Introdução
A promulgação da Constituição Federal de 1988 impôs modificações de grande significado ao processo penal. A primazia conferida aos direitos fundamentais, sobretudo, trouxe a necessidade de se adequarem diversos institutos do direito processual penal brasileiro aos postulados do sistema acusatório e, mais, do paradigma do Estado Democrático de Direito.
Não obstante a vigência do novo texto constitucional, permaneceram em vigor o Código de Processo Penal comum, publicado em 1941, e o Código de Processo Penal Militar, publicado em 1969, ressaltando-se, apenas, que alguns dispositivos foram posteriormente considerados, pelo Poder Judiciário, como não-recepcionados pela Constituição Federal de 1988.
Devido, porém, à clara e premente necessidade de se atualizar a legislação processual penal em conformidade com a atual Constituição, foram editadas diversas leis ao longo desses 25 anos de vigência do novo texto constitucional.
A Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, ao alterar a redação do art. 400 do Código de Processo Penal comum, buscou atender a esse objetivo, determinando que o interrogatório do acusado passe a ser realizado ao final da instrução probatória. Trata-se de medida de grande relevância, que visa a conferir máxima eficácia ao direito fundamental à ampla defesa e ao contraditório, previsto na Constituição Federal de 1988.
Após a edição da lei, surgiu a seguinte questão: a modificação na ordem do interrogatório do acusado se aplica ou não a procedimentos disciplinados por leis especiais? No presente artigo, discutiremos especificamente a possibilidade de aplicação dessa importante inovação legislativa ao processo penal militar.
1) Do interrogatório judicial como meio de defesa do acusado
A Constituição Federal de 1988, promulgada em um contexto de ruptura político-jurídica com o regime autoritário, fez a clara opção, no que diz respeito ao exercício do poder punitivo do Estado, pelo sistema acusatório.
Essa opção fica clara pela presença, no texto constitucional, de diversos direitos e garantias fundamentais que, se, por um lado, preveem o poder de punir do Estado, por outro, asseguram ao indivíduo uma proteção contra o exercício arbitrário e abusivo desse poder. Assim, estabelece que ninguém poderá ser privado de sua liberdade sem o devido processo legal (art. 5º, LV), bem como que o indivíduo é inocente, e como tal deve ser tratado, salvo sentença penal condenatória transitada em julgado (art. 5º, LVII).
Como corolário do devido processo legal, a Constituição Federal garante ao indivíduo o direito à ampla defesa e ao contraditório, com os meios e recursos a eles inerentes (art. 5º, LV).
É nesse contexto que, no processo penal, se torna imperioso considerar o interrogatório não apenas um meio de prova, mas preponderantemente um meio de defesa. É por meio do interrogatório que o acusado tem a oportunidade de expor ao juiz a sua versão dos fatos ou de exercer o seu direito constitucional ao silêncio, consistindo ambas as estratégias em defesa pessoal (autodefesa).
Vale frisar que o direito fundamental à ampla defesa abrange tanto a defesa técnica, exercida por advogado/defensor público, como a defesa pessoal ou autodefesa, exercida pelo próprio acusado.
Citamos, a propósito do tema, o ensinamento de EUGÊNIO PACELLI (2012, p. 371), que diz:
“Inicialmente concebido como um meio de prova, no qual o acusado era unicamente mais um objeto da prova, o interrogatório, na ordem atual, há de merecer nova leitura.
Que continue a ser uma espécie de prova, não há maiores problemas, até porque as demais espécies defensivas são também consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no próprio princípio da ampla defesa.
Trata-se, efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos, sem se ver, porém, constrangido ou obrigado a fazê-lo”
O tratamento do interrogatório como meio de defesa do acusado traz diversas consequências práticas. Uma delas é a garantia de que, antes de ser interrogado, o acusado tenha plena ciência da imputação que recai sobre ele, o que inclui as provas produzidas pela acusação, como veremos no tópico seguinte deste artigo.
2) Da aplicabilidade da inovação trazida pela Lei nº 11.719/2008, no tocante ao momento de realização do interrogatório judicial, ao processo penal militar
A Lei nº 11.719/2008 trouxe consigo uma alteração de grande relevância no que tange à adequação do processo penal brasileiro ao modelo acusatório acolhido pela Constituição Federal de 1988. Trata-se da alteração da redação do art. 400 do CPP, que passou a dispor o seguinte (grifo nosso):
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
Observa-se que, com essa alteração legal, o interrogatório do acusado deverá ser realizado ao final da instrução probatória, em sintonia com o direito constitucional e fundamental à ampla defesa e ao contraditório.
Com efeito, para que o interrogatório possa cumprir seu papel como meio de defesa, é necessário que o acusado tenha pleno acesso, assegurado pela garantia do contraditório, à totalidade da imputação que recai sobre ele, o que inclui não só a ciência da denúncia, mas de todas as provas produzidas pela acusação.
O Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002/1969), editado durante o regime da ditadura militar, manteve-se, porém, inalterado no que tange ao interrogatório do acusado, dispondo em seu art. 302 o seguinte (grifo nosso):
Art. 302. O acusado será qualificado e interrogado num só ato, no lugar, dia e hora designados pelo juiz, após o recebimento da denúncia; e, se presente à instrução criminal ou prêso, antes de ouvidas as testemunhas.
