outro – isto é, uma relação entre Estado de Direito e democracia; contudo essa relação não é meramente fruto de uma histórica causal, mas uma relação conceitual que está alicerçada nas pressuposições da práxis jurídica cotidiana. 

Isso porque na própria validade jurídica a facticidade da imposição do Direito por via estatal entrelaça-se com a força legitimadora de um processo legislativo que pretende ser racional, justamente, por fundamentar a liberdade. Em outros termos, isso se revela no modo ambíguo com que o próprio Direito se endereça aos seus destinatários e deles espera obediência: eles podem agir estrategicamente em face das conseqüências previsíveis de uma possível violação das normas ou podem cumprir as normas por respeito aos resultados da formulação comum da vontade que exige legitimidade para si. O conceito kantiano de legalidade já expressava, segundo Habermas, esse duplo sentido da validade jurídica: As normas jurídicas são a um só tempo “leis coercitivas” e “leis de liberdade” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:175).

A validade de uma norma jurídica pode ser considerada, portanto, como equivalente da explicação para o fato de o Estado garantir simultaneamente a efetiva imposição jurídica e a institucionalização legítima do Direito.[28]Daí decorre a pergunta: como se deve fundamentar a legitimidade de normas que podem, a qualquer momento, ser alteradas pelo legislador?[29]Enquanto era possível recorrer a um Direito Natural – quer de cunho religioso, quer metafísico – podia-se tentar conter o “turbilhão da temporalidade” que o Direito positivo atraía para si; mas, aliado à crescente dessacralização das imagens de mundo e à desintegração de eticidades ou formas de vida tradicionais com o processo de modernização social e cultural, o Direito moderno, dotado de um caráter formal, exime-se da ingerência direta advinda de uma “consciência moral remanescente” (HABERMAS, 2002b:288; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176).

O conceito de direitos subjetivos, então, apresenta um papel importante na compreensão moderna do Direito: desligados dos mandamentos morais de origem religiosa ou do Direito Natural (MATTOS, 2002:90), eles estão ligados ao conceito de liberdade subjetiva de ação (HABERMAS, 1998:147), uma vez que fixam os limites dentro dos quais um sujeito está legitimado para afirmar livremente sua vontade. Esses direitos fixam iguais liberdades subjetivas para todos os indivíduos, que passam a se considerar sujeitos de direito,[30]ou seja, garantem aos sujeitos um espaço de ação de acordo com sua própria preferência (HABERMAS, 2002:288; 1999:330), bem como de acordo com a máxima de que “tudo o que não está proibido está permitido” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Na tradição da dogmática do direito civil alemão, que vai de Savigny a Puchta, os direitos subjetivos são direitos negativos, pois protegem os espaços da ação individual, na medida em que fundamentam pretensões, reclamáveis judicialmente, contra intervenções ilícitas na liberdade, na vida e na propriedade (BAXTER, 2002:39). Todavia, o século XIX demonstra que o direito subjetivo, estritamente de ordem privada, depende, para legitimar-se, de uma autonomia privada do sujeito, que estava apoiada em uma autonomia moral da pessoa. Na Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant (1980) apresenta uma lei moral de liberdade e dela retira as leis jurídicas. O Direito, portanto, não estaria conectado à vontade livre do indivíduo, mas ao seu arbítrio, estendendo-se às relações externas e abrindo espaço para que seja exercitada uma coação no caso de intromissão na esfera alheia. Nessa construção, Habermas (1998:171) identifica uma herança platônica no sentido de compreender a ordem jurídica senão como ligada ao mundo fenomenológico e ao “reino dos fins”.

Ao compreender o Direito não mais a partir de uma racionalidade instrumental, a relação entre Direito e Moral adquire novos contornos.[31]Aqui Habermas inova ao apresentar uma proposta de substituição da teoria da subordinação por uma visão de complementaridade entre Direito e Moral. Empreendendo um olhar sociológico, Direito, Moral e Ética sofrem uma separação simultânea da antiga amálgama que os prendia em uma sociedade pré-moderna.

Tanto o Direito quanto a Moral ainda buscam, sob ângulos diferenciados, respostas para as mesmas questões: (1) como é possível ordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas?; e (2) como é possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de regras e princípios normativos reconhecidos intersubjetivamente?

Uma primeira diferença fundamental é o fato de que uma Moral pós-tradicional representa apenas uma forma de saber cultural, enquanto o Direito apresenta-se também no nível institucional – isto é, além de um sistema de símbolos, o Direito é também um sistema de ação. Ao passo que na Moral, encontra-se uma simetria entre direitos e deveres; no Direito, as obrigações resultam somente da restrição de liberdades subjetivas. Essa atribuição de privilégio aos direitos em face dos deveres pode ser explicado através dos conceitos de sujeitos de direto e de comunidade jurídica: “uma comunidade jurídica, situada no tempo e no espaço, protege a integridade de seus integrantes exatamente na medida em que esses assumem o status de titulares de direitos subjetivos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Em contrapartida, o universo moral não apresenta limites espaciotemporais, estendendo-se a todas as pessoas em sua complexidade biográfica, plenamente individuadas. Por isso mesmo, as matérias jurídicas são, ao mesmo tempo, mais restritivas do que as questões morais e mais amplas, uma vez que o Direito, como meio de organização, não se refere exclusivamente à regulação de conflitos interpessoais, mas também ao cumprimento de programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Logo, as “regulamentações jurídicas tangenciam não apenas questões morais em sentido estrito, mas também questões pragmáticas e éticas, como o estabelecimento de acordos entre interesses conflitantes” (HABERMAS, 2002b:289). Isso faz com que a práxis legislativa dependa não só de discussões morais mas de uma rede ramificada de discursos abertos a razões de outras ordens, bem como a negociações.

