1.3 Processo e releitura do princípio do contraditório
Como já alinhavado acima, Elio Fazzalari afastou a ideia de processo como relação jurídica para inaugurar a proposta do processo como procedimento em contraditório. O processo, portanto, seria uma espécie de procedimento — sequência de normas, atos e posições subjetivas, que se encadearão até a realização do ato final — que se distingue em razão do tratamento dispensado aos interessados no resultado final (sujeitos processuais), que devem participar do procedimento em posição de simétrica paridade, ou seja, em contraditório.43
Nessa ótica, a identificação do processo se dá a partir da fundamental participação dos destinatários da decisão final em um contraditório efetivamente paritário e simétrico. Induz-se, assim, uma condução dialética e democrática do processo, até mesmo para estar de acordo com o Estado Democrático de Direito, no sentido de que a Constituição precisa ser vista, nos termos do que já se pontuou ao se tratar do giro linguístico, como um projeto aberto, e permanentemente em construção, de uma sociedade pluralista, complexa, mas justa e composta por cidadãos livres e iguais.
Nas palavras de Alexandre Morais da Rosa e Márcio Ricardo Staffen, “a compreensão do processo como procedimento em contraditório representa um plus em relação à velha e impotente ideia de instrumentalidade do processo”, sendo que a “proposta de Fazzalari produz uma aproximação entre a Teoria Geral do Processo e a Constituição”.44
Além disso, essa proposta destaca-se, em especial, pela “participação das partes em simétrica paridade de armas, a qual produz um ato final democrático na medida em que todos contribuíram efetivamente no processo”,45 ou seja, conduz a uma decisão substancialmente democrática, mediante um julgamento socialmente integrador da ordem jurídica, resultante da fusão de diversos horizontes de argumentos.
Hermes Zaneti foca sua tese nessa alteração de paradigma gerada pelo Estado Democrático de Direito que, ao concretizar a constitucionalização do processo, “necessita abrir espaço para a participação dos destinatários finais nos atos de decisão que emanam do poder instituído”. Afirma que essa abertura “representa o papel principal do princípio do contraditório”,46 incluído somente como garantia constitucional na Constituição Federal de 1988. Aduz que:
Trata-se de uma inversão fundamental do conceito de processo, que passa a ser melhor entendido como “procedimento em contraditório”, abandonando as vestes formais da “relação jurídica processual” que lhe caracterizavam e distinguiam, servindo a qualquer facção ideológica, e aderindo ao compromisso democrático dos direitos fundamentais de quarta dimensão (direito fundamental de participação no procedimento).47
Com essa proposta, pela qual se busca uma “maior cooperação entre parte e juiz, ocorre uma virtual desangularização do processo”. De fato, “no processo visto como procedimento em contraditório, o juiz participa ativamente e sobre ele recaem os encargos (entendidos como deveres-poderes) do diálogo judicial”. Assim, “fica saliente o ‘inafastável caráter dialético do processo’, que se constitui no ato de três pessoas: juiz, autor e réu”.48
Conforme as concepções derivadas dos paradigmas anteriores (Estado Liberal e Estado Social) — liberalismo processual, socialização do processo e neoliberalismo processual brasileiro —, as condições e os resultados do “processo” são prefixadas “independentemente e, mesmo, antes do debate processual, inviabilizando que a decisão seja fruto de um fluxo discursivo ininterrupto ou, melhor dizendo, que a decisão possa ser construída de acordo com as especificidades do caso concreto e que novos argumentos possam ser levados a sério”.49
Porém, esse novo paradigma do Estado Democrático de Direito busca a
estruturação de algumas bases para um modelo democrático de processo, ou seja, um processualismo constitucional democrático: perspectiva interpretativa que poderá, caso aplicada, garantir que todos os cidadãos possam participar ativamente de todas as esferas jurídicas em que possuam interesse, em um dimensionamento espaço-temporal adequado.50
Nesse contexto normativo, em que a Constituição zela por um “pluralismo, não solipsista e democrático”, restam, portanto, ultrapassados os modelos de processo liberal (protagonismo das partes), social (protagonismo judicial) ou neoliberal (ou pseudossocial, com o aumento dos poderes do juiz em busca da celeridade).
Procura-se, pois, “a estruturação de um procedimento que atenda, ao mesmo tempo, ao conjunto de princípios processuais constitucionais, às exigências de efetividade normativa do ordenamento e à geração de resultados úteis, dentro de uma perspectiva procedimental de Estado democrático de direito”.51 Tal é a tese de Dierle Nunes:
Percebe-se no processo uma estrutura normativa de implementação de uma comparticipação cidadã que garantiria a tomada de consciência e de busca de direitos num espaço onde deve imperar a ampla possibilidade de influência na formação de decisões, no âmbito de uma ordem isonômica, ou seja, com a adoção de um contraditório em sentido forte.
