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A desigualdade inconstitucional da Lei nº 12.990/2014, que estabelece cotas raciais em concursos públicos federais

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Agenda 16/06/2014 às 13:40

A meritocracia é um princípio fundamental à boa prestação dos serviços públicos, que devem contar com os agentes mais qualificados, por conseguinte, os melhores classificados em concursos públicos, que nunca observaram a cor da pele no Brasil.

INTRODUÇÃO

Com a suposta ideia de combater, minimizar ou compensar os efeitos da escravidão passada, estão cada vez mais presentes nas políticas públicas implantadas no Brasil as chamadas ações afirmativas. Como parte dessas ações, as cotas raciais em concursos públicos já existem em pelo menos quatro estados do Brasil: Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.[1] Seguindo essa tendência, o Governo Federal propôs ao Congresso nacional o PL (Projeto de Lei) 6738/2013, que resultou na Lei 12.990/2014[2]. Esta norma reserva aos negros vinte por cento das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta.[3] Diante disso surgem dúvidas acerca da constitucionalidade da norma, pois é, no mínimo, paradoxal, já que pretende combater efeitos da discriminação com discriminação.

Portanto, além de considerar as justificativas frágeis ditas “históricas” para a aprovação do projeto, é necessário analisá-lo sob a ótica do princípio da igualdade, já que os critérios utilizados são “a raça” e não o mérito, o que afronta o referido princípio.

Outro aspecto a ser levado em consideração diz respeito à evolução da Administração Pública Brasileira ao longo do século XX. Houve um salto da era patrimonialista, na qual o cargo público era considerado uma prebenda, para a Administração Pública gerencial, na qual impera a meritocracia e o cargo público é visto como algo funcional e necessário, que deve gerar o melhor resultado possível à coletividade. Com base nisso, a institucionalização do concurso público foi um marco importantíssimo para a evolução do bem estar social nacional. Isso porque se funda no mérito e não em parentesco, ascendência, classe social ou cor da pele. Dessa forma, a Administração pode contratar, em tese, os candidatos mais qualificados para os seus cargos.

Assim, uma política para minimizar os efeitos da discriminação não seria na verdade discriminatória? Não estaria afrontando também os princípios da meritocracia e da supremacia do interesse público? Será que a coletividade sairia ganhando ao não se selecionar os candidatos mais bem classificados para ocuparem as vagas?

Ressalte-se que o presente artigo não adentrará no mérito das cotas raciais em universidades, mas apenas no caso de concursos públicos, mais especificamente, o caso da Lei 12.990/2014.

Portanto, serão feitas considerações acerca das justificativas apresentadas pelo Poder Executivo para a aprovação do projeto. Far-se-á também uma análise comparativa da Lei 12.990/2014 com os princípios constitucionais norteadores do ordenamento jurídico pátrio, como os da igualdade e o da meritocracia no serviço público. Dessa forma, este artigo resultará no atesto ou não da constitucionalidade desse projeto.

Cabe, antes de adentrar no desenvolvimento, ressaltar que o termo negro é utilizado nesta obra com o sentido que lhe é dado pelo instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Segundo este, o termo serve para denominar os indivíduos de cor preta ou parda[4].


DESENVOLVIMENTO E DEMONSTRAÇÃO DOS RESULTADOS

O PL 6738/2013 (que deu origem à Lei 12.990/2014) e sua exposição de motivos.

Com base na Lei n. 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial)[5], a exposição de motivos do PL 6738/2013 (EMI n. 195/2013 MP SEPPIR – anexada ao Projeto)[6] explicita a chamada discrepância na composição racial dos servidores da administração pública federal. Segundo o documento, as pesquisas do IBGE demonstram que a população negra representa 50,74% da população total, já no Poder Executivo Federal, a representação seria de 30% do quadro de servidores efetivos. Explicitou-se ainda que 82% dos 519.369 servidores possuem a informação de raça/cor registrada no sistema. Em seguida, há a defesa de que mesmo o concurso público sendo um método isonômico, meritocrático e transparente, sua utilização não seria suficiente para garantir tratamento isonômico entre as raças, falhando em fomentar o resgate de dívida histórica que o Brasil teria com a população negra. Em seguida, sugeriu-se a reserva de 20% das vagas para candidatos negros em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração Direta e Indireta do Poder Executivo Federal pelos próximos 10 anos.

Sem entrar ainda na análise sob o crivo do princípio da igualdade, cabe explicitar alguns pontos acerca da exposição de motivos do Projeto de Lei.

Segundo o texto, 30% dos servidores do Executivo Federal são negros, mas é proposta a cota de 20%. Ademais, a norma explicita que os negros que forem aprovados dentro das vagas para ampla concorrência não serão contabilizados na cota de 20%. Entretanto, em Nota Técnica defendendo o Projeto de Lei, o IPEA divulgou tabela contendo o percentual de negros no setor público federal, que é de 39,9%[7]. Dessa forma, podem ocorrer distorções como 39,9% dos aprovados dentro das vagas serem negros, aos quais se somariam os 20% da cota, o que resultaria num percentual de 59,9% de negros ocupando vagas (com auxílio da cota), o que representa percentual maior que a sua parcela da população (50,74%, segundo o IBGE).

Outro ponto a se destacar refere-se à chamada “dívida histórica” que o Brasil teria com a população negra, segundo a exposição de motivos do Projeto. É muito difícil, mesmo com muito esforço aceitar essa afirmação. Segundo a linha adotada pela argumentação, essa dívida refere-se ao período de escravidão no Brasil. Entretanto, a população brasileira é altamente miscigenada, muitos dos que se dizem brancos às pesquisas do IBGE são descendentes de escravos negros. É muito raro encontrar brasileiro que não tenha um ascendente negro. Por isso, no Brasil, qualquer turista europeu ou africano se destaca da multidão nas ruas, pois é raríssimo brasileiro tão branco como os europeus e tão negro como os africanos. Isso é demonstrado na evolução da pesquisa, que se baseia na declaração do indivíduo.

Segundo mostra o IBGE (Censo de 2010)[8], o número de pessoas negras (pele preta e parda), pela primeira vez, é maior que o das pessoas que se declaram brancas.[9] Evidentemente, essa evolução da população negra no Brasil tem a ver com um processo de mudança na percepção da própria cor, que evoluiu a partir de divulgação nos meios de comunicação, da evolução da legislação ao tratar do crime de racismo e da maior informação que as pessoas têm acerca da valorização da cultura negra.

Logicamente, das pessoas entrevistadas, muitas pardas ainda se declararam brancas e muitas destas são descendentes de escravos negros, e, segundo o raciocínio de dívida histórica, também são credoras do Brasil. Portanto, o pagamento da dívida, seguindo o Projeto de Lei, ocorreria de forma discriminatória, sem abranger brancos e parte dos pardos descendentes dos escravos.

Além disso, a instituição de cotas é um retrocesso nesse processo de percepção e orgulho da própria cor. Após anos de esforço, as pessoas estão “enchendo a boca” para se declararem pardas e pretas, conforme mostra evolução da pesquisa. Ao se instituir tal sistema, pessoas capazes, que entraram para o serviço público por méritos, sentir-se-ão constrangidas ao serem taxadas de cotistas (menos inteligentes que os brancos), ou seja, serão percebidos como raça inferior.

Ademais, ao se olhar para a história da humanidade, é percebido que será impossível determinar que algum ser humano não seja descendente de escravos. A escravidão foi adotada em diversas sociedades humanas, em diferentes regiões do mundo, prosperou nas populações mais primitivas até as civilizações mais sofisticadas.

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Como exemplo, o pesquisador José Roberto Sant´Ana, compara os judeus com os negros, dizendo o seguinte :

A escravidão no Brasil durou 300 anos. Tempo bem menor que os 500 anos dos judeus no Egito. Então, porque os judeus não se dizem descendentes de escravos enquanto nossa cultura repisa o estigma ao testemunhar que negros americanos são descendentes de escravos? Para quem entende o termo, isto é pura ideologia, é mentira em forma de verdade aparente.

A quem se apressar a refutar a comparação entre uma escravidão e outra, cabe ressaltar que, apesar da distância no tempo, sabemos muito mais sobre a escravidão dos judeus do que da escravidão no Brasil. Não obstante a primeira datar de 3500 anos e a nossa de 125 anos[10].

Portanto, os judeus, que são considerados como dominadores do mundo capitalista na maioria dos países onde vivem, foram escravos por mais tempo que os negros no Brasil. Além disso, tiveram 6.000.000 de pessoas de sua população dizimada pela Alemanha nazista durante a segunda guerra. Não conquistaram a posição que ocupam por cotas.

A imagem retratada nos livros didáticos das escolas brasileiras e pelos ativistas que defendem esse tipo de solução, coloca os negros como se já tivessem surgido escravos e não como povo livre. Foram escravizados durante 300 anos. Antes disso, existiram a civilização de Cartago, com Aníbal, dinastias egípcias negras e os guerreiros muçulmanos do século VII (negros conquistadores).[11] Estão denegrindo a imagem de um povo que também é capaz, inteligente e, acima de tudo, igual aos outros povos.

Outro aspecto a se destacar da chamada dívida histórica, diz respeito à dívida com os imigrantes que substituíram os negros nas lavouras, trabalhando em condições análogas a de escravos (italianos, alemães, japoneses, etc), que, pelo mesmo raciocínio, também seriam credores do país.

Pesquisa realizada pelo Datafolha, divulgada em reportagem no portal “Folha de S.Paulo”, revelou que em 2006, 65% das pessoas eram favoráveis à cota racial em faculdades.[12] Um trecho curioso da reportagem mostra a opinião do cientista político Bolívar Lamounier acerca da proximidade entre os índices de aprovação das cotas pelas pessoas brancas e negras.

A cor declarada pelo entrevistado não representa diferença estatística significativa sobre a aprovação das cotas. Entre os negros, 69% são a favor e, entre os brancos, 62%. "Isso mostra que no Brasil o problema da desigualdade não está colocado em termos de raciais e sim de gente pobre", avalia o cientista político Bolívar Lamounier.[13]

O pesquisador Hector Cury Soares, relaciona o índice da pesquisa com a explicação para a “vontade política” dos governantes em instituir as cotas raciais.

É utópico crermos que, em um país de ordem social feudal, que apresenta como símbolo da modernização urbana o condomínio fechado (que já existia na idade média, onde nobres viviam protegidos da miséria dos que não lhe serviam diretamente), o advento das cotas raciais se preste à redução da desigualdade racial ou mesmo da discriminação racial existente. Servirá sim, como todo o mimetismo, para perpetuar a elite no poder, afinal, com 65% de apoio da população brasileira, obtém-se um razoável “curral eleitoral.[14]

Isso explicaria o motivo pelo qual o Projeto foi enviado à Câmara dos Deputados em período bem próximo às eleições presidenciais, com justificativas tão rasas e incoerentes. Ressalte-se também a celeridade dada na aprovação do Projeto, que tramitou em regime de urgência. Foi enviado ao Congresso Nacional em novembro de 2013 e devolvido à Sanção presidencial já em 21/05/2014. Mesmo se tratando de um tema tão polêmico, não houve a discussão necessária, já que as eleições estão próximas.

A Lei 12.990/2014 e a evolução da Administração Pública Brasileira.

A Administração Pública brasileira evoluiu bastante a partir do século XX. Como resultado disso, encontrou-se no princípio da meritocracia a forma mais democrática, justa e eficiente de se prover cargos públicos: o concurso público. Entretanto, estabelecer cotas para esse provimento baseadas na cor da pele, desconsiderando o critério do mérito, vai de encontro a essa evolução já alcançada.

