1. UM NOVO OLHAR SOBRE A QUESTÃO DA RACIONALIDADE: A PROPOSTA DE UMA RACIONALIDADE COMUNICATIVA
Como elemento de discussão preliminar, coloca-se em discussão a necessidade de pensar a racionalidade humana para além da filosofia da consciência; para tanto, os estudos sobre a linguagem conduziram a um movimento que ficou conhecido na História da Filosofia como o giro linguístico; que teve como principais responsáveis os pensamentos de Wittgenstein (giro pragmático) e Gadamer (giro hermenêutico). Todavia, o movimento do giro não se esgota na figura desses autores, vindo a ser continuado, até os dias atuais, por uma infinidade de novos personagens. Dentre eles, pode-se mencionar o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas,[2]que ganhou renome mundial ao apresentar uma nova proposta de compreensão da racionalidade, fornecendo um novo impulso e direção ao movimento.
Levando a sério a linguagem, esse pensador colocará em cheque a racionalidade instrumental destacada, principalmente, nos estudos de Max Weber, para contrapô-la a uma nova compreensão: a racionalidade não apenas está dirigida a execução de tarefas – isto é, a busca dos meios para se alcançar um fim pré-determinado – mas envolve também a busca por um entendimento mútuo entre indivíduos. Essa busca por entendimento, contudo, não representa um aspecto isolado do fenômeno linguístico, mas situa a linguagem no centro do problema da integração social.
Para explicar melhor esse ponto, deve-se lembrar que há dois tipos de experiência: a sensorial e a comunicativa. No primeiro caso, tem-se a figura do observador, que sozinho examina a rede categorial na qual experiências são organizadas com objetividade; por sua vez, o sujeito também se faz presente como participante de uma comunicação na base de uma relação intersubjetiva (envolvendo outros indivíduos) através do compartilhamento de símbolos (HABERMAS, 1994b:307). Para tanto, regras implícitas ao alcance de qualquer falante competente transpõem um know how para um know that, permitindo uma nova forma de compreender a relação entre falar/agir. É, então, possível falar em ações através de um prisma mais amplo, que englobaria uma ação em sentido estrito e os proferimentos linguísticos. Através de uma ação em sentido estrito, pode um indivíduo realizar uma atividade não linguística – como correr ou colocar um prego em uma parede, por exemplo – utilizando, para tanto, sua racionalidade direcionada à seleção dos melhores meios para a persecução de um fim determinado. Proferimentos linguísticos, por outro lado, são atos que exigem que o falante chegue a um entendimento com outro falante a respeito de algo no mundo (HABERMAS, 1990:65). Dessa forma, emergiria uma diferença também no papel que um indivíduo deve assumir. Um exemplo pode ser bem ilustrativo:
Quando eu observo que um amigo passa correndo no outro lado da rua, eu posso identificar certamente a sua corrida como sendo uma ação. E a proposição “ele corre na rua” pode servir em muitos contextos como descrição de uma ação; através dela podemos atribuir ao ator a intenção de atingir o mais rapidamente possível um lugar situado no ponto em direção ao qual ele está correndo. No entanto, não podemos inferir essa intenção da simples observação; nós supomos, ao invés disso, um contexto geral que justifica a suposição de uma tal intenção. Não obstante, a ação carece ainda de uma ulterior interpretação, o que não deixa de ser curioso. O amigo pode estar correndo porque não quer perder o trem, porque não deseja chegar tarde à aula, ou porque não quer chegar atrasado a um encontro marcado; mas pode ser também que ele está fugindo porque se sente perseguido, que ele escapou de um atentado, ou que ele, por outros motivos, entrou em pânico e simplesmente corra para cá e para lá, etc. (HABERMAS, 1990:66, grifo no original).