Claro está, diante do que foi exposto, que a determinação contida nesse dispositivo não se harmoniza com o valor atribuído pela Constituição Federal ao direito à ampla defesa (técnica e autodefesa) e ao contraditório, verdadeiro direito fundamental do acusado e princípio basilar do processo penal no sistema acusatório.
Pela importância do argumento, vale repisar: não existe possibilidade real e efetiva de exercício do direito à autodefesa sem o prévio conhecimento, pelo acusado, de todas as provas produzidas pela acusação. Sem esse prévio conhecimento, o direito à autodefesa se torna letra morta, uma mera formalidade, e o interrogatório, um restrito meio de prova, capaz apenas de servir à acusação.
O rito estabelecido pelo art. 302 do Código de Processo Penal Militar, em que o interrogatório é realizado antes mesmo de ouvidas as testemunhas, não permite, portanto, ao acusado exercer plenamente o seu direito fundamental à autodefesa, como assegurado pela Constituição Federal de 1988.
O Superior Tribunal Militar, contudo, referendou a aplicação desse rito do art. 302 do CPPM mesmo após a modificação legislativa do art. 400 do CPP, introduzida pela Lei nº 11.719/2008. E o fez editando, em 4 de janeiro de 2013, a Súmula nº 15, cujo teor é o seguinte:
“A alteração do art. 400 do CPP, trazida pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que passou a considerar o interrogatório como último ato da instrução criminal, não se aplica à Justiça Militar da União.”
Não podemos, todavia, concordar com esse entendimento sumulado pelo STM. De fato, não se pode atribuir ao conflito normativo em questão a solução simplista baseada no princípio da especialidade.
A resposta para a questão deve ser orientada, na verdade, pelo princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, utilizado na hermenêutica constitucional. Ora, a ampla defesa e o contraditório, além de serem inerentes à concepção de processo penal no modelo acusatório, acolhido pela Constituição Federal de 1988, constituem direito fundamental do indivíduo.
Diante do que foi exposto, constata-se que a norma prevista na atual redação do art. 400 do CPP, dada pela Lei nº 11.719/2008, confere maior efetividade ao direito à ampla defesa e ao contraditório do que aquela prevista no art. 302 do CPPM. Esta última assegura apenas um direito formal de autodefesa do acusado, pobre de conteúdo, o que certamente não atende ao comando constitucional. A Constituição Federal de 1988 garante ao acusado não uma defesa qualquer, mas uma defesa ampla, com todos os meios e recursos a ela inerentes. E essa norma constitucional deve ser interpretada e aplicada de modo a garantir a máxima eficácia do direito que veicula.
Esse foi, aliás, o entendimento firmado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu ser aplicável, ao processo penal militar, a regra prevista na atual redação do art. 400 do CPP. Transcrevemos, a título de exemplo, a ementa do acórdão proferido no HC 115698:
PROCESSUAL PENAL. INTERROGATÓRIO NAS AÇÕES DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. ATO QUE DEVE PASSAR A SER REALIZADO AO FINAL DO PROCESSO. NOVA REDAÇÃO DO ART. 400 DO CPP. PRECEDENTE DO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (AÇÃO PENAL Nº 528, PLENÁRIO). ORDEM CONCEDIDA. 1. O art. 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.719/2008, fixou o interrogatório do réu como ato derradeiro da instrução penal. 2. A máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV), dimensões elementares do devido processo legal (CRFB, art. 5º LIV) e cânones essenciais do Estado Democrático de Direito (CRFB, art. 1º, caput) impõem a incidência da regra geral do CPP também no processo penal militar, em detrimento do previsto no art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedente do Supremo Tribunal Federal (Ação Penal nº 528 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. em 24/03/2011, DJe-109 divulg. 07-06-2011). 3. Ordem de habeas corpus concedida.(HC 115698, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/06/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-158 DIVULG 13-08-2013 PUBLIC 14-08-2013)
Vale destacar, a propósito, o seguinte trecho do Voto do Ministro Luiz Fux, relator do acórdão proferido no citado habeas corpus:
“Verifica-se, portanto, que a proteção do direito de defesa consubstanciada no art. 302 do Código de Processo Penal Militar é mais frágil do que aquela consagrada pelo atual art. 400 do Código Penal, com redação dada pela Lei nº 11.719/2008. Nesse cenário, o postulado da máxima eficácia dos direitos fundamentais (CRFB, art. 5º, §1º) reclama, tal como na AP nº 528, o afastamento da disciplina legal menos afeiçoada ao estatuto constitucional das garantias individuais, de sorte a prestigiar a opção legislativa que melhor concretize os vetores axiológicos emanados da Carta Constitucional.”
Conclusão
Diante do imperativo constitucional de se conferir a máxima efetividade ao direito fundamental à ampla defesa e ao contraditório, deve ser aplicada ao processo penal militar a norma prevista na atual redação do art. 400 do CPP, dada pela Lei nº 11.719/2008, de modo que o interrogatório do acusado deve ser realizado ao final da instrução probatória.
Referência
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Ed. Atlas, 2012.