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Direito de procriar:

a reprodução assistida em face do princípio da dignidade humana

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21/06/2014 às 15:45
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A problemática surge quando a reprodução assistida transforma-se em uma verdadeira mercantilização. Em 1999, ocorreu o 1º leilão via internet de óvulos modelos para pais que gostariam de ter filhos bonitos.

“A vida tem uma história muito comprida, mas cada indivíduo tem um começo muito preciso: o momento da sua concepção”.(Jérôme Lejeune)

A evolução da ciência tem proporcionado inúmeros benefícios sociais em um ritmo muito rápido. Os desejos, as necessidades humanas fazem com que o homem intensifique a exploração tecnológica para o suprimento dos anseios pessoais.

Nos anos 70, uma revolução biológica veio solucionar um dos maiores problemas da humanidade, qual seja, a infertilidade. O avanço da ciência possibilitava a procriação sem relação sexual, desvinculando a descendência da cópula.

O marco teórico de tal revolução foi o caso Louise Brown ocorrido especificamente em 1978. O nascimento do primeiro bebê de proveta revolucionou o meio científico, com repercussões mundiais.  Esta gestação foi obtida após mais de dez anos de experimentos em embriões, realizados pela equipe dos Drs. Edwards e Steptoe. A menina nasceu em junho de 1978, em Oldham/Inglaterra. A publicação do caso foi feita em agosto de 1978, ou seja, apenas dois meses após o seu nascimento. Uma importante questão levantada foi a da confidencialidade e da privacidade da família e, em especial, da criança. Todos os anos a imprensa noticia algum fato a respeito da sua vida. Quando completou dezoito anos, em 1996, ela era professora de uma creche em Bristol/Inglaterra. 

“O casal Brown não poderia ter filhos. As trompas da Senhora Brown eram obstruídas, uma causa muito freqüente de infertilidade. Através de um laparoscópio, o Dr. Steptoe retirou cirurgicamente os óvulos não fertilizados dos ovários da Senhora Brown. Os óvulos foram fertilizados com o esperma do Senhor Brown e passados para uma proveta, com o ambiente artificial cuidadosamente controlado. Cerca de seis dias depois, os óvulos fertilizados tornaram-se uma massa de células que iriam produzir o embrião. A Senhora Brown fez tratamento com hormônios, preparando o útero para receber o óvulo. Dr. Steptoe implantou o embrião no útero, onde ele se desenvolveu normalmente até a hora do nascimento.”[1]

O homem conquista um novo espaço, que viria a suprir-lhe um desejo antigo. O homem necessita extrapolar as suas necessidades físicas. Outros elementos são importantes, tais como a auto-estima, o amor, a sexualidade, o desejo de manter contato íntimo e afetivo, a expressão artística e emocional, a reprodução e o desejo de perpetuar a espécie. São desejos que devem ser implementados com fundamento na dignidade da pessoa humana. Dentro dessas inquietudes, encontram-se a sexualidade e a reprodução como direitos humanos fundamentais e, para serem inseridos na vida de muitos, os métodos artificiais são utilizados. A decisão de gerar um filho muitas vezes esbarra em barreiras naturais. Em casais estéreis, a concepção de uma criança depende de fatores alheios à vontade de procriar. Por isso, a medicina engendrou várias técnicas para unir artificialmente os gametas masculino e feminino, dando origem a um novo ser, propiciando a felicidade dos seres humanos.

Indaga-se o motivo de se recorrer a técnicas de reprodução assistida, ao passo que podemos utilizar o instituto da adoção.  A opção pela reprodução assistida é muito mais aprazível do que a adoção. Ter algo produzido com material genético próprio é mais real, torna mais perceptível o vínculo de filiação.

A problemática surge quando a reprodução assistida transforma-se em uma verdadeira mercantilização. Em 1999, ocorreu o 1º leilão via internet de óvulos modelos para pais que gostariam de ter filhos bonitos. Tal anúncio chocou a muitos, fazendo-os questionar sobre o destino que será dado às técnicas de reprodução assistida.

A busca pela beleza dos filhos, a idolatria do ego humano transforma o ser humano, pessoa dotada de dignidade, em um ser massificado pelo consumo.

O organizador do Leilão tentou justificá-lo com o seguinte argumento publicado no Jornal o Globo:

“Ron Harris tentou justificar o leilão dizendo que ele é o desdobramento natural do desejo dos seres humanos de terem filhos mais bonitos e inteligentes. Para ele a beleza é uma vantagem evolutiva. Se você pode ter um filho bonito, que terá mais vantagens numa sociedade como a americana, obcecada pela beleza, por que não tentar? Há mulheres que não cobram por seus óvulos, porém nem todas oferecem vantagens como a beleza. As pessoas bonitas conseguem mais empregos e são mais valorizadas. Você também pode querer ter um filho de acordo com o padrão de beleza que você considere ideal, mesmo que seja diferente do seu. Já fomos procurados por um casal asiático interessado nos óvulos de uma loura com ascendência escandinava.” [2]

Assiste-se, portanto, a uma verdadeira mercantilização do ser humano que se torna um ser comercial que privilegia o culto à beleza, esquecendo-se das reais virtudes do ser humano. 

Além disso, outros problemas de ordem jurídica se instauram na seara da reprodução assistida, principalmente no que tange à fecundação artificial heteróloga, pois vários óvulos são fecundados através de uma superovulação, ocasionando a produção in vitro de mais de um embrião. O que fazer com os embriões não inseridos na receptora? Seria possível o congelamento de tais embriões? E se, posteriormente, o marido e a esposa desejarem fecundá-los? E o Direito sucessório, post mortem? Teria o embrião direito à herança que já se tenha partilhado? Qual o período para a eliminação desses embriões?

Outra problemática refere-se à escolha do doador. Seria possível escolher o doador com as características fenotípicas que a pessoa deseja? Não estaríamos instaurando uma espécie de eugenia na humanidade?

E a maternidade substituta? Será que o ordenamento jurídico brasileiro admite essa forma de reprodução? 

Os métodos de reprodução assistida podem ser aplicados nos casais homossexuais?

Qual a legislação que regulamenta todas essas questões? O que o Novo Código Civil diz a respeito?

De acordo com a professora Maria de Fátima Freire de Sá:

“ A defesa e a proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos de personalidade alcançaram grande importância nos últimos tempos em razão dos avanços científicos e tecnológicos experimentados pela humanidade que, se de um lado, trazem benefícios vários, de outro, potencializam riscos e danos a que podem estar sujeitos os indivíduos. Várias discussões permeiam o tema, tais como: podemos pensar a vida como o simples respirar, como a garantia da “batida de um coração? Quais os limites à redesignação do estado sexual? O embrião é pessoa? Criaremos o bebê a la carte?”[3]

O presente trabalho tentará esclarecer essas indagações, ou, pelo menos, instaurar um questionamento ético sobre a matéria, tendo como epicentro a dignidade da pessoa humana.     


1. ESCORÇO HISTÓRICO

Desde a Antigüidade Clássica Grega e Romana, já eram assegurados aos nascituros os direitos sucessórios, sendo os primeiros estudos acerca da embriologia feitos por Hipócrates e Aristóteles.

Na mitologia grega, vê-se o desejo dos povos em  realizar a reprodução assistida, demonstrando no capítulo do nascimento de Perseu, filho de Dânae e neto de Acrísio. Sua mãe estava enclausurada para evitar a concepção de uma criança que viria a matar o avô, usurpando-lhe o trono. A clausura para nada serviu, pois Zeus transformou seu próprio sêmen em chuva de ouro, inseminando a moça durante o sono.  Dois milênios à frente, a biotecnologia iria transformar tal mito em realidade, servindo-se do engenhoso expediente para viabilizar o exercício da paternidade àqueles a quem a natureza privou da função reprