2.A INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL, SEM REDUÇÃO DE TEXTO, DOS ARTS. 20 E 21 DA LEI Nº 10.406/02 – CÓDIGO CIVIL – A ADIN Nº 4815/STF
No mês de julho de 2012, a Associação Nacional dos Editores de Livros – Anel propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) perante o Supremo Tribunal Federal, tendo por objeto a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21 do Código Civil em virtude da interpretação que tem sido dada aos dispositivos pelo Poder Judiciário.
As decisões judiciais têm levado à proibição da edição de biografias não autorizadas pelas pessoas cuja vida está retratada nas obras literárias ou audiovisuais – ou de seus herdeiros, em caso de pessoas falecidas – , ou de pessoas retratadas como coadjuvantes, em total afronta à sistemática constitucional que prevê a liberdade de expressão e o direito à informação, caracterizando verdadeira censura privada.
Conforme linha argumentativa presente na petição inicial da Adin, a extensão dos comandos extraíveis da literalidade dos artigos supracitados, ao não preverem qualquer exceção contemplando as obras biográficas, acaba por violar as liberdades de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (CF, art. 5º, IV e IX), além do direito difuso da cidadania à informação (art. 5º, inc. XIV).
Assim, por via de interpretação conforme a Constituição, a pretensão é afastar do ordenamento jurídico o entendimento que tem sido invocado para obstar a publicação de obras biográficas não autorizadas.
Na inicial não se nega a importância da tutela dos direitos da personalidade, mas denuncia-se que a interpretação literal dos arts. 20 e 21 do Código Civil afronta a liberdade de expressão, de informação e de pensamento.
Considerando-se a legitimidade da interpretação que vem sendo dada pelo Judiciário, poderia ser dado ensejo a restrições à livre divulgação de informações pela imprensa, tendo em vista a previsão da necessidade de prévia autorização do retratado em qualquer publicação, exposição ou utilização da imagem da pessoa por veículos de comunicação social. De tão absurda, essa interpretação é afastada pela jurisprudência por ser manifestamente inconstitucional65. Porém, quanto às biografias não autorizadas, a publicação é passível de contestação com alicerce nos dispositivos legais.
Exatamente por isso, somente as obras “chapas-brancas”, que muitas vezes caracterizam verdadeira hagiografia66, têm sido publicadas.
Destaque-se que a versão dos fatos contada apenas pelos seus protagonistas, e, na maioria das vezes, distorcida, é causadora da deturpação da História, causadora de verdadeira stalinização67.
E o pior: as biografias oficiais tendem a amenizar ou suprimir fatos desabonadores da vida do biografado.
Como bem salientado na inicial da Adin, a ninguém é dado cogitar de impedir a publicação de biografias autorizadas pelo fato de estas faltarem com a verdade, pois, por mais panegíricas que sejam, representam a versão do personagem central dos fatos, cuja liberdade de expressão deve ser protegida.
Porém, é afrontoso à liberdade de expressão condenar o leitor à biografia única e, o pior, à autobiografia, ditada pelo próprio biografado ou seus herdeiros. O leitor deve formar livremente suas opiniões e convicções pela leitura de quantas biografias quiser.
Quanto à alegação de que o leitor pode se fiar a uma imagem deturpada do biografado a solução não é a censura, mas a educação. Por meio do pensamento crítico adquirido com uma boa cultura, o leitor será capaz de refutar e contraditar informações.
No mais, conforme disposto no capítulo 1, em caso de abuso de direito consubstanciado na falta de veracidade das informações, culpa ou dolo na divulgação, ofensas pessoais, muitas vezes caracterizadoras de crimes contra a honra, enfim, dano injusto, será cabível indenização por danos materiais e/ou morais.
Outrossim, deve ser frisado que nos casos de afronta gritante aos direitos da personalidade deve ser buscada a tutela preventiva no Judiciário. Aqui nos referimos àquelas informações divulgadas sem qualquer embasamento nos fatos, desprovidas de veracidade, nas quais restem caracterizados o dano injusto e o abuso de direito.