Um observador pode ser capaz de constatar a existência da ação, mas não poderá descrever, com segurança, a execução do plano específico em andamento; somente ao entrar em interação com o ator, é que se torna possível identificar sua intenção, o que o leva a assumir a perspectiva de participante.[3]
Através de uma apropriação da teoria dos atos de fala, originalmente desenvolvida por Austin (1971) e Searle,[4] é possível compreender uma função fundamental existente na linguagem: a comunicação. Todavia, além dos proferimento constatativos – isto é, que constatam algo, caracterizando-se por serem verdadeiros ou falsos – existem os proferimentos performativos, com os quais se realiza uma ação pelo simples fato de serem proferidos (GALUPPO, 2002:111). Em verdade, eles agem de maneira dúplice: primeiro, comunicam uma ideia e, em seguida, realizam uma ação diferente da ação de comunicar.[5]
Pelos aspectos seguintes, os atos de fala distinguem-se das interações não linguísticas: (1) através da feição reflexiva da auto interpretação – isto é, são compreendidos pelos falantes, quando esses tomam consciência do contexto em que a interação linguística se desenvolve; e (2) pelo tipo de fins que podem ser visados, isto é, fins ilocucionários – voltados para o mútuo entendimento e que, para serem atingidos, dependem do assentimento racionalmente motivado do ouvinte,[6]ou seja, do reconhecimento por parte do outro falante de que o proferimento pode ser tido como válido (isto é verdadeiro, correto ou sincero, dependendo da situação).[7]O entendimento, então, pode ser compreendido como uma busca cooperada, haja vista não poder ser atingido de maneira individual. E mais, para que se possa chegar ao significado de um ato de fala, faz-se necessário avaliá-lo à luz da pretensão de validade correspondente que ele levanta.
Habermas irá diferenciar o uso da linguagem: como meio de transmissão de informação[8]ou como forma de buscar-se o entendimento – no primeiro caso, tem-se o que o autor denomina de ação estratégica; no outro, a ação comunicativa. O agir comunicativo compreende a ação de uma pessoa para convencer outra da validade de suas pretensões. É uma ação que somente pode dar-se por um único meio: a fala, e pressupõe a produção de um entendimento (HABERMAS,1987:1:367). Seu fim é, portanto, a produção do efeito ilocucionário, ou seja, um consenso intersubjetivamente reconhecido acerca da validade de uma pretensão criticável (ARAGÃO, 2002:115).
Como todo o agir, também o agir comunicativo é uma atividade que visa a um fim. Porém, aqui se interrompe a teleologia dos planos individuais de ação e das operações realizadoras, através do mecanismo de entendimento, que é o coordenador da ação. O “engate” comunicativo através de atos ilocucionários realizados sem nenhuma reserva, submete as orientações e o desenrolar das ações – talhadas inicialmente de modo egocêntrico, conforme o respectivo ator – às limitações estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente. O telos que habita nas estruturas lingüísticas força aquele que age comunicativamente a uma mudança de perspectiva; esta se manifesta na necessidade de passar do enfoque objetivador daquele que age orientado pelo sucesso, isto é, daquele que quer conseguir algo no mundo, para o enfoque performativo de um falante que deseja entender-se com uma segunda pessoa sobre algo (HABERMAS, 1990:130, grifos no original).
Na ação estratégica (HABERMAS,1987:1:367), tem-se uma forma de ação linguística – porém, semelhante à ação instrumental – na qual o falante faz uso de outro indivíduo como meio (instrumento) para a realização de um fim (seu sucesso pessoal). Tem-se aqui uma busca pelo sucesso perlocucionário, isto é, influenciar o ouvinte (que se transforma em mero objeto) para que este realize (ou deixe de realizar) o objetivo principal do falante (WHITE, 1995:52). Dessa forma, o falante age na condição de observador, ou seja, ele não se coloca na condição de participante da interação, nem busca saber sobre o reconhecimento da pretensão levantada por parte do ouvinte; o que está em jogo é apenas a concretização de seu próprio sucesso pessoal. A ação estratégica, portanto, vive de maneira parasitária, pois depende, para seu sucesso, de que, pelo menos uma das partes, tome como ponto de partida o fato de que a linguagem está sendo usada como forma de busca do entendimento (HABERMAS, 1990:73).