O processo ganha, nessa perspectiva, enorme dimensão ao se transformar em espaço onde todos os temas e contribuições devam ser intersubjetivamente discutidos, de modo preventivo ou sucessivo a todos os provimentos, assegurando técnicas de fomento ao debate que não descurem o fator tempo-espacial do seu desenvolvimento.
Ocorre que a estruturação desse processo somente pode ser perfeitamente atendida a partir da perspectiva democrática do Estado, que se legitima por meio de procedimentos que devem estar de acordo com os direitos humanos e com o princípio da soberania do povo.52
Vislumbra-se, nessa perspectiva, um porto seguro dentro do caos gerador da crise do Judiciário, na medida em que, com a compreensão do verdadeiro significado da constitucionalização do processo, desmistifica-se o papel do “juiz como terceiro, com acesso privilegiado ao que seria o bem comum”53 e das partes como sujeitos alijados do discurso processual.
A partir dessas constatações, toma forma o modelo democrático de processo, como um espaço público e discursivo “de problematização e formação de todos os provimentos”.54 Nesses termos, Dierle Nunes atesta que:
Não se pode acreditar mais em uma justiça social predefinida antes do debate processual, uma vez que só as peculiaridades do caso concreto conseguem permitir, mediante o estabelecimento de um fluxo discursivo entre interessados e o órgão decisor, a formação de um provimento adequado.
Uma verdadeira democracia processual será obtida mediante a assunção da co-responsabilidade social e política de todos os envolvidos [...] segundo balizamentos técnicos e constitucionais adequados, de modo a se estruturar um procedimento que atenda às exigências tanto de legitimidade quanto de eficiência técnica.
[...]
A democratização necessita da percepção da interdependência entre todos os sujeitos processuais que garanta a existência de uma advocacia e de uma magistratura forte e com enormes responsabilidades, formação técnica e poderes para o exercício de suas funções.
[...]
Uma das chaves mestras dessa releitura do sistema processual passa pela percepção da importância da participação ou, melhor dizendo, da comparticipação que permita o exercício pleno pelo cidadão (economicamente débil ou não) de sua autonomia pública e privada no processo.55
Essa corresponsabilidade, porém, “somente será devidamente empreendida mediante uma releitura adequada dos princípios de nosso modelo constitucional de processo”, como, por exemplo, o do contraditório.56 Isso porque “o juiz democrático não pode ser omisso em relação à realidade social e deve assumir sua função institucional decisória”, a partir de um sistema de regras e princípios e “com o substrato extraído do debate endoprocessual, no qual todos os sujeitos processuais e seus argumentos são considerados e influenciam o dimensionamento decisório”.57
Realmente, a participação das partes por si só não basta, pois pode ocorrer participação sem contraditório. Por isso, é preciso que a participação “seja tomada em consideração no momento de decidir”, isto é, deve sempre estar presente a noção de estrutura dialética do procedimento.58
Não resta dúvida, pois, que a noção de processo democrático, “que tem na sua matriz substancial a ‘máxima da cooperação’” — pela qual se exige uma efetiva participação das partes na formação do ato final — está apoiada no contraditório. Além disso, é no próprio direito fundamental de participação que se encontra a base do princípio constitucional, não expresso, da colaboração.59
Esse “novo” processo torna-se possível a partir do reconhecimento do princípio do contraditório como a possibilidade das partes de influírem na formação, de forma crítica e construtiva, do conteúdo das decisões judiciais, por meio de um debate prévio de todos os participantes. Dessa forma, o mecanismo do contraditório passa a ser “instrumento democrático de assegurar a efetiva influência das partes sobre o resultado da prestação jurisdicional”.60
Nesse esteio, tem-se que o maior mérito do processo jurisdicional democrático, até mesmo como possível solução, ou amenização, da crise que sufoca o Poder Judiciário, está na expressa exigência constitucional de combinação do contraditório com a motivação das decisões judiciais, a qual deve ter como base os argumentos apontados e discutidos pelas partes. Na lição de Humberto Theodoro Júnior:
[...] a concepção democrática do processo moderno, dominada pela participação ativa de todos os seus sujeitos, não tolera que o juiz possa decidir, mesmo de ofício, sem convidar previamente as partes para manifestarem acerca da questão que pretenda dirimir e sem conceder-lhes prazo adequado para preparar suas alegações.