O Professor Gustavo Tepedino se manifesta com pena de ouro em parecer proferido para o caso:
Os arts. 20 e 21 do Código Civil, ao tutelarem a imagem, privacidade e a honra das pessoas, hão de ser interpretados em conformidade com a Constituição da República, de modo a não sacrificarem o direito fundamental à informação e às liberdades de expressão e de pensamento. Exclui-se, assim, por inconstitucional, qualquer interpretação daqueles dispositivos legais que proíba as obras biográficas, literárias ou audiovisuais, de pessoas notórias sem prévia autorização dos biografados ou de seus familiares na hipótese de pessoa falecida. As biografias, com efeito, revelam narrativas históricas descritas a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram a história. Tais fatos, só por serem considerados históricos, já revelam seu interesse público em favor da liberdade de informar e de ser informado, da memória e da identidade cultural da sociedade68.
Além da censura pura e simples, a Adin merece acolhida para vedar outro fenômeno que se agiganta: a precificação dos direitos da personalidade.
Escritórios de representação têm negociado preços absurdos para licenças, observando-se no mercado editorial uma disputa puramente mercantil, “verdadeiro leilão da história pessoal de vultos históricos”69.
Pelo viés da historiografia, a questão adquire ares mais funestos. As exigências descabidas dos biografados ou de seus herdeiros, ou ainda a ameaça de uma demanda judicial que, dependendo do personagem retratado, pode ocasionar a falência da editora e a insolvência do escritor, ocasionam grave desestímulo à produção intelectual.
Com a liberdade de expressão tolhida, uma das ferramentas mais importantes para a realização da democracia, resta fulminado um dos alicerces do Estado Democrático de Direito.
Isso porque o julgamento casuístico em relação às informações que podem ou não ser reportadas, ou, ainda, conforme expresso na petição inicial da Adin, uma “filtragem prévia” das pessoas que poderiam ou não ser mencionadas em obras biográficas, caracterizaria verdadeira censura.
O envolvimento de alguém em acontecimento de relevância pública faz com que tal indivíduo seja suscetível de citação pela historiografia, até porque será mencionado ora pelo personagem central ora por outros envolvidos na narrativa.
O professor Gustavo Tepedino de forma magistral ilustrou esta questão:
Como contar a história do primeiro reinado sem levar em conta as relações extraconjugais do Imperador, relevantes para a compreensão dos costumes da época, das ligações entre a burguesia e a nobreza, do método de nomeação de autoridades e cargos públicos e assim por diante? Seria razoável condicionar a divulgação de cartas e documentos que retratam fielmente o relacionamento do Imperador com suas amantes e a Imperatriz à autorização dos descendentes da nobiliarquia brasileira? Seria possível cogitar-se de liberdade de expressão sem a ampla permissão constitucional para a publicação de tais biografias?7071.
Também merece ser ressaltado que muitas vezes a censura da obra acaba por aguçar a curiosidade do leitor que busca conhecer os fatos nebulosos por meio de publicações apócrifas e textos anônimos divulgados na Internet. Não raras vezes o verdadeiro dano à personalidade advém dessas informações que não podem ser cotejadas com a biografia do retratado.
Por conduzir à censura privada, é incoerente com a sistemática da liberdade de expressão e de pensamento a seleção de fatos a respeito de personalidades notórias, sejam políticos, artistas, cientistas, que são passíveis de divulgação em obras biográficas.
A compreensão dos arts. 20 e 21 do Código Civil como limites prestabelecidos às manifestações de pensamento afronta as garantias constitucionais à livre informação, principalmente no que concerne às informações jornalísticas e biográficas.
No caso das obras literárias classificadas como biografias, permanecerá sujeito a juízo a posteriori – a não ser em raríssima exceção – o abuso de direito ou desvio do exercício da liberdade de informação, seja pela ilicitude de fontes, falsidade evidente dos fatos ou desvirtuamento da finalidade do interesse tutelado.
Isto porque, conforme já mencionado ao tratarmos do julgamento do HC 82.424 pelo Pretório Excelso, com base no princípio da liberdade de expressão, da liberdade de manifestação de pensamento, e o direito fundamental de acesso a todo tipo de obra, o controle judicial somente ocorre a priori em casos excepcionais, sob pena de verdadeira censura prévia.