A Administração Pública brasileira passou por três formas que se sucederam no tempo: a patrimonialista (até a década de 30); a burocrática (até 1995) e a gerencial (modelo buscado desde 1995).

Para alcançar uma Administração Pública Gerencial, com a maximização dos benefícios oferecidos e com o menor custo possível para a sociedade, foi elaborado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado – Pdrae[15] em 1995. Nele, tem-se a definição dos três formatos já adotados no Brasil.

O Pdrae de 1995 define a Administração Pública Patrimonialista da seguinte forma:

No patrimonialismo, o aparelho do Estado funciona como uma extensão do poder do soberano, e os seus auxiliares, servidores, possuem status de nobreza real. Os cargos são considerados prebendas. A res publica não é diferenciada das res principis. Em consequência, a corrupção e o nepotismo são inerentes a esse tipo de administração. No momento em que o capitalismo e a democracia se tornam dominantes, o mercado e a sociedade civil passam a se distinguir do Estado. Neste novo momento histórico, a administração patrimonialista torna-se uma excrescência inaceitável.[16]

Com o fim de combater as distorções do patrimonialistmo, surgiu a Administração Burocrática, definida pelo Pdrae, conforme transcrição a seguir:

Surge na segunda metade do século XIX, na época do Estado liberal, como forma de combater a corrupção e o nepotismo patrimonialista. Constituem princípios orientadores do seu desenvolvimento a profissionalização, a ideia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade, o formalismo, em síntese, o poder racional-legal. Os controles administrativos visando evitar a corrupção e o nepotismo são sempre a priori. Parte-se de uma desconfiança prévia nos administradores públicos e nos cidadãos que a eles dirigem demandas. Por isso são sempre necessários controles rígidos dos processos, como por exemplo na admissão de pessoal, nas compras e no atendimento a demandas.

Por outro lado, o controle - a garantia do poder do Estado - transforma-se na própria razão de ser do funcionário. Em consequência, o Estado volta-se para si mesmo, perdendo a noção de sua missão básica, que é servir à sociedade. A qualidade fundamental da administração pública burocrática é a efetividade no controle dos abusos; seu defeito, a ineficiência, a auto-referência, a incapacidade de voltar-se para o serviço aos cidadãos vistos como clientes. Este defeito, entretanto, não se revelou determinante na época do surgimento da administração pública burocrática porque os serviços do Estado eram muito reduzidos. O Estado limitava-se a manter a ordem e administrar a justiça, a garantir os contratos e a propriedade.[17]

Já a forma mais evoluída de Administração Pública, que ainda está em implantação, foi definida pelo Pdrae da seguinte forma:

Emerge na segunda metade do século XX, como resposta, de um lado, à expansão das funções econômicas e sociais do Estado, e, de outro, ao desenvolvimento tecnológico e à globalização da economia mundial, uma vez que ambos deixaram à mostra os problemas associados à adoção do modelo anterior. A eficiência da administração pública - a necessidade de reduzir custos e aumentar a qualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário - torna-se então essencial. A reforma do aparelho do Estado passa a ser orientada predominantemente pelos valores da eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos e pelo desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações.[18]

Ressalte-se que a Administração Gerencial não rompe totalmente com os princípios burocráticos. Segundo o Pdrae: “Pelo contrário, a administração pública gerencial está apoiada na anterior, da qual conserva, embora flexibilizando, alguns dos seus princípios fundamentais, como a admissão em segundo rígidos critérios de mérito”.[19]

Portanto, a Administração Pública, tendo como finalidade o bem comum, deve prover seus cargos de forma a gerar melhor resultados à sociedade. Para isso, deve prover seus cargos com as pessoas mais bem qualificadas para ocupá-los.

Com os profissionais mais bem qualificados, ou que sejam admitidos segundo critérios meritocráticos, evidentemente, os resultados gerados pelo poder público são melhores, o que redunda em melhor atendimento às demandas da sociedade. Isso contribui para a melhora das condições de vida da população, resguardando a dignidade do ser humano atendido.