Uma vez que o Direito positivamente válido pode tirar das pessoas o ônus causado pelas grandes exigências (cognitivas, motivacionais e organizacionais) impostas por uma Moral ajustada segundo a consciência subjetiva; ele é capaz de compensar as fraquezas de uma moral exigente. Isso não libera os participantes de uma prática legislativa ou jurisdicional da preocupação de que o Direito permaneça em consonância com a Moral (HABERMAS, 2002b:289; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:177); todavia as regulamentações jurídicas são complexas demais para serem legitimadas por princípios morais. Habermas (2002b:189) coloca então uma questão importante: “[...] se o direito positivo não pode obter sua legitimidade de um direito moral superior, de onde ele poderá obtê-la”?

A Moral, tanto quanto o Direito, deve defender a autonomia de todos os envolvidos e atingidos por suas normas; essas devem ser analisadas pelo prisma do princípio do discurso (D) – “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”[32] – que é neutro em relação ao Direito e à Moral, uma vez que sua referência se assenta em toda e qualquer  norma de ação, sem qualquer especificação (LEITE ARAÚJO, 2003:167).

Cabe considerar que validade, aqui, é tomada como um termo indeterminado, que não se refere em específico à validade moral ou à legitimidade jurídica; assim, refere-se à possibilidade de satisfação das pretensões de validade (verdade, correção normativa ou veracidade), remetendo-se à noção de prescrição indireta da ação comunicativa – em contraposição à razão prática kantiana, apoiada em uma moral diretamente prescritiva de normas de ação.

Outro ponto de destaque fica a cargo da questão da aceitabilidade racional; isso que dizer que o consenso acerca de pretensões de validade é obtido através do uso de razões.[33]Essa afirmação, no campo dos discursos práticos sobre normas, atesta que o importante é o reconhecimento de que a argumentação ser racionalmente motivada: 

A proposta de Habermas, ao formular o princípio D, é que só se pode distinguir o ‘bom’ motivo, ou o melhor motivo, para validade uma norma, ao se apresentarem razões, em favor da aceitação das mesmas. Assim, uma norma de ação torna-se válida se as pretensões de validade por ela levantadas podem ser reconhecidas pelos possíveis atingidos (intersubjetivamente) na medida em que esses levantam razões; ou seja, pelo reconhecimento motivado racionalmente e que a todo momento pode ser problematizado (SALCEDO REPOLÊS, 2003:98).

Todavia, a questão da neutralidade do princípio do discurso ainda parece levantar diversas críticas, originadas até mesmo de radicais defensores do pluralismo democrático (LEITE ARAÚJO, 2003:157). Por isso, é crucial um olhar mais detalhado: a neutralidade a que se faz referência diz respeito às normas de ação em geral; além disso, o seu caráter abstrato deve ser entendido no sentido de que apenas torna explícito o ponto a partir do qual é possível fundamentar normas de ações imparcialmente. Isso o leva a não assumir conteúdo algum, já que os argumentos que poderão ser utilizados para justificação de normas de ação não podem ser determinados a priori, mas apenas dentro da própria discussão.[34]

Logo, seu caráter procedimental sinaliza uma exigência no sentido de que toda forma de vida comunicativamente estruturada pode ter condições de participação, de reconhecimento mútuo e de inclusão nesses discursos (SALCEDO REPOLÊS, 2003:98). Por essas características, o princípio do discurso consegue evitar tanto uma interpretação moralizante do Direito quanto o seu confinamento em afirmações comunitárias de valores compartilhados. 

Enquanto princípio de justificação imparcial das normas de ação em geral, o princípio do discurso (D) está igualmente na base da moralidade e do direto. E é graças à mencionada diferenciação de usos da razão prática [questões éticas, de um lado, e questões morais, de outro] que Habermas insiste no delineamento sutil entre tal princípio, que explica o sentido da imparcialidade de juízos práticos, e sua especificação como princípio moral (U) – segundo o qual “toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos” [HABERMAS, 1989:86] – ou como princípio da democracia (De) – de acordo com o qual “somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva” [HABERMAS, 1998:175] (LEITE ARAÚJO, 2003b:231, grifos no original).