Exemplificamos situação excepcional com a hipotética publicação e divulgação de obra literária que contenha em seu encarte fotos de atos sexuais com crianças.
Pensamento contrário, que seria o da censura prévia, nos levaria à institucionalização da “queima” de livros pelo Judiciário – metáfora para a retirada de circulação das obras “proibidas” – verdadeiro pastiche dos atos cometidos pela infame Inquisição e pelo Nazismo.
O mais grave nesta situação é o fato de o julgamento sobre a conveniência ou não de determinada obra, com conteúdo supostamente afrontoso aos direitos da personalidade, ficar ao alvedrio de um Juiz singular ou, no máximo, de um Colegiado.
Infelizmente muitos civilistas ainda conferem à personalidade humana o tratamento hermenêutico influenciado pela concepção patrimonialista, esquecendo-se de que a liberdade de manifestação de pensamento é também inerente à personalidade humana, sendo sua restrição afrontosa à dignidade.
O último andamento da Adin72 informa que os autos se encontram “conclusos ao relator”.
Também não podemos deixar de observar que, caso o julgamento da Adin 4.815 se alongue, pode perder seu objeto.
Isto porque está em trâmite na Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 393/117374, de autoria do deputado federal Newton Lima (PT-SP).
O PL dispõe sobre a alteração do art. 20 do Código Civil, para ampliar a liberdade de expressão, informação e acesso à cultura75.
O objetivo é garantir a divulgação de imagens e informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade. Conforme consulta ao site da Câmara dos Deputados, o parecer asseverando a legalidade da alteração foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) em 02.04.2013, e em 04.04.2013 ocorreu a publicação deste documento.
Em 18.04.2013, com o encerramento do prazo, um recurso foi apresentado.
Vale a pena destacar as alterações objetivadas pelo projeto. Pretende-se que o art. 20 do Código Civil, após a alteração de seu parágrafo único para § 1º, passe a vigorar com o seguinte texto:
Art.20............................................................................................................................
§1º Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes;
§ 2º A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimento de interesse da coletividade (destacou-se).
Na justificação do PL, afirma-se que as personalidades públicas são consideradas políticos, esportistas, artistas, entre outros, pessoas cujas trajetórias profissionais e pessoais se confundem e servem de paradigma para toda a sociedade.
Considera-se que tais pessoas, por sua posição de destaque em relação aos demais cidadãos, norteiam, com suas condutas, as decisões de diversos segmentos sociais, os quais valorizam as escolhas pessoais realizadas por tais personalidades públicas, muitas vezes até reproduzindo-as.
Enfatiza-se que é evidente o protagonismo que um jogador de futebol consagrado ou um artista popular exercem sobre a tomada de decisão de pessoas ditas comuns, citando, inclusive, a imitação de um simples corte de cabelo.
A justificação ressalta que a inexigência de autorização para publicação de obra biográfica não significa atentado à dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1º, III, da CF, permanecendo garantido o direito ao nome, conforme o art. 17 do Código Civil.
CONCLUSÃO
A publicação do gênero literário biografia não autorizada tem se revelado um investimento de alto risco para as editoras, fato que não ocorre na edição das autobiografias, em sua maioria, panegíricas, “chapas-brancas”, elogiosas, enfim, parciais, e geralmente redigidas por ghost writers.
Com base no ordenamento jurídico vigente, em que banida a censura estatal, é descabida a submissão da livre manifestação de autores e historiadores ao direito potestativo dos biografados ou de seus herdeiros para a redação das biografias não autorizadas.
O direito de informação é de grandiosidade ímpar ao possibilitar que diversos problemas sejam de conhecimento público e, em razão disto, possam ser enfrentados e discutidos, levando às transformações político-sociais tão caras à dinâmica da coletividade.
A importância da atividade jornalística e da historiografia, principalmente quando rememoramos o passado recente brasileiro, não pode ser olvidada. A atuação destes profissionais é determinante para que não caiam no esquecimento os desmandos políticos da Ditadura Militar (1964-1985) e os escândalos envolvendo homens públicos de renome, apenas para exemplificar.
Em um país carente de educação formal, também cabe à Imprensa e à História a tarefa hercúlea de desmascarar inúmeras personalidades endeusadas pela mídia.
Não causa espanto que os maiores opositores dos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de alterar a redação dos arts. 20 e 21 do Código Civil – devido à abertura textual dos dispositivos – sejam os políticos de reputação duvidosa. Como regra, os opositores das biografias não autorizadas são aqueles que temem sua própria história de vida, parafraseando Gustavo Binenbojm na petição inicial da Adin 4.815/STF.
Por óbvio não defendemos a isenção de responsabilidade do biógrafo ou do historiador.
As informações divulgadas nas biografias devem ser verazes, cumprirem sua função social – tópico no qual englobamos não só a historicidade dos fatos, mas também a relevante função de pulverizar as personalidades inverossímeis e imaculadas apresentadas na Imprensa –, observando limites éticos aceitáveis, ou seja, sem descambar em ofensas pessoais e gratuitas.
Também deve ser considerado o aforismo que diz que nem tudo que é verdade pode ser divulgado, mas que tudo que é divulgado deve ser verdadeiro, pois equívocos ou eventuais erros não devem levar à responsabilização do autor desde que demonstrada diligência na captação de informações, sua escorreita averiguação, o confronto com outras fontes e o cuidado na elaboração do texto.
Outrossim, deve ser frisado que o ordenamento jurídico prevê a responsabilidade em decorrência de negligência, imprudência ou imperícia, exatamente o que ocorre quando há a divulgação de informações baseadas em boatos ou maledicências.
Nos casos de abuso de direito, no qual o autor faça uso doloso de informações falsas e ofensivas à honra do biografado ou coadjuvantes, será eventualmente cabível sua responsabilização civil e penal, porém em juízo a posteriori e in concreto. Conseguimos visualizar pouquíssimas situações excepcionais de controle a priori, dentre elas, a publicação de obra contendo encarte fotográfico de atos sexuais com crianças.
Caso contrário, resta caracterizada a censura prévia, teratologia jurídica na qual, sem qualquer ponderação de princípios, é dada relevância aos direitos da personalidade.
As reiteradas decisões neste sentido sugerem que os civilistas ainda conferem à personalidade humana o tratamento hermenêutico influenciado pela concepção patrimonialista, esquecendo-se de que a liberdade de manifestação de pensamento é também inerente à personalidade humana, sendo sua restrição afrontosa à dignidade.
Na área da comunicação social, não raras vezes, o exercício da liberdade de informação e de expressão afrontará os direitos da personalidade do retratado, sem que com isso se afigure o dano injusto.
A objeção do direito ao esquecimento também não merece guarida como justificativa para a não publicação de biografia não autorizada eventualmente afrontosa aos direitos da personalidade, pois existindo interesse social e/ou acadêmico nos fatos que tenham entrado para os anais históricos da coletividade há motivação suficiente a rememorá-los.
Desta forma, sendo a liberdade de expressão, aí inserida a liberdade de informação e de pensamento, pilar da democracia, determinante para a formação do espírito cético e questionador, verdadeiro alicerce para o acesso ao conhecimento, impulsionador das transformações sociais, aderimos ao pedido disposto na Adin 4.815/STF de declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21 do Código Civil.
Lembramos que o bom jornalismo, seja em reportagens investigativas seja em biografias não autorizadas, revela a imagem histórica das pessoas notórias para que o público possa realizar juízo de valor sem a interferência de herdeiros ou cônjuges – que ora tentam apagar as máculas de um passado não muito lisonjeiro para o retratado, ora ganharem algum dinheiro negociando, e não protegendo, eventual afronta à imagem –, ou até mesmo de marqueteiros e publicitários que buscam vender produtos em cima de imagens, principalmente comportamentais, inexistentes na vida real.
Por isso, deve ser dada interpretação conforme a Constituição aos dispositivos supramencionados do Código Civil para afastar do ordenamento jurídico o entendimento que tem sido invocado para obstar a publicação de obras biográficas não autorizadas.