O concurso público, portanto, surgiu da necessidade de contratação dos melhores profissionais possíveis para o exercício do cargo público. Foi o instrumento encontrado para dar oportunidade a todo interessado que satisfaça as qualificações, de forma a selecionar o melhor, considerando-se somente o mérito. Portanto, o concurso público não considera cor da pele, orientação sexual, origem, sexo e idade.

Entretanto, se determinada pessoa for contratada para determinado cargo em detrimento de outra mais qualificada (segundo os critérios do concurso público: provas e títulos), ocorre um retrocesso na Administração Pública. O cargo público passa a ser tratado como prebenda, uma benesse do Estado à determinada pessoa, assim como o era no patrimonialismo, e não um bem à coletividade que poderia se aproveitar de um agente público melhor qualificado.

Mesmo com essa hipótese de retrocesso, há publicações favoráveis ao Projeto que deu origem à Lei 12.990/2014, contudo, com argumentações frágeis acerca da meritocracia. O IPEA, em Nota Técnica acerca do PL 6738/2013[20], diz o seguinte:

O primeiro ponto está relacionado com o requisito da meritocracia. Os concursos públicos, sem exceção, assim como acontece nas IES, estabelecem pontos de corte e percentual de aproveitamento mínimo para habilitação em seus certames. Para ser habilitado, o candidato tem que alcançar pontuação mínima nas diversas provas que compõem o processo seletivo e atender a critérios que o promovam para fases seguintes. Há vários concursos públicos que estabelecem que, além de aproveitamento mínimo, os candidatos devem estar posicionados até determinada classificação para serem admitidos na etapa seguinte. Ao final de todas essas etapas, a habilitação significa que qualquer um dos candidatos selecionados tem condição de ocupar o cargo que postula. Estariam, nesta etapa, vencidas as questões de mérito e competência. A investidura no cargo, no entanto, fica condicionada ao número de vagas disponíveis.

Se o entendimento do IPEA transcrito fosse levado em consideração, seria como se a Administração devesse buscar as competências mínimas requeridas e não tentar tirar o máximo de proveito com a contratação do melhor profissional possível para gerar o máximo de benefício à coletividade.

O professor William Douglas em seu artigo “Cotas raciais nos concursos: o exagero só atrapalha”[21] afirma o seguinte, acerca das cotas e o desvirtuamento do mérito nos concursos públicos.

Não devemos ter cotas raciais nos concursos, como se propõe. Uma coisa é ter cotas nas escolas, nas universidades, nos estágios. Aí sim, pois estamos falando de preparação para a vida e para o mercado. Essas cotas devem ser mantidas, aperfeiçoadas e, com o passar do tempo, obtido seu bom efeito, suprimidas. Mas as cotas nos concursos pervertem o sistema do mérito. Para o direito e oportunidade de estudar, é razoável dar compensações diante de um país e sistema ainda discriminadores, mas não para se alcançar os cargos públicos.[22]

Portanto, a Lei 12.990/2014 perverte o sistema de mérito e contribui de maneira significativa para um retrocesso na Administração Pública brasileira.

A Lei 12.990/2014 e o Princípio da igualdade

O princípio da igualdade, tratado como um pensamento ou uma ideia, surgiu em tempos muito antigos. Exemplo disso vê-se em texto da Bíblia que diz “Deus não faz acepção de pessoas”[23]. Entretanto, somente a partir das revoluções dos séculos XVII e XIII, esse princípio foi elevado à norma fundamental, como um princípio jurídico-filosófico.