O princípio discursivo moral (U) refere-se a normas de ação que exigem, para ser justificadas, a consideração simétrica de todos os interesses;[35]é, portanto, regulador dos argumentos – uma regra de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:99) – que pergunta sobre a possibilidade de universalização de um determinado interesse, de modo que sua pretensão possa ser passível de aceitação e reconhecimento pelos seus afetados em qualquer tempo e contexto espacial.[36]

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Diferentemente, o princípio discursivo democrático (De) visa a explicar o sentido performativo da prática da autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica – estabelecida livremente – que reconhece seus membros como parceiros livres e iguais (HABERMAS, 1998:175). Seu objetivo, então, é a “institucionalização de um procedimento legislativo legítimo, produzido discursivamente com a potencial participação de todos [os afetados]” (BAHIA, 2003:235). Por isso mesmo, 

O sentido performativo pressuposto no princípio da democracia está nessa mudança de perspectiva para o ponto de vista dos participantes que, como sujeitos de direito, se autodeterminam, e constroem uma ‘associação’. Nesse sentido, o princípio da democracia coloca uma regra de constituição do jogo argumentativo e de instrumentação de espaços que tornam possível as diversas formas de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:101).

Deve ser destacado que o princípio democrático não busca um conteúdo a priori às questões quando as mesmas são propostas, “mas apenas diz como podem a formação da opinião e da vontade serem institucionalizados por um sistema de direitos que assegura participação no processo legislativo em condições de igualdade” (BAHIA, 2003:236). Assim, aceita o risco de que qualquer tema ou contribuição, informação ou razão, sejam ventilados no espaço público (HABERMAS, 1998:646).[37]Essa formação da vontade é dependente de pressupostos comunicativos que asseguram aos melhores argumentos a prevalência.

Quando vistos em paralelo, fica possível compreender que o princípio democrático está situado em um plano diferente do princípio moral: 

U refere-se ao plano interno do jogo argumentativo, examinando se os argumentos utilizados para justificação de uma norma passam pelo crivo da universalização. Já o princípio da democracia opera no plano de institucionalização externa da participação simétrica nos processos de formação da opinião e da vontade. Ou seja, ele permite que tais processos sejam eficazes ao institucionalizar as condições de participação. Para tal, ele lança mão da forma do Direito, visto pelo papel que esse desempenha em sociedades complexas, é possível garantir juridicamente as formas de comunicação, por meio de um sistema de direitos, em que a participação nos processos de formação das normas jurídicas se dê em condições de igualdade. Essas condições, já estão, por sua vez, garantidas nos pressupostos da comunicação, enunciados no princípio do Discurso (SALCEDO REPOLÊS, 2003:101-102, grifos nosso).  

Assim, enquanto o princípio moral está correlacionado ao procedimento de validação de normas e discursos morais, o princípio democrático mostra-se mais amplo, aberto a outros tipos de razões. Com o processo de modernização, emerge a questão do pluralismo ideológico na sociedade; a religião e o ethos nela enraizado se decompõem como fundamento público de validade de uma moral que pode ser compartilhada por todos. As regras morais passam a designar o que é obrigatório para todos e, por conseguinte, universalizável; ao passo que os pontos de vista éticos estão ligados a orientação axiológicas (de valor) pertencentes a pessoas ou grupos. Questões éticas estão relacionadas ao ponto de vista da primeira pessoa do plural (nós), de modo que vinculam-se ao que os membros de uma determinada comunidade entendem como critérios (ou valores) que devem orientar suas vidas, isto é, o que pode ser considerado como o melhor para nós (HABERMAS, 2002b:38) – questões acerca das concepções de vida boa ou, pelo menos, de uma vida que não seja mal sucedida. Nesse sentido, as questões éticas não demandam um descentramento do sujeito, que permanece ligado ao telos de uma vida comum da sociedade (HABERMAS, 2000b:106). Por isso mesmo, questões que demandam uma busca sobre o que seja do interesse de todos apontam para mais além do que seja melhor para nós (Ética). Aqui, Habermas lembra as afirmações de Rawls e de Dworkin acerca da diferença entre o justo (moral) e o bom (ético) e da supremacia do primeiro sobre o segundo (HABERMAS, 2002b:41). O bom é aquilo almejado por um grupo de pessoas, a partir de um valor compartilhado; a noção de justo, bem como a de direitos, por outro lado, traz uma compreensão normativa da questão.

Normas e valores, então, apresentam diferenças: [38](1) normas obrigam seus destinatários por igual e não apresentam exceções, enquanto valores exprimem concepções que são tidas como almejáveis e, por essa razão, podem ser compreendidas à luz de uma ordem de preferência; (2) normas, portanto, somente podem ser obedecidas – cumprindo sua função de estabilizar expectativas de comportamentos generalizados – a partir de uma aplicação universalmente integral e binária, isto é, algo é válido ou não é válido, sem uma terceira opção; ao passo que valores, representando uma ação direcionada, podem ser realizados de maneira gradual, a partir do quadro de preferências daquela comunidade. Dito de outra forma, normas, segundo Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partir de uma pretensão de correção (referência ao justo), devendo poder contar com a aceitação racional daqueles que serão seus afetados (1998:172). Dessa forma, diante de uma pretensão normativa, os atores sociais podem tomar dois caminhos diversos: concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de linguagem, ou levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os; instala-se, assim, a possibilidade de avaliação através de uma ação comunicativa. De maneira diferente, os valores apontam para uma concepção ética – ligada ao que seja o bem – que não apresenta esse potencial de universalização, contido nos discursos sobre a correção das normas, uma vez que se encontra enraizada sob valores pré-reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadas intersubjetivamente por uma determinada forma de vida concreta. Portanto, a noção de bem liga-se à idéia de um nós, uma comunidade determinada assentada sob uma mesma concepção de vida boa. Desse modo, as referências para as ações oriundas dessa comunidade apenas podem ser compreendidas como respostas a fins específicos (caráter instrumental) julgados a partir das preferências comuns de seus membros, perdendo-se de vista a ação comunicativa em favor de uma ação instrumental; e (3) diferentes normas pretendem manter sua validade para o mesmo conjunto de destinatários, não podendo contradizer-se mutuamente, sob pena de deixarem de representar referenciais para a ação humana; logo devem constituir um sistema. A questão sobre qual norma é adequadamente aplicável a um determinado caso, todavia, constitui uma pergunta diferente da indagação sobre sua validade, devido a isso, como será visto no próximo tópico, discursos de justificação diferem-se da lógica dos discursos de aplicação. Contrariamente, os valores naturalmente concorrem entre si pela primazia, por isso são passiveis de flexibilizações a partir de critérios utilitários.

Além de razões morais e razões éticas, o princípio da democracia também recebe argumentos de ordem pragmática, ligados à definição de meios necessários/adequados à realização de preferências ou objetivos da comunidade (SOUZA CRUZ, 2004:219). Nesse caso, a avaliação se dá não apenas com relação aos meios, mas também com relação aos fins. Trata-se de um elemento eminentemente instrumental, finalístico, trazendo ao discurso “comparações e ponderações diante de alternativas para as técnicas/estratégias de ação” (SOUZA CRUZ, 2003:220).

As normas jurídicas são dotadas de um caráter artificial – no sentido de que “elas são produzidas intencionalmente e de modo reflexivo, aplicando-se a si mesmas” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:102). Como consequência, não basta ao princípio democrático a tarefa de fixação dos procedimentos de normatização legítima do Direito, deve ainda pressupor a criação de um comunidade jurídica que institucionalize os direitos de participação de todos os seus membros no processo de instauração dessas normas.

Logo, segundo Habermas (1998:177), a distinção entre o princípio moral e o princípio democrático acaba apontando as duas tarefas que deverão ser enfrentadas pelo sistema de direitos: (1) institucionalizar uma formação racional da vontade política; e (2) garantir o próprio medium no qual essa vontade pode ser expressa – como vontade comum dos membros de uma comunidade jurídica capaz de se autocompreender como uma associação livre. Dessa forma, mesmo que o processo de legislação democrática seja poroso a uma série de argumentos – como visto, argumentos de ordem moral, ético-políticos e pragmáticos – a fim de que o Direito não ceda lugar à política, é preciso que as normas jurídicas sejam formuladas a partir da linguagem jurídica – utilizando-se, para tanto, do código do Direito – e do princípio da soberania popular (SOUZA CRUZ, 2004:220).

 O Direito moderno, não mais subordinado à moral – mas sim funcionando de maneira complementar – passa a se organizar a partir de um código próprio,[39]partindo de dois elementos restantes da dissolução da amálgama pré-moderna: soberania popular – relacionada com a noção de autonomia pública – e direitos humanos – ligados à noção de autonomia privada. Desse modo, tanto um quanto outro representam uma mediação pelo Direito no tocante à autodeterminação moral (direitos humanos) e autodeterminação ética (soberania popular), de modo a falar-se em uma cooriginalidade.[40]Assim, Habermas pretende superar a disputa entre liberais e republicanos acerca de qual das duas deveria ter prevalência.

Segundo Cattoni de Oliveira (2000:54), a tradição republicana remete-se a Aristóteles, desenvolvendo-se pela Filosofia romana republicana e pelo Humanismo Cívico do pensamento político italiano do Renascimento, vindo a ser recepcionada por Harrington – influenciando os debates da Convenção de Filadélfia – e por Rousseau – lançando luzes sobre o movimento da Revolução Francesa (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:54-55; SELLERS, 1997:02). Contemporaneamente, assumem-se como republicanos diversos pensadores, como: Taylor, Walzer, Sandel, McIntyre, Perry e Michelman. Já na tradição liberal, encontram-se pensadores a partir do movimento iluminista, como Locke, Kant, Sièyes, Paine, Constant e Stuart Mill. Contemporaneamente, a tradição é disseminada a partir diferentes leituras feitas pelas obras de Berlin, Rawls, Nozick e Dworkin – sendo Rawls o seu maior expoente. Em comum a ambas, tem-se a defesa da liberdade e da igualdade dos cidadãos, da existência de uma Constituição, de um regime democrático e da constitucionalização dos direitos fundamentais – o que, todavia, não significa que esses pontos recebem a mesma interpretação. Para os republicanos, a Constituição é tomada como uma ordem concreta de valores, que materializa uma identidade ético-cultural de uma sociedade política que tem a pretensão de ser, na medida do possível, homogênea (HABERMAS, 2002b:270); por sua vez, a Democracia é compreendida como forma política de plena realização dessa identidade coletiva, de sua felicidade pública e de seu bem-estar coletivo. A ênfase é dada para as chamadas liberdades positivas,[41]visando a assegurar a participação política autônoma. Para os liberais, o processo democrático tem uma tarefa básica: programar o Estado segundo o interesse da sociedade a partir de um sistema de negociações estruturado ao modo do Mercado – entre pessoas privadas – (HABERMAS, 2002b:270). A Democracia é, então, compreendida de maneira reduzida, como um processo de eleição regido conforme o mecanismo formal da regra da maioria que confere legitimidade às decisões (GALUPPO, 2004:344). Direitos fundamentais, por sua vez, transformam-se em garantias de proteção da esfera privada contra intervenções estatais, de modo a possibilitar que cada indivíduo possa participar no cenário político defendendo seus próprios interesses (HABERMAS, 2005:1; 2002b:271).[42]