De modo algum se tolera decisão surpresa, decisão fora do contraditório, de sorte que o julgado sempre será fruto do debate das partes, e o juiz motivará sua decisão em cima dos argumentos extraídos das alegações dos litigantes, seja para acolhê-las, seja para rejeitá-las. É desse sistema dialético que nasce o “dever de fundamentar” as decisões imposto ao juiz pelo art. 93, IX, de nossa Constituição.61
Nesse contexto de releitura do princípio do contraditório para se alcançar um processo civil democrático, Daniel Mitidiero aponta que “a observância do simples processo legal cede às exigências do devido processo constitucional”, o qual não possui um conceito fechado por estar “em permanente construção ante as necessidades evidenciadas pela riqueza inesgotável dos casos concretos”, isto é, não pode ser acorrentado “sempre aprioristicamente, a prévias e abstratas soluções legais”.62
Ademais, o tema central na teoria do processo civil moderno deixa de ser a jurisdição para ser o “processo”, passando-se “do monólogo jurisdicional ao diálogo judiciário”. Essa virada, porém, somente se instala em um ambiente de democracia participativa, onde o processo caracteriza-se “como um espaço privilegiado de exercício direto de poder pelo povo”.63
O resultado é a potencialização do “valor participação no processo, incrementando-se as posições jurídicas das partes no processo, a fim de que esse se constitua, firmemente, como um democrático ponto de encontro de direitos fundamentais”. Não se pode olvidar, como já diversas vezes apontado, que “processo não é sinônimo de direito formal”. Processo justo “constitui antes de tudo processo substancializado em sua estrutura íntima mínima pela existência de direitos fundamentais”.64 Assim sendo, nas palavras de Daniel Mitidiero, a democracia participativa:
[...] incentiva os cidadãos a participarem diretamente no manejo de poder do estado, dando legitimidade à normatividade construída pela via hermenêutica. Não é à toa, pois, que se tem apontado o contraditório como fator legitimante das decisões judiciárias, possibilitando a participação direta das partes na construção das decisões jurisdicionais.65
No processo cooperativo o juiz deve conduzir isonomicamente o processo, no sentido de ser o contraditório respeitado em toda condução deste, o que leva a uma condução dialética do processo, proporcionando um diálogo com as partes, a partir da colheita da impressão delas “a respeito dos eventuais rumos a serem tomados no processo, possibilitando que essas dele participem, influenciando-o a respeito de suas possíveis decisões”.66
O juiz, portanto, coloca-se “como um dos participantes do processo, igualmente gravado pela necessidade de observar o contraditório ao longo de todo o procedimento”. É por força desse contraditório que se vê “obrigado ao debate, ao diálogo judiciário” e, assim, deve “dirigir o processo isonomicamente, cooperando com as partes, estando gravado por deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio para com os litigantes”.67
O contraditório gera, então, deveres ao juiz ao longo do procedimento, como: (i) dever de esclarecimento, cabendo-lhe sanar suas dúvidas junto às partes quanto a suas alegações, pedidos e posições em juízo; (ii) dever de prevenção às partes “do perigo de o êxito de seus pedidos ‘ser frustrado pelo uso inadequado do processo’”; (iii) dever de consulta às partes antes de decidir sobre assunto relevante de interesse daquelas, viabilizando que as mesmas possam influir no rumo da causa;68 e (iv) dever de auxílio às partes para superar “eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ônus ou deveres processuais”.69
Diante disso, o princípio do contraditório, a partir da releitura democrática, passa a ser considerado sinônimo de participação efetiva, cooperação e colaboração mútua. Daniel Mitidiero, resumidamente, conclui que:
O Estado Constitucional revela aqui a sua face democrática, fundando o seu direito processual civil no valor participação, traduzido normativamente no contraditório. O valor participação, a propósito, constitui a base constitucional para a colaboração no processo. A condução do processo é isonômica.
O Estado Constitucional também revela a sua juridicidade no processo, mas já aí no quando das decisões do juiz, que devem ser necessariamente justas e dimensionadas na perspectiva dos direitos fundamentais (materiais e processuais). Decisões, aliás, gestionadas em um ambiente democrático, mas impostas assimetricamente pelo estado-juiz, dada a imperatividade inerente à jurisdição. A atuação jurisdicional decisória é, por definição, assimétrica.
Da combinação dessas duas faces do Estado Constitucional e de suas manifestações no tecido processual surge o modelo cooperativo de processo, calcado na participação e no diálogo que devem pautar os vínculos entre as partes e o juiz.70