Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Direito de procriar:

a reprodução assistida em face do princípio da dignidade humana

Exibindo página 2 de 7
Agenda 21/06/2014 às 15:45

4. A BIOÉTICA COMO FORMA DE ORIENTAÇÃO

Uma das grandes preocupações no campo da ética biomédica é a hipótese de melhorias para a raça humana no que se refere aos seus aspectos físicos. Trata-se da eugenia e “qualidade de vida”.

Francis Galton é considerado o pai da pesquisa moderna para melhorar a raça humana através da aplicação das leis de hereditariedade. Foi ele quem cunhou o termo “eugênico” para designar os “bem-nascidos”. O movimento eugênico espalhou-se rapidamente da Inglaterra para a Europa continental, Estados Unidos e Japão.

Quando o biólogo Alemão Augusto Weismann provou que características adquiridas não são transmitidas por hereditariedade, a conclusão óbvia dos eugenistas foi a de que reformas sociais não podem melhorar as condições da raça humana; esta pode ser melhorada unicamente através da procriação seletiva, isto é, impedindo que indivíduos inferiores procriem e tenham filhos.

Observa Vargas que, em decorrência dos avanços na genética, os eugenistas contemporâneos se utilizam do aconselhamento genético para atingir os objetivos do momento eugênico. Lembra ainda o citado autor que o exame genético se refere a vários procedimentos pelos quais as anormalidades herdadas podem ser descobertas. Os métodos podem ser aplicados nos vários estágios da vida da pessoa. Grandes discussões decorrem daí, quando se menciona o exame genético em massa e o problema da estigmatização que possa acionar.

A ciência, conforme muito bem analisa Fátima de Oliveira, é socialmente construída. Desse modo, todas as faces de gênero e do racismo estão nela fortemente representadas. Argumenta, ainda, que apesar dos limites e a impotência da reflexão e ação da Bioética nas condições das sociedades atuais, essa reflexão e ação são necessárias para criarmos alternativas. “As biotecnologias contemporâneas, inegavelmente, evidenciaram que as regras de controle social e as relações atuais entre ciência, governo e sociedade estão superadas. É emergencial que criemos novas regras de convivência.”[19]

Daí a importância da bioética, no sentido de suscitar um debate necessário e franco, para que determinadas ações sejam coibidas, no sentido de se preservar a dignidade da pessoa humana. Sob o argumento de que o bem da sociedade deve estar em primeiro plano, pessoas são violadas em sua integridade, como os embriões que são utilizados em laboratório para pesquisas científicas.

A fertilização in vitro e a transferência de embriões; experimentação com animais; fertilização interespécies e as formas anômalas de procriação (fusão celular, partenogênese e clonagem) são métodos que precisam ser regulamentados pelo Direito.  É a partir dessas técnicas procriativas que o homem vem demonstrando ser capaz de substituir a natureza na concepção da vida, ou pelo menos vem tentando imitá-la.

Gena Corea, Diretora associada do Institute for Women and Technology, Massachusetts, Estados Unidos, chama a atenção para o fato de que, à medida que as tecnologias conceptivas se expandem, sua concepção industrial também cresce, e alerta:

“Os óvulos tornam-se matéria-prima e são tirados do ovário de uma mulher para serem implantados no útero de outra. Essas mulheres serão consideradas procriadoras, como animais de procriação, vendidas como tais. Contra tal método, a citada autora, ao dizer que esta seja uma nova forma de prostituição reprodutiva, da qual muitos médicos são os estimuladores.”[20]

As novas tecnologias são desenvolvidas a partir de grandes investimentos, que, por sua vez, esperam por retornos, a fim de se realizarem os lucros dos vultosos investimentos empregados. Assim, necessariamente há que se fazer a ligação entre ciência, indústria e mercado, com as normas éticas de conduta humana, fundamentadas na dignidade do homem.

É preciso entender que as condutas, que porventura venham ocasionar algum dano, devem ser reprovadas tanto no nível ético como no contexto jurídico.

No que se refere à responsabilidade do cientista, podemos até mesmo pensar numa responsabilidade sem culpa, na hipótese de o dano ter sido ocasionado sem a intenção dolosa, ou quando não caracterizada a culpa por negligência, imperícia ou imprudência. Põe-se em perspectiva a responsabilidade ética.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em decorrência do desenvolvimento biotecnológico, novas perspectivas jurídicas se colocam como necessárias ao tratamento dessas questões tão novas no contexto humano. Surgem novos direitos que devem ser regulamentados. É o próprio homem, como espécie, que está em jogo e é preciso haver disciplina jurídica para evitar que danos possam deturpar a espécie humana.

A pessoa é o ser humano individualizado, concebido como tendo existência própria, caracterizado essencialmente por sua unicidade – individualidade e racionalidade. A qualidade de pessoa não é compatível com a de animal ou coisa. A pessoa é entidade racional, orgânica, psíquica e simbólica. No plano jurídico, a pessoa passa a ser compreendida como sujeito de direito, capaz de ser titular de direitos e obrigações. A todo ser humano vivo se reconhece a personalidade jurídica.