Contudo, como já adiantado, a opção habermasiana não é a de endossar uma ou outra tradição, mas a de apresentar uma (re)construção da relação entre soberania popular e direitos humanos, superando as tradições anteriores, uma vez que leva em conta a identificação de uma relação interna entre ambos os conceitos, constitutiva do que chamará de sistema de direitos: o conjunto de direitos (fundamentais) que os membros de uma comunidade atribuem-se reciprocamente quando decidem regular legitimamente sua convivência através do Direito Positivo (HABERMAS, 2003:162; 2002b:229; BAHIA, 2003:238). E, para tanto, a modernidade aponta que a fundação desse sistema deve-se dar através de um importante meio institucional – a Constituição. 

O sistema de direitos, então, é responsável por garantir aos indivíduos determinadas liberdades subjetivas de ação a partir das quais podem agir em conformidade com seus próprios interesses – é o que se chama de autonomia privada[43]– “liberando” esses indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa (HABERMAS, 1998:186). Habermas conclui que o Direito não é – nem pode ser – capaz de obrigar os indivíduos a permanecer o tempo todo na esfera pública, devendo abrir a eles a possibilidade de escolha do uso de sua liberdade comunicativa (HABERMAS, 2000d:527).[44]Em contrapartida, o princípio discursivo democrático compreende a autonomia pública a partir da ótica da garantia de legitimidade do procedimento legislativo através de iguais direitos de comunicação e de participação (HABERMAS, 2002b:290); trata-se do fato de que os sujeitos de direito têm de se reconhecer como autores das normas às quais se submetem. 

Explicando melhor essa noção, tem-se que a reconstrução da noção de autonomia leva Habermas a afirmar que os indivíduos, como sujeitos de direito, devem ao mesmo tempo sempre ser autores e destinatários do Direito por eles produzidos. Conferir uma fundamentação estritamente moral aos direitos humanos acabaria por afirmar que o poder constituinte democrático simplesmente encontra esses direitos a priori, ou seja, como fatos morais prévios, para ter sua atividade limitada a uma positivação. Essa noção contraria o princípio democrático. Por outro lado, deve-se reconhecer que os cidadãos, no papel de co-legisladores, não podem mais escolher o medium pelo qual eles tornam efetiva sua autonomia; é apenas na condição de sujeitos de direito que eles podem tomar parte do processo legislativo; por isso uma auto legislação democrática apenas se pode valer do medium do Direito. 

Quando da institucionalização das condições para um processo legislativo democrático, sob a forma de direitos políticos, é necessário que o código do direito já esteja à disposição. Para a criação desse código ou forma jurídica moderna, é necessário criar o status de sujeitos de direito que pertençam, enquanto titulares de direitos subjetivos, a uma comunidade jurídica (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182).

Logo, para que haja o Direito, deve haver a autonomia privada dos sujeitos de direito; de modo que, sem os direitos fundamentais que assegurem essa autonomia, faltaria o próprio medium para institucionalização jurídica das condições necessárias a que os sujeitos de direito possam fazer uso da autonomia pública ao atuarem no papel de cidadãos do Estado (HABERMAS, 2002b:293; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182). Como consequência: “a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele” (HABERMAS, 2002b:293).

É, então, a partir dessa consciência de cooriginalidade entre autonomias público e privada que os cidadãos, ao constituírem seu sistema de direitos, devem criar uma “ordem” que preveja a qualquer membro (seja atual, seja futuro) dessa comunidade uma série de direitos subjetivos, iniciando por três categorias: 

(i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos (HABERMAS, 2003:169, grifo no original). 

Essas três categorias decorrem de um resultado direto da aplicação do princípio do discurso ao meio do Direito; estão associadas às condições de “socialização horizontal” produzidas pelo Direito. Assim, não podem ser compreendidas como os clássicos direitos liberais de defesa, uma vez que regulam apenas relações entre concidadãos livremente associados, anteriormente a qualquer organização estatal. A função básica, então, desses direitos é a garantia da autonomia privada dos sujeitos de direito, mas apenas à medida que se reconhecem mutuamente como destinatários das leis, levantando um status que lhes possibilita a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente (HABERMAS, 1998:188). Somente no passo seguinte, é que esses sujeitos de direito assumem o papel de autores de sua ordem jurídica. 