A partir desse prisma, pode-se entender uma nova proposta de compreensão da racionalidade: enquanto para Weber, toda ação humana seria racional apenas se pudesse ser justificada à luz da seleção dos melhores meios para a realização de um fim (HABERMAS, 1987:1:361); para Habermas, além dessa dimensão instrumental da racionalidade, há um nível comunicativo voltado para o entendimento entre os atores sociais.[9]Como toda ação social, que requer uma forma de interação linguística, a racionalidade comunicativa estaria na base da sociedade, permitindo a interação entre os atores e, consequentemente, sua integração.
Uma compreensão adequada da racionalidade comunicativa fornece uma outra consequência importante: a suplantação da racionalidade prática típica da filosofia da consciência. Mais do que uma simples troca de etiquetas, a proposta habermasiana propõe que: a razão comunicativa distingue-se da razão prática, porque não está restrita a um ator particular – ou mesmo a um macro sujeito (Estado ou Sociedade). Ela é possibilitada pelo medium da linguagem, que concatena interações e estrutura as formas de vida, de modo que, ao buscar um entendimento, os usuários da linguagem ordinária devem pressupor, entre outras coisas, que os participantes buscam seus fins ilocucionários sem reservas, que eles vinculam seu acordo ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis e que eles estão prontos a assumir as obrigações resultantes de um consenso, relevantes para as interações seguintes. O que, dessa forma, infiltra-se na base de validade do discurso também se comunica às formas de vida reproduzidas através da ação comunicativa. A racionalidade comunicativa, portanto, expressa-se em um complexo descentralizado de condições transcendentalmente configurativas, mas ela não é uma faculdade subjetiva que diz aos atores o que devem fazer (HABERMAS, 1998:65-66); os indivíduos que atuam comunicativamente comprometem-se com pressupostos pragmáticos, assumindo certas idealizações,[10]de modo que serão os próprios atores sociais que, por meio da busca pelo entendimento comum, chegarão a um consenso sobre as normas de ação válidas.
A assunção dessas idealizações como pressupostos contra fáticos revela que a separação rígida – de referência platônica – entre o que seja “real” e o que seja “idealidade” é posta em cheque. Cattoni de Oliveira (2002:37) esclarece que Habermas refere-se, em substituição, a uma tensão entre realidade e idealidade: “[...] a realidade já é plena de idealidade, em razão dos próprios pressupostos linguísticos contra factuais presentes em toda interação comunicativa” (2002:37).[11]
Logo, é através da reconstrução da noção de racionalidade que se encontra o fio condutor para pensar o problema da integração da sociedade. Mas uma advertência deve ser feita: pensar a sociedade atual é pensar o problema da diferença, é pensar o pluralismo; dessa forma, a ação social voltada para o entendimento adquire relevância, buscando coordenar diversos planos de ação individuais. Por isso, o modelo de que Habermas se serve não é o da comunicação entre uma comunidade de cientistas e especialistas, como fizera Pierce, mas o da própria comunicação existente no interior da sociedade. Logo, sempre que falantes dispostos ao entendimento engajam-se numa interação, eles encontram duas possibilidades: (1) concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de fala; ou (2) levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os.
Novamente, retorna-se à tensão entre realidade e idealidade: como já afirmado, para que se atinja o sucesso na busca por entendimento, uma série de idealizações deverão ser feitas. Essas idealizações tomam lugar no que Habermas denomina de mundo da vida (Lebenswelt) – conceito chave no pensamento desse autor – que representa
[...] uma espécie de pano de fundo compartilhado intersubjetivamente, que está sempre presente para todos os atores lingüisticamente competentes, e que se estrutura através de tradições, instituições e identidades criadas a partir dos processos de socialização (FERREIRA, 2000:95).
Uma vez que a maior parte das proposições não são – nem poderiam ser – problematizadas na prática comunicativa, acabam por fugir da experiência crítica, condensando-se nas certezas existentes no mundo da vida. Esse pano de fundo de silêncio implícito no discurso é capaz de estabilizar a pressão problematizadora das experiências comunicativas (HABERMAS, 1990:91), de modo que o risco de dissenso[12] possa ser, pelo menos em parte, contornado, fornecendo: (1) certeza imediata; (2) força totalizadora, por possuir um ponto central, mas limites indeterminados; (3) natureza holística, pois trata-se de um saber intransparente, no qual seus conteúdos encontram-se liquefeitos.[13]
Como um todo, o mundo da vida só atinge o campo da visão no momento em que nos colocamos às costas do ator e entendemos o agir comunicativo como elemento de um processo circular no qual o agente não mais aparece mais ? como indicador, mas como produto de tradições nas quais ele está inserido, de grupos solidários aos quais ele pertence e de processo de socialização e de aprendizagem, aos quais ele está submetido (HABERMAS, 1990:83).
É por isso que o mundo da vida tem como estruturas: (1) a cultura, entendida como “o armazém de saber do qual os participantes da comunicação extraem interpretações no momento em que se entendem mutuamente sobre algo” (HABERMAS, 1990:83), logo é responsável por fornecer substratos simbólicos diferentes aos falantes; (2) a sociedade, composta por ordens legítimas nas quais participantes regulam sua pertença a grupos sociais e garantem solidariedade, tais ordens mostram-se como institucionais por fornecerem as normas do Direito ou práticas e costumes; e (3) as estruturas de personalidade, que representam o substrato dos organismos humanos. Destarte, a sociedade forma-se e reproduz-se por meio do agir comunicativo que tem como pressuposto um mundo da vida simbolicamente compartilhado.
Mas deve ser lembrado que as sociedades modernas apresentam uma pluralização das formas de vida, além de uma individualização das biografias, fenômeno esse que faz com que se diminuam as zonas de convergência do mundo da vida (BAHIA, 2003:227). Após o rompimento das amarras tradicionais (ligadas à religião e à obediência consuetudinária), tudo pode ser alvo de questionamento. Mas isso não pode ser compreendido apenas por um prisma negativo: “[...]só se produz consenso a partir do dissenso, ao mesmo tempo em que todo consenso é apenas o primeiro passo para um dissenso futuro” (BAHIA, 2003:228). Duas são as saídas apontadas por Habermas: (1) uma limitação do campo de problematização dado aos participantes; ou (2) reconhecer que, em sociedades complexas, a ação comunicativa pode – e deve – desempenhar um importante papel de integração social, para tanto, ela tem de se valer de seus próprios recursos para “domesticar” o risco de dissenso. Logo, o mundo da vida e a ação comunicativa representam duas noções fundamentais.
O conceito “mundo da vida”, explicitando desta maneira, não fornece apenas uma resposta à questão clássica: como é possível a ordem social? Através da idéia do entrecruzamento dos componentes do mundo da vida, é possível responder também a uma outra questão da teoria clássica da sociedade, ou seja, ao problema da relação entre indivíduo e sociedade. O mundo da vida não forma um ambiente cujas influências contingentes o indivíduo teria que combater a fim de auto-afirmar-se. O indivíduo e a sociedade não formam sistemas que se encontram em seu ambiente e que se referem um ao outro de modo externo, como se fossem observadores. De outro lado, porém, o mundo da vida não constitui uma espécie de recipiente no qual os indivíduos estariam incluídos como partes de um todo. A figura de pensamento utilizada pela filosofia do sujeito fracassa do mesmo modo que a teoria do sistema (HABERMAS, 1990, p. 99).
A partir dessa nova perspectiva, torna-se possível compreender por que tanto as explicações providas pela filosofia do sujeito – por centraram sua leitura na figura dos indivíduos isolados da sociedade – quanto as da teoria dos sistemas – que buscando fugir da primeira, anula a figura do indivíduo, compreendendo a sociedade a partir de subsistemas sociais que operacionam funções próprias, mas não interconectadas – acabam por fracassar na explicação da ordem social. Todavia, Habermas não nega a importância dos estudos sobre os sistemas sociais; na realidade, ele discorda dessas abordagens por considerá-las apenas capazes de enxergar um lado da questão: ao assumirem o papel de observador, apenas são capazes de descrever os processos funcionais que acontecem na sociedade, sem se dar conta da relação existente entre esses sistemas e o mundo da vida; uma vez que a abordagem sistêmica lança mão apenas da racionalidade instrumental, própria dos sistemas que simplesmente funcionam, sem se preocupar com questões referentes à validade. Além do mais, a racionalidade sistêmico-instrumental tende a se expandir, causando uma patologia que Habermas denominará de colonização do mundo da vida.[14]Assim, as dúvidas sobre a possibilidade de manutenção da ordem social apenas vão se acumulando: por um lado, devido à constante ameaça de destruição do mundo da vida por parte dos imperativos funcionais dos sistemas sociais; por outro, em razão do constante risco de dissenso causado pelo enfraquecimento do mundo da vida devido à crescente pluralização das formas de vida e pela possibilidade de se lançar mão de ações estratégicas (HABERMAS, 1998:87).
É diante desse quadro que Habermas compreenderá a crescente importância atribuída ao Direito: de maneira dúplice, o Direito moderno é capaz de limitar o campo de ações estratégicas por meio da imposição de sanções – de modo que essas adaptem-se ao padrão de comportamento socialmente aceito, revelando a tensão entre coerção factual e validade legitimadora – e de organizar o sistema econômico e o sistema administrativo, equilibrando-os com a racionalidade comunicativa (HABERMAS, 1998:102) de forma a conferir legitimidade aos seus imperativos funcionais e a integrá-los nos processos de manutenção da ordem social. Mas, para que o Direito cumpra essa função, primeiro ele deve passar por um complexo processo de reconstrução.
2. O DIREITO COMO UM DOS MECANISMOS DE GARANTIA DA INTEGRAÇÃO SOCIAL: A MEDIAÇÃO DA TENSÃO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE
A obra de 1994, Faktizität und Geltung – ou, como se tornou conhecida pelos pesquisadores brasileiros, Facticidade e Validade – representa um marco no pensamento habermasiano no que se refere à compreensão do Direito. Aqui o autor apresenta uma revisão completa das ideias apresentadas na sua Teoria da Ação Comunicativa (1987) – TAC – abrindo-se para uma nova perspectiva, o que veio causar estranhamento em diversos leitores,[15]que passaram a adotar três atitudes divergentes: (1) procuraram assimilar a nova posição; (2) ignoraram essa posição, mantendo seu posicionamento a partir das bases fixadas na TAC, como se as obras posteriores não tivessem a mesma relevância; ou (3) criticaram pesadamente o autor, alegando que o mesmo estaria promovendo um abandono – ou até mesmo uma diluição – da tradição filosófica para o pensamento jurídico.[16]A mudança de curso, para alguns, chega a ser tão radical, que passa-se a identificar a existência de dois ou mais Habermas – ordenando-os cronologicamente, tal qual aconteceu com Wittgenstein (NIQUET, 2002:67; 2002:95). Todavia, uma outra interpretação pode ser assumida: o que alegam ser um giro para o Direito, na realidade, não destoa tanto do projeto habermasiano; tratar-se-ia de um desenvolvimento da ideia inicial, presente já nos primeiros escritos sobre a linguagem, que, entretanto, para se firmar com coerência, certamente levou o autor a perceber a necessidade de correção e reestruturação da compreensão de Direito – lançada em escritos posteriores ao Facticidade e Validade – principalmente no que toca a relação entre esse e a Moral e ao seu entendimento como categoria da integração social.
De maneira sintética – uma vez que uma abordagem mais detalhada foge do escopo da presente pesquisa – a TAC apresenta o Direito a partir de dois prismas: (1) atrelado aos sistemas sociais, funcionando como meio de organização desses. Aqui o Direito apareceria como um meio,[17]isto é, instrumentalizado para a organização dos sistemas sociais que operam através de uma linguagem própria – poder e dinheiro. Como consequência, o Direito ficaria aliviado da problemática acerca de sua fundamentação material, bastando que suas normas tivessem observado o processo correto de produção. Seria o caso das normas de direito civil, direito empresarial, direito econômico, etc. (HABERMAS, 1987:2:516; CHAMON JUNIOR, 190). E (2) ligado ao mundo da vida, como uma instituição. Toda questão referente aos “fundamentos” do Direito bem como os princípios estariam ligados a uma estrutura mais complexa que combina procedimento formal e legitimidade material para a formação das normas jurídicas – é o que Habermas chama de institucionalização do Direito. Isso porque tais princípios materiais refletiriam uma determinada “moralização” da parte do Direito – como o direito constitucional, direito penal, etc. – de forma a encontrar, no campo da Moral, uma fundamentação legitimadora (HABERMAS:1987:2:516; CHAMON JUNIOR, 2005:191). O Direito, então, estaria de alguma forma subordinado à Moral.
Enquanto o Direito como meio teria o papel de organizar e constituir controladamente o Estado e a Economia, o Direito como via institucionalizadora de questões de conteúdo moral não teria qualquer papel constitutivo, mas antes tão-somente regulativo. Isso porque as instituições jurídicas, na medida em que se apresentam conectadas ao mundo da vida, encontram-se num âmbito político-cultural e social, guardando, assim, uma relação de continuidade das normas éticas pelo fato de que são institucionalizadas através da sanção estatal aquilo que anteriormente já se encontrava informalmente constituído (CHAMON JUNIOR, 2005:191, grifos no original).
A consequência dessa separação seria a constatação de uma colonização do mundo da vida pelo Direito: o Direito tomado como meio servia aos sistemas sociais, permitindo o desalojamento da ação orientada pelo entendimento, substituindo pretensões compartilhadas e presentes no mundo da vida por uma racionalidade instrumental unicamente limitada pela correção do procedimento de produção normativo.[18]A solução, então, decorreria da criação de espaços de discussão, nos quais o controle institucional não estivesse presente, possibilitando a racionalidade comunicativa alcançar seu curso, sem o uso de respostas jurídicas prontas e acabadas (HABERMAS, 1987:2:527; CHAMON JUNIOR, 2005:193).
[Todavia, a] falha de Habermas foi ter excluído, de antemão, a questionabilidade de uma “legitimidade material” do Direito como meio, seja pelo fato de a legitimidade ser “transferida” pelas normas constitucionais ligadas ao mundo da vida, seja pelo fato de determinadas questões serem “alheias” ao mundo da vida. Preferiu uma legitimidade pelo mero procedimento que, por sua vez, obscurecia e, como dito, às vezes excluía uma possível argumentação de justificação fundada em princípios morais (CHAMON JUNIOR, 2005:201).
Essa posição será revista na obra Facticidade e Validade, abolindo a distinção de Direito meio/Direito instituição, uma vez que reconhecerá a capacidade de o Direito, tomado como um todo, ser justificado perante o mundo da vida, mas sem subordiná-lo à Moral; isto é, reconhecendo que o Direito não representaria um caso especial da argumentação moral, tese defendida por Alexy (HABERMAS, 1987:1:60; CHAMON JUNIOR, 2005:203)[19]e que será tão duramente criticada pelo próprio autor. Todavia, esse é um estágio final de seu pensamento, que contou ainda com uma fase preliminar de maturação, como se verá a seguir; pois, em sua Tanner Lectures, em 1986, Habermas retoma a questão. Inicia-a pela reconstrução dos estudos de Weber sobre o conceito positivista de Direito: Direito é o que o Legislador político estabeleceu conforme um procedimento juridicamente institucionalizado (HABERMAS, 1998:535). A racionalidade jurídica, então, estaria referida à sua forma jurídica em si, de modo que sua legitimidade decorreria das formalidades necessárias para sua positivação, sem que fossem necessárias quaisquer outras razões, inclusive referentes às questões morais (CHAMON JUNIOR, 2005:205). No entanto, tal tese será criticada: a legitimidade do Direito também, dirá Habermas (1998:544-545), está atrelada a uma relação interna entre Direito e Moral.[20]
É importante esclarecer que essa relação interna entre Direito e Moral não representa a assunção de uma concepção metafísica ou tradicional; a legitimidade do Direito é compreendida a partir de uma perspectiva procedimental, de modo que deriva de um conteúdo moral implícito que norteia o processo de produção de normas sob à luz de uma racionalidade prático-moral.[21] Por isso mesmo, ganha relevo a questão da imparcialidade – seja nos processos de legislação, seja nos processos de aplicação do Direito. Imparcialidade, para Habermas, deve ser compreendida em termos morais e conforme as teorias da justiça que propõem uma solução que antecede a institucionalição do Direito, centrando-se no moral point of view (HABERMAS, 1998:555; CHAMON JUNIOR, 2005:213).
A argumentação moral surgiria como processo racional de formação da vontade em que os participantes deste discurso assumem que todos aqueles que serão afetados poderiam também participar na formação dessa “vontade” de maneira livre e igual, entendendo como coerção aquela verificada em face dos melhores argumentos (CHAMON JUNIOR, 2005:213).
Nessa perspectiva, tanto o Direito quanto a Moral compartilhariam de uma racionalidade procedimental, de modo que um não se confunde com a outra, como queriam os jusnaturalistas, mas há um compartilhamento:
Agora, enquanto os discursos institucionalizados permitem uma aproximação a uma racionalidade procedimental “perfeita” – porque um não implicado poderia questioná-la a partir do próprio Direito –, o procedimento moral já se apresentaria como “imperfeito”, pois somente os envolvidos poderiam realizar um juízo acerca da validade em razão da falta de critérios externos ou prévios (CHAMON JUNIOR, 2005:214).
Direito e Moral, então, estariam em uma relação de complementaridade – não mais de subordinação. Mas, mesmo assim, trata-se de uma complementação da Moral pelo Direito que se dá moralmente.[22]O Direito, nessa visão, surge como “compensação de uma Moral autônoma e que apresenta déficits na medida em que se verifica em um momento pós-tradicional” (CHAMON JUNIOR, 2005:215, grifo no original). Além disso, o Direito acaba exonerando os indivíduos de uma fundamentação moral para suas ações, bastando apenas uma referencia ao Direito (HABERMAS, 1998:558-559).
Em síntese: a Moral encontrar-se-ia no interior do Direito; sem, contudo, esgotá-lo. Essa moralidade não se refere ao conteúdo jurídico – como queriam os jusnaturalistas – mas direciona-se aos procedimentos de justificação e aplicação das normas jurídicas. No primeiro caso, a legitimidade jurídica deriva do princípio moral que levanta uma exigência de assentimento geral para que se alcance a imparcialidade – princípio de universalização. Ao passo que, nos processos de aplicação do Direito, a idéia de imparcialidade decorre da compreensão adequada de todos os aspectos relevantes da situação concreta – senso de adequabilidade.[23]
Como já adiantado, na obra Facticidade e Validade, Habermas apresentará uma reformulação das propostas anteriores. Aqui a análise passa para a discussão acerca das condições, possibilidade e legitimidade do Direito nas sociedades contemporâneas pós-tradicionais, nas quais o Direito se tornou positivo – isto é, tem-se um Direito escrito, histórico, contingente, modificável e coercitivo, mas que também é garantidor de liberdade (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). O Direito positivo, então, apresentaria duas propriedades importantes: ele atua como fator de limitação, uma vez que estabiliza expectativas de comportamento generalizáveis, podendo, para isso, fazer uso de sanções; e como fator de deslimitação, já que abre a possibilidade de que todas as normas sejam criticáveis – seja no processo legislativo, seja nos processos de aplicação de normas (BAHIA, 2003:230).[24]
Assim o Direito moderno consegue artificialmente garantir a integração social, sem necessidade de apoiar-se em algum vínculo ético. A solidariedade social está baseada, em um nível pós-tradicional, numa fundamentação procedimental: na afirmação de que o destinatário da norma é também seu criador (HABERMAS, 1998:96). Além do mais, o Direito adquiriu a capacidade de funcionar como dobradiça entre sistemas sociais e o mundo da vida (HABERMAS, 1998:120; BAHIA, 2003:232)[25]. Uma vez que os sistemas sociais desenvolveram linguagens próprias e especializadas, carecem de meios para receber os influxos comunicativos provindo do mundo da vida; todavia este por ater-se a uma linguagem ordinária e reflexiva, continua capaz de compreender aqueles, mas o inverso não ocorre. O Direito, então, fornece essa ligação através de seu próprio código (HABERMAS, 1998:120; BAHIA, 2003:232).[26]
O Direito, portanto, é capaz de substituir o lugar das garantias metassociais que – em sociedades tradicionais de tipo medieval – eram derivadas de uma amálgama que estabilizava a tensão entre facticidade e validade das pretensões, “na medida em que o ‘sagrado’ não só significava uma autoridade, como também limitava o campo de problematização” (CHAMON JUNIOR, 2005:227). As práticas passadas ao longo de cada geração seriam dotadas de uma natureza sagrada, imutável, o que as imunizaria de críticas, de modo que sua observância seria garantida pelo medo da sanção; isso acabaria por fundir facticidade (coerção/ameaça) e validade (força vinculante).[27]
Todavia, uma saída que encontre forças de coesão social em um elemento considerado sagrado ou em qualquer outra forma de justificação metassocial, não está disponível para uma sociedade pós-tradicional e pluralista, como é a sociedade contemporânea. As antigas instituições fortes não mais conseguem dar cabo da tarefa de compensação ou atenuação dos déficits de estabilidade social; as certezas, que antes eram postas como inquestionáveis pela tradição, não são mais suficientes, a questão da integração social desloca-se, agora, para os processos de entendimento mútuo, regidos pela ação comunicativa (HABERMAS, 1998:87; CHAMON JUNIOR, 2005:230).
Percebe-se, então, que em uma sociedade tão diferenciada não há mais que se pretender vislumbrar uma neutralização entre faticidade e validade, enquanto integração garantida pelas certezas tradicionais homogêneas do mundo da vida ou da redução sacro-autoritária (de autoridade) da validade à faticidade: a estabilidade moderna só pode ser alcançada, na instabilidade, de maneira comunicativa – o que não impede os indivíduos de buscarem seus próprios interesses (CHAMON JUNIOR, 2005:230-231, grifos no original).
Dessa forma, o Direito também ganha importância ímpar: já que é aberta a possibilidade de os indivíduos buscarem seus próprios interesses, lançando mão, inclusive, da ação estratégica – em vez da ação comunicativa. O Direito é capaz de apresentar um freio normativo, regulando e limitando a ação estratégica; são os próprios atores sociais que – por meio de um acordo ou entendimento a partir de pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas – fixam os espaços e condições nos quais essa racionalidade estratégica seria aceitável (HABERMAS, 1998:88-89). E isso acontece com o Direito como um todo, o que joga por terra a antiga diferenciação de Direito como meio/Direito como instituição: o fato de o Direito ser meio de organização do Estado e da Economia não retira do mesmo a necessidade de voltar-se para questões de legitimidade.
O Direito surge em Faktizität und Geltung como meio de organização, mas também como instituição, simultaneamente e contraditoriamente na medida em que a validade, agora vislumbrada na faticidade da coerção normativamente delineada, pode ser sustentada comunicativamente perante todos na exata medida em que é justificável em um sistema de direitos que abre a todos a possibilidade participativa [...] (CHAMON JUNIOR, 2005:234, grifos no original).
O Direito moderno ainda acaba por aliviar os sujeitos do fardo da integração social: os conflitos que trazem um alto grau de dissenso – principalmente porque os envolvidos deixam de estar submetidos à busca por um entendimento mútuo – podem ser resolvidos a partir da própria tensão entre facticidade (coerção) e validade (aceitabilidade), garantindo uma resposta adequada e legítima; o mesmo, todavia, não pode ser constatado na posição decisionista assumida pela tradição positivista, que vira as costas para as pretensões de legitimidade jurídica (HABERMAS, 1998:101). Resumindo a questão, tem-se que:
O papel principal do Direito no que se refere à integração social se deve ao fato de que o risco do dissenso resta neutralizado agora não mais por uma autoridade sacra ou por instituições fortes que mantinham fora do criticável determinados conteúdos axiológicos e deontológicos. O posto de centralidade do Direito se deve a uma limitação na medida em que a validade das normas não pode ser questionada quando de uma pretensão individual orientada ao êxito. O Direito legítimo é coercitivo e esta coercibilidade possível reflete a aceitabilidade racional e não-questionabilidade da validade desse fato – cisão entre facticidade e validade. Do contrário, o risco de dissenso estaria absurdamente largado, o que colocaria em risco a própria solidariedade social garantida, em última instância, pela ação comunicativa que, assim, fica aliviada de buscar soluções orientadas ao entendimento (CHAMON JUNIOR, 2005:236).