Na Constituição Federal – CF de 1988[24], o primeiro artigo do Título “Direitos e Garantias Fundamentais” traz em seu caput o princípio da igualdade. O art. 5º da CF explicita que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Já inciso I do mesmo artigo traz a igualdade entre sexos quando diz que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. No Título I “Princípios Fundamentais”, a redução das desigualdades sociais e regionais figura, no art. 3º, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.[25]

Já ao tratar especificamente sobre os direitos sociais, o art. 7º da CF traz as seguintes proibições em seus incisos XXX e XXXI:[26]

XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;

XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;

Ressalte-se que a vedação a imposta pelo inciso XXX também é aplicável aos servidores públicos, conforme redação expressa no § 3º do art. 39 da Constituição.

É clarividente que pela interpretação literal dos dispositivos constitucionais (que traz o princípio da igualdade formal), a Lei 12.990/2014 estaria eivada de vício insanável de inconstitucionalidade. Entretanto, a literalidade do texto é insuficiente para tal análise. Cabe ainda confrontá-la com o princípio da igualdade material, existente desde os tempos de Aristóteles (tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na medida das duas desigualdades).

Para efetivação do princípio da igualdade material, há uma dificuldade muito grande, já que ele parte da ideia de que “embora sejam iguais em dignidade, os homens são profundamente desiguais (compleição física e estrutura psicológica, entre outros fatores), o que dificulta a efetivação do princípio.”[27]

Essa dificuldade encontrada, portanto, está na identificação de quem são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida de suas desigualdades.[28]

Entretanto, a Lei 12.990/2014 não permite a efetivação do princípio por meio dessa identificação, já que:

especialistas indicam não haver critério que não deixe, em todas as hipóteses, dúvidas sobre a etnia do indivíduo, considerando-se, ademais, que a raça não é determinada apenas pela cor da pele (o critério adotado pela legislação, neste caso, é a manifestação da própria pessoa, que deve declarar-se negra, o que pode levar a desvirtuamentos).[29]

Outro ponto a se destacar refere-se à pobreza do Brasil. Logicamente, “como país majoritariamente pobre, a imensa parcela de brancos também se encontra em situação aflitiva, muitos em piores condições do que as pessoas negras, circunstância que leva ao questionamento da utilização da cota de ação afirmativa para classes menos favorecidas.”[30]

Ademais, Peter Fry, citado por Kildare Gonçalves Carvalho[31], ainda traz outro aspecto, que merece atenção, sobre o tema, no que se diz respeito à antropologia. Segundo ele, a instituição de cotas resultaria em divisão de raças no Brasil, país historicamente miscigenado.

(...) para enfrentar as desigualdades sociais e raciais, as ex-colônias britânicas embarcaram em programas de ação afirmativa que são formal e logicamente consistentes com as políticas anteriores de segregação racial. Nos Estados Unidos, por exemplo, havia um largo consenso entre sobre a identidade racial ou étnica dos cidadãos. A ação afirmativa não apresentou nenhuma mudança mais radical na maneira pela qual os americanos se imaginavam como nação dividida em categorias racial ou étnicas mais ou menos estanques. Mais recentemente o Brasil embarcou nesse caminho. Aqui a ação afirmativa não veio somente para compensar os negros pelo passado de escravidão e pelo presente da discriminação. Veio desfazer a ‘mistura racial’ para produzir só duas raças. Antes uma sociedade de classes que recusava reconhecer as identidades raciais, o Brasil é agora imaginado como uma sociedade de ‘raças’ e ‘etnias’ distintas. As políticas de ação afirmativa racial terão a consequência de estimular os pertencimentos ‘raciais’ e ‘étnicos’, assim fortalecendo a crença em raças. Tenho argumentado (e tenho citado vários brasileiros com a mesma opinião) que há um sério risco de que as políticas de ação afirmativa que exigem a definição racial dos cidadãos, e que atribuem especificidade mórbida à ‘raça negra’, resvalem para a produção de uma cisão racial cada vez mais palpável.[32]

Há ainda autores que definem requisitos necessários, com embasamento constitucional, para que se faça a discriminação por meio de lei. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Kildare Gonçalves Carvalho, para que a discriminação legal se conforme com a isonomia, são necessários quatro elementos:[33]

“a) que a desequiparação não atinja, de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados;

c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;

d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulta em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.”

Portanto, segundo a citação, para se estabelecer uma desigualdade legal esta deve estar “fundada em razão valiosa”. Há que se buscar algo inserido no bojo constitucional, no entanto com coerência e adequação lógica.

Entretanto, não é o que se observa na instituição de cotas pela Lei 12.990/2014, já que nos lugares onde foram adotadas, não surtiram o efeito prometido. Apesar das diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil, destacadas em citação de Peter Fry, nem nos Estados Unidos, onde há uma separação clara entre brancos e negros, o sistema de não cotas logrou êxito. Thomas Sowell, citado por Ali Kamel, publicou um livro baseado em estudo empírico, que mostra o efeito das ações afirmativas e da adoção de cotas na Índia, Malásia, Sri Lanka, Nigéria, Estados Unidos e outros.[34] É provado, por meio da publicação, que:

Igualmente essenciais são o preparo intelectual e o nível econômico. Quem sabe mais e é mais rico, mesmo pertencendo a uma minoria discriminada, terá mais chances do que aqueles que são menos preparados e mais pobres.[35]

Na mesma publicação, é relatada a prova de Thomas Sowell de que as cotas não são necessárias, mas prejudiciais.[36]

Nos EUA, os chineses e os japoneses que lá chegaram no início do século passado eram miseráveis. Por esforço próprio e sem cotas, esses dois grupos se desenvolveram, educaram-se e, ao longo dos anos, proporcionalmente, tomaram mais lugares dos brancos americanos em universidades de prestígio e em bons postos de trabalho do que os negros com cotas. Apesar disso, contra eles não há o ressentimento que há contra os negros, porque a percepção é que os asiáticos alcançaram isso por mérito, e os negros, não. A percepção, no entanto, é falsa e injusta. Porque os negros americanos avançaram mais, muito mais, antes da adoção das cotas, do que depois dela.

Em 1940, os jovens negros americanos entre 25 e 29 anos tinham, em média, 4 anos de estudo a menos do que os jovens brancos. Em 20 anos, a diferença caiu para 2 anos. E, em 1970, a diferença era de menos de um ano, 12,1 contra 12,7.

Em 1940, 87% dos negros estavam abaixo da linha da pobreza. Em 1960, este número caiu dramaticamente para 47%, uma queda de 40 pontos. Todos esses avanços foram conseguidos sem a ajuda de ninguém.

A Lei dos Direitos Civis, que garantiu a igualdade das raças, é de 1964 e as cotas só surgiram depois de 1970. Nos anos 60, o número de negros abaixo da linha da pobreza caiu mais 17 pontos, ficando em 30%. Depois da adoção das cotas, porém, em toda a década de 70, esse número caiu apenas um ponto, ficando em 29%. Negros que conseguiram sozinhos esse estrondoso êxito são vistos hoje pela maior parte dos brancos como em débito porque teriam alcançado tal feito, não por mérito, mas devido a cotas.

(...)

Os negros brasileiros não precisam de favor. Precisam apenas de ter acesso a um ensino básico de qualidade, que lhes permita disputar de igual para igual com gente de toda cor.

Portanto, a Lei 12.990/2014 é incongruente com o princípio da igualdade, não cumpre com os requisitos citados pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello para a discriminação legal e agrava a discriminação racial no país, ao separar a população altamente miscigenada em “raças”, algo que deve ser extirpado por todos, pois só existe uma raça, a humana.

Sobre o autor
Jorge Fernandes dos Santos Barbosa

Aluno do 9º período do curso de Direito e formado em Gestão Pública. Atua no Serviço Público Federal desde 2004.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Jorge Fernandes Santos. A desigualdade inconstitucional da Lei nº 12.990/2014, que estabelece cotas raciais em concursos públicos federais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4002, 16 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29472. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Orientador: Prof. Dr. Fábio Lúcio Moreira de Lima.

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