Uma vez que pretendem fundar uma associação de cidadãos que se dão a si mesmos suas leis, eles tomam consciência de que necessitam de uma quarta categoria de direitos que lhes permita reconhecerem-se mutuamente, não somente como autores desses diretos, mas também como autores do direito em geral. Se quiserem continuar mantendo um aspecto importante de sua prática atual, a autonomia, eles têm que se autotransformar, pelo caminho da introdução de direitos fundamentais políticos, em legisladores políticos. Se, as primeiras três categorias de direitos fundamentais, não poderiam existir nada parecido com o direito, porém, sem uma configuração política dessas categorias, o direito não poderia adquirir conteúdos concretos (HABERMAS, 2003:169).

Nessa quarta categoria, encontram-se os “(iv) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma participação, em igualdade de condições, na legislação política” (HABERMAS, 2003:169). Assim, para que os membros de uma dada comunidade possam atribuir reciprocamente direitos subjetivos de maneira legítima, necessitam da institucionalização de procedimentos de produção desse Direito, que pressupõe o reconhecimento mútuo como pessoas livres e iguais.

Resta, todavia, mais um categoria de direitos, que são: (v) Direitos fundamentais

[...] ao provimento do bem-estar e da segurança sociais, à proteção contra riscos sociais e tecnológicos, bem como ao provimento de condições ecologicamente não danificadas de vida e, quando necessário, sob as condições prevalecentes, o direito de igual oportunidade de exercício dos outros direitos elencados (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:72).

Esse sistema de direitos ainda necessita de um meio de institucionalização: o Estado de Direito, que possui, desde seu surgimento, o propósito de garantir institucionalmente à cooriginalidade das autonomias pública e privada, buscando para tanto a legitimidade de suas decisões no Direito (HABERMAS, 1998:199),[45]cumpre sua função a partir dos princípios que o informam.

Um desses princípios é a soberania popular, [46]que funcionaria como ponto de unificação entre as noções de Direito e Estado de Direito, já que fundamenta a participação popular em condições de igualdade na formação da vontade estatal. Todavia, a leitura habermasiana é feita a partir de uma concepção procedimental (HABERMAS, 1998:238; 1998:612; 1999:333) – ou seja, ela não se encontra ligada a um ethos ou a um povo determinado, seja ele presente, passado ou futuro, revelando-se uma soberania popular sem sujeito.[47]Lembrando os estudos, já apresentados nessa pesquisa, de Michel Rosenfeld (2003): uma vez que o poder político é derivado do Poder Comunicativo, as questões políticas, para serem tratadas de forma racional, necessitam ser institucionalizadas, passando por uma rede de formas de comunicação que, em tese, destina-se a assegurar que todas as questões, tema e contribuições relevantes sejam ouvidas e elaboradas na forma de discursos e negociações, que, por sua vez, estão pautados na busca pelo melhor argumento (HABERMAS, 1998:238; 1999:333; BAHIA, 2003:241-242). É justamente essa institucionalização jurídica de determinados procedimentos e condições de comunicação que faz possível o uso e o emprego efetivos de iguais liberdades comunicativas, uma vez que obriga, além de estimular: o uso pragmático, ético e moral da razão prática; e a busca por um equilíbrio de interesses através de um resultado equitativo (HABERMAS, 1998:238).

Lembra Bahia (2003:242) que Habermas escapa do extremismo de Rousseau em sua busca por uma democracia direta, não representativa; ele irá apostar na defesa de um modelo democrático deliberativo que combine – mesmo defendendo que decisões políticas sejam tomadas em interações simples – o princípio da soberania popular com o princípio parlamentar, que, em termos de uma Teoria do Discurso, “deve garantir um procedimento que leve em conta as condições comunicativas, de forma que discursos éticos, pragmáticos, morais e negociações fair tenham lugar” (BAHIA, 2003:242, grifo no original).  Uma síntese dessa proposta é apresentada por Cattoni de Oliveira: 

Nesse quadro, o processo legislativo, enquanto processo de justificação democrática do Direito, pode ser caracterizado como uma seqüência de diversos atos jurídicos que, formando uma cadeia procedimental, assumem seu modo específico de interconexão, estruturado em última análise por normas jurídico-constitucionais, e, realizados discursiva ou ao menos em termos negocialmente equânimes ou em contraditório entre agentes legitimados no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição (2000:109).

Nessa ótica, o Estado de Direito acaba por garantir tanto a institucionalização do uso público das liberdades comunicativas, como por regular a transformação do Poder Comunicativo em Poder Administrativo (HABERMAS, 1988:245).

Não é sem razão que se pode reconhecer que a arena pública atrai e converte-se em um meio de aprendizado democrático, como lembra Bahia (2003:243): aqui, uma comunidade pode colocar

[...] em prática políticas racionalmente acordas, experimentando-as e aprendendo como fracassos e vitórias. Isso porque não é concebível hoje se falar em pressupostos materiais para elevar o cliente a cidadão, para que este então possa tomar das mãos do Estado (inclusive do Judiciário) as rédeas de sua existência política (2003:243, grifo no original).

Assim, é necessário compreender que o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito representa uma ruptura completa quando comparado com o paradigma do Estado de Direito. Logo, é preciso mais que uma mudança de rótulos ou uma troca de etiquetas. Ainda deve ser lembrado que esse último paradigma não se apresenta como um projeto pronto e acabado; ao contrário, ele demanda uma constante revisão a fim de que se possa compreender melhor o sistema de direitos, isto é, através de uma melhor interpretação (cada vez mais adequada) de seu processo de institucionalização (HABERMAS, 1998:466; 2003:165).

Quanto à relação entre Poder Comunicativo e Poder Administrativo, o recurso à circulação oficial do poder acaba por impedir que o segundo adquira autonomia em relação ao primeiro.[48]Para melhor compreensão, deve-se lembrar de um ponto importante:

Desde a Teoria do Discurso, as estruturas de comunicação tomam o Princípio do Discurso em um duplo sentido: cognitivo – para que os resultados da comunicação sejam racionais, o procedimento discursivo filtra as contribuições, razões e temas trazidos à arena pública de discussão; e prático – o princípio dos discursos garante que o entendimento se dê em relações de simétrica paridade e que desencadeie a força produtiva própria da liberdade comunicativa (BAHIA, 2003:243-244, grifo no original).

Portanto, o Poder Comunicativo apenas se forma nos espaços públicos que produzem relações intersubjetivas apoiadas em processos de reconhecimento mútuo e que possibilitem o uso das liberdades comunicativas. Assim, as decisões vinculantes do Estado, regidas por fluxos comunicativos provindos da periferia – passando pelas “eclusas” dos procedimentos democráticos[49]– devem fornecer garantia de que, antes que essas sejam lançadas no sistema político, passem por um rastreamento das questões referentes ao problemas latentes de integração social subjacentes no meio social (HABERMAS, 1998:438; BAHIA, 2003:244). Ou seja, o modelo de “eclusas” permite que espaços não institucionalizados (opinião pública) constituídos na forma de uma rede de comunicações intersubjetivas sejam filtrados visando a influir no centro (Legislativo, Executivo ou Judiciário). Para tanto, são necessários pressupostos próprios a uma cultura política liberal,[50]capaz de permitir uma espontaneidade nos processos de formação da opinião e da vontade pública. 

Por sua autonomia e espontaneidade, a estrutura dos espaços públicos pode até ser estimulada, mas escapa em boa medida à regulação jurídica, à intervenção administrativa ou à regulação política. Partindo de interações simples (face a face), os indivíduos têm a possibilidade de tomar postura frente a uma questão, assumindo como isso obrigações ilocucionárias. Além das interações simples, o espaço público também conta com interações virtuais que se dão pelos meios de comunicação (BAHIA, 2003:245, grifos no original).

Assim, é por meio do Direito – como mediador normativo entre facticidade e validade (CHAMON JUNIOR, 2005:260) – que esse Poder Comunicativo pode se transformar em Poder Administrativo, já que através do Poder Comunicativo é autorizado e outorgado “um determinado poder instrumentalizante no marco de cargos estabelecidos legalmente” (CHAMON JUNIOR, 2005:260).  

Esta ligação entre o poder comunicativo – possível em razão de uma autonomia pública – e o poder administrativo – regido, ou controlado, pelo código poder – confere legitimidade, portanto, ao uso de um poder que, em realizando coerção, não há que reproduzir a si mesmo, mas antes manter-se “regenerado” no marco das transformações levadas adiante pelo poder comunicativo. Mas é claro que esta transformação ou metamorfose do poder comunicativo somente poderá “regenerar” o poder administrativo através do Direito, que em se mantendo como legitimamente produzido, estabelece novas autorizações em um plano legalmente delineado. É, inclusive, esta legitimidade conferida ao uso do poder administrativo que pretende manter as interferências advindas das mostras individuais de poder como ilegítimas (CHAMON JUNIOR, 2005:260-261, grifos no original).[51]

O espaço da opinião pública, contudo, não segue a lógica da especialização como os sistemas, abrindo-se para o livre acesso de todos e assentando-se sobre o pano de fundo de um mundo da vida compartilhado; por isso mesmo, é tão cara, para o estudo do paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito, a conclusão a que chega Peter Häberle (1997), vindo a afirmar e reconhecer uma multiplicidade de interpretações da Constituição, surgidas a partir das mais variadas interações existentes no interior da sociedade civil. Como lembra Cattoni de Oliveira (2000:95), o núcleo institucional da sociedade civil é hoje formado por uma diversidade de grupos, movimento, associações e organizações de ordem não estatais e não econômicas – ou seja, desligadas dos sistemas Administrativo e Econômico – capazes de captar os ecos dos problemas sociais oriundos da esfera privada, condensando-os e transmitindo-os para a esfera pública.

Nesse sentido, as controvérsias que forem expostas publicamente, elaboradas a partir de razões – ao invés de imperativos funcionais de poder ou de mercado – podem se transformar de opinião pública para vontade pública – isto é, adquirindo um caráter de decisão vinculante.[52]Todavia, essa mudança dependerá de procedimentos institucionalizados, de tal sorte que a opinião pública poderá influenciar[53]a formação de uma vontade (HABERMAS, 1998:443; 1999:333); a isso, Habermas chama de política deliberativa.

A partir de Cohen e Arato, Habermas (1998:452) afirma uma concepção de sociedade civil distanciada dos pilares republicanos – isto é, como instância de auto realização da sociedade. Para a efetivação de uma “democracia radical”, reconhece a necessidade de limitações: (1) do espaço de atuação de movimentos não institucionalizados, pois pesa o risco de se cair em movimentos populistas apegados cegamente a tradições, pois o espaço público exige um mundo da vida racionalizado;[54](2) o espaço de formação da vontade política não pode ser controlado pelos atores que apenas fazem uso da influência na formação do poder comunicativo – esses exercem influência na produção do Direito com a intenção de conquista sobre o poder administrativo, programando-o e controlando-o; (3) os movimentos sociais devem ter consciência de que, nas sociedades atuais – funcionalmente diferenciais, não existe uma instância reguladora do todo social; ainda que a política possa,  até certa medida, resolver problemas de integração social, esse papel escapa a seus limites de competência, podendo apenas se dar por meios indiretos que não interferem nas lógicas internas a cada sistema social (HABERMAS, 1998:453).

Como consequência, tem-se que o processo legislativo deve ser sensível ao torvelinho das discussões ocorridas nos meios não institucionalizados. Por sua vez, os procedimentos judiciais visam à proteção, decisão e estruturação dos espaços argumentativos (sem, contudo, interferir no fluxo dessas argumentações).  Nesse último caso, lembra Habermas (1998:266) que a tensão entre facticidade e validade se manifesta no fato de que as decisões devem levar em conta, simultaneamente, a tensão entre segurança jurídica (aqui, positividade do Direito) e pretensão de decisões corretas (legitimidade).

Assim, por um lado, o Direito vigente é capaz de garantir a imposição coercitiva de expectativas de comportamento. Por isso mesmo, as decisões judiciais devem estar consistentes com o Direito vigente, formado a partir de uma cadeia de decisões passadas – tanto de processos legislativos quanto judiciais, bem como de tradições articuladas (HABERMAS, 1998:267). Por outro lado, a decisão não pode estar limitada ao passado e ao Direito vigente; uma pretensão de aceitabilidade racional (correção) é esperada.

Por isso mesmo, Bahia faz uma advertência pertinente também à presente pesquisa: 

[...] a discussão em torno da posição dos Tribunais num Estado Democrático de Direito é bem mais complexa do que a de um simples “aplicador do direito”. A circulação oficial do poder mostra a precedência do Legislativo na percepção e na própria discussão pública das várias questões surgidas nos vários espaços públicos. Contudo, transparece também que a função dos Tribunais não pode se resumir à mera “subsunção” dos fatos às leis. Por outro lado, se o Judiciário não deve ser mera bouche de la loi, não deve, outrossim perder de vista que ele não é o repositório das “virtudes” de uma comunidade: assumindo uma posição conservadora – como, e.g., o “Senado Conservador” francês – ou uma atitude “ativista” (2003:250, grifo no original).

O problema, então, gira em torno da possibilidade de conciliar a facticidade do Direito – isto é, estabilização de expectativas de comportamentos, até por uma via coercitiva – com uma validade – ou seja, uma autonomia pública que reclama a legitimidade do processo de formação de normas. Logo, a questão da legitimidade do Direito não se resume ao factum de uma decisão judicial; ainda é necessário que esta seja consistente de dois aspectos: por meio de uma justificação interna – deve encontrar motivações no Direito positivo; e por meio de uma justificação externa – aceitável racionalmente, explicitando uma fundamentação jurídica (HABERMAS, 1998:267; BAHIA, 2003:250).

Contribuições podem ser encontradas no pensamento de Gadamer e Dworkin. Todavia, é nas pesquisas de Klaus Günther – que, ao mesmo tempo em que partem dos estudos habermasianos, trazem contribuições, lançando novas luzes sobre velhas questões – que Habermas (1998:62), reconhecidamente, encontra seu interlocutor jurídico. A separação feita por Günther entre discursos de justificação e discursos de aplicação, seja do Direito, seja da Moral, é decisiva para o desenvolvimento da Teoria do Discurso. Questões de validade de uma norma passam a ser dissociadas de questões referentes à aplicação adequada da mesma.

Sobre o autor
Flávio Quinaud Pedron

Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do Mestrado da Faculdade Guanambi (Bahia). Professor Adjunto no curso de Direito do IBMEC/MG. Professor Adjunto da PUC-Minas (graduação e pós-graduação). Advogado em Belo Horizonte (MG).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRON, Flávio Quinaud. A teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3935, 10 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27387. Acesso em: 2 nov. 2024.

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