Sujeito de direito é o ser a quem a ordem jurídica assegura o poder de agir, contido no Direito. Quando a ordem jurídica reconhece personalidade jurídica às pessoas, tem em vista a pessoa humana ou os interesses humanos. Sujeito de direito é o homem e, em razão dele, e por causa dele, o Direito se constitui, ensina Beviláqua.[21]

No quadro do paradigma bioético, a pessoa não é vista conforme essa perspectiva jurídica. A pessoa humana é concebida na qualidade de um “eu” único, autônomo, dotado de dignidade. Os princípios bioéticos procuram resguardar valores que protejam o sentido de pessoa humana dotada de dignidade.

Com o domínio da natureza, incrementado pelo progresso científico, valores como identidade, unicidade e autonomia – entendidos como valores inestimáveis da pessoa humana – são colocados em risco. Os princípios bioéticos estabelecem as bases sobre as quais as ciências da vida devem se pautar. Nesse momento é que percebemos a importância e a necessidade do Direito. É a partir de um raciocínio jurídico que se estabelecem as fronteiras ou os limites que determinam o início e o fim da personalidade jurídica. A bioética pode informar ao Direito, por exemplo, se a vida pré-natal ou se a vida degradada ou terminal deve ser protegida contra a livre disposição de alguém.

Conforme salienta Oliveira Baracho, com indicações em torno das questões da vida, da morte e da consciência, “a bioética está em permanente evolução, devido ao constante progresso da ciência”[22]. Nesse sentido, os princípios que garantem a liberdade, a igualdade e o respeito à dignidade humana, conforme muitas constituições, devem ser judicialmente tutelados. Baracho afirma com veemência que “precisamos de um novo discurso regulador dos princípios fundamentais”, tendo em vista que a Bioética está criando novidades no campo da ética e do Direito, que possibilitarão novas atitudes reflexivas para a sociedade contemporânea.

O Biodireito, um novo ramo do Direito que vem despontando, refere-se aos fatos, eventos que surgem a partir das pesquisas das ciências da vida; que nascem a partir do “aumento do poder do homem sobre o próprio homem, que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens, ou criar novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permitir novos remédios para as suas indigências”.[23]

O Biodireito é um novo ramo do Direito que trata da teoria, dos princípios, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana, em face dos avanços da biologia, da biotecnologia e da medicina. O Biodireito concede tratamento ao homem não como ser individual, mas, acima de tudo, como espécie a ser preservada.

O Biodireito surge na esteira dos direitos fundamentais e, nesse sentido, inseparável deles. O Biodireito contém os direitos morais relacionados à vida, à dignidade e à privacidade dos indivíduos, representando a passagem do discurso ético para a ordem jurídica, não podendo, no entanto, representar “uma simples formalização jurídica de princípios estabelecidos por um grupo de sábios, ou mesmo proclamado por um legislador religioso ou moral. O Biodireito pressupõe a elaboração de uma categoria intermediária, que se materializa nos direitos humanos, assegurando os seus fundamentos racionais e legitimadores.”[24]

A fecundação assistida e a doação de óvulos e espermatozóides também reclamam grandes e profundas reflexões, que tangenciam os princípios da isonomia, da privacidade e da dignidade humana. Entende-se por fecundação a palavra em sua mais radical e despojada significação: dar origem a uma nova vida em que esteja aprioristicamente assegurado ao nascituro, por exemplo, o direito a uma convivência familiar e social indene de desconforto ou desajuste.

Os métodos de reprodução assistida são aceitáveis apenas e tão-somente para fins que se estabeleçam como razoáveis, ligados ao princípio da preservação da vida e de uma vida saudável. Uma manipulação que  se estabeleça como utilização sábia da técnica.

Vale ressaltar que nos processos éticos não há a figura do acusador e do defensor como ocorre no contexto da jurisdição estatal. Nas operações éticas deve-se buscar a preservação da dignidade da pessoa humana e o respeito ao valor maior, que é a vida. Deve-se atentar para a autonomia da vontade do usuário das técnicas de reprodução, que deve, necessariamente, ser informado sobre as probabilidades de toda a terapêutica a ser adotada, destacando-se os riscos e benefícios de cada uma.

Ética constitui-se, antes de tudo, em honestidade. Todo e qualquer procedimento deve ter o consentimento informado. Toda decisão a ser tomada, em que não haja a possibilidade de o paciente se manifestar a respeito, deve ser orientada pelos princípios éticos, pela legislação e princípios constitucionais.

Oliveira Baracho atenta para o fato de que a “experimentação sobre o homem situa-se na confluência de vários direitos, inclusive no que se refere à integridade física, protegida pelo Direito Penal. Alerta, ainda, o constitucionalista mineiro que a inviolabilidade da pessoa humana se vê ameaçada por manipulações excepcionais, com a utilização de técnicas gerais para o desenvolvimento da pesquisa científica, muitas vezes decorrentes das lógicas do desejo e do lucro.  Em face desse perigo, torna-se necessária a produção de normas de emergência, assentadas em regras bioéticas e deontológicas. Nesse sentido, bioética e biodireito estabelecem-se no terreno da cidadania, que hoje engloba em seu conceito, os princípios garantidores dos direitos humanos.”[25]

As incertezas dos casos inéditos devem ser enfrentadas pelo Poder Judiciário, a partir de uma interpretação bioética, pondo sempre em perspectiva a prudência diante dos princípios basilares em torno da dignidade, privacidade e direito à vida. Deve-se ter em mente a necessidade da proteção integral da pessoa.

A nova biotecnologia representa um desafio para o Direito, tendo este por tarefa primordial não somente assegurar o direito à vida e à dignidade humana, mas também a de garantir a integridade das gerações futuras.

Como bem asseverou Sloterdijk, “são temas arriscados, que imprimem um agudo sentimento do perigo representado por uma antropotécnica política, cuja finalidade pode ser a neocriação sistemática de exemplares humanos mais próximos dos protótipos ideais”[26].

O Biodireito deve estabelecer mecanismos para que se evite uma predeterminação genética, sob pena de cairmos nos abismos de uma sociedade de inumanos.

É preciso coragem dos nossos legisladores para enfrentar esses desafios que se impõem ao nosso tempo. A Alemanha, em 13 de dezembro de 1990, adotou a Lei de Proteção ao Embrião, que regulamenta a procriação assistida. Trata-se de uma lei de grande precisão técnica, tendo por principais destinatários os médicos e os biólogos. Conforme a citada lei, desde o começo da vida humana, a manipulação desta deve encontrar limites claros.

Todos esses aspectos legais impedem, por sua vez, a manipulação das gerações futuras, impondo respeito à alteridade, sem contar que algum erro cometido em tais manipulações poderia provocar sérios danos, que hereditariamente poderiam vir a ser transmitidos às gerações vindouras.

A eticidade do jurídico deve inclinar-se a estabelecer a conciliação de valores que possam admitir o Direito como algo além de um fenômeno ligado ao poder social estabelecido. 

Perelman adverte:

 “Ao integrar no direito positivo regras e valores diferentes daqueles reconhecidos pela lei, o juiz procura conciliar a lei com a justiça, ou seja, aplicar a lei de forma que suas decisões possam ser socialmente aceitáveis. É seguindo o mesmo espírito que após a Segunda Guerra várias constituições européias introduziram em seu texto artigos que protegessem os valores fundamentais de uma sociedade democrática  e, de modo mais especial, dos direitos humanos.”[27]

Ressalte-se, também, que os textos legais não contêm todo o Direito. Cabe aos julgadores realizar as escolhas nessa imbricada relação. Deve ser uma escolha com base em princípios; uma escolha ética. No que se refere ao plano dessa pesquisa, entendemos que mesmo que a legislação ainda não se tenha manifestado sobre algum tema da Bioética em específico, os estudos elaborados pelos comitês de Bioética podem servir de base para os operadores do Direito para a fundamentação de suas petições e decisões. No entanto, toda e qualquer decisão deve-se alinhar ao conteúdo dos direitos humanos e fundamentais, entendidos como direitos morais, que, por essa qualidade, devem merecer a proteção do Estado.

A vida e a dignidade encontram-se acima das leis. Uma decisão ética é toda aquela que busca preservá-las. O Biodireito nasce da necessidade de preservação do homem diante dos perigos de suas próprias conquistas, proporcionadas pelo conhecimento racional, manifestado na tecnologia. O Biodireito enquadra-se no contexto paradigmático de uma cultura que se constrói  a partir da técnica, da previsibilidade. O Biodireito eleva-se como construção teórica que expressa a consciência moral de um novo homem, que vem forjando e delineando uma nova civilização. Os conflitos que daí advirão não são simples conflitos, são conflitos pertinentes a uma nova sociedade que se vem configurando. No entanto, a despeito de todas as improbabilidades, o Biodireito coloca-se como o intermediador desses novos conflitos, no sentido de se possibilitar a passagem pacífica para esse novo tempo, no qual nos encontramos. Conforme as palavras da professora Maria Helena Diniz:

 “tanto a Bioética como o Biodireito deverão contribuir para o desenvolvimento das ciências da vida, garantindo o respeito à dignidade da pessoa humana na transformação das condições da existência, constituindo o núcleo de um projeto de formação para a ética das ciências e o componente essencial da cultura geral do século XXI."[28]

Sobre o autor
Emanuel Adilson Gomes Marques

Pós graduado em Direito Civil e Processo Civil Pós graduado em Direito Público Defensor Público Federal Membro titular da Câmara de Coordenação e Revisão Previdenciária da Defensoria Pública da União

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Emanuel Adilson Gomes. Direito de procriar:: a reprodução assistida em face do princípio da dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4007, 21 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29622. Acesso em: 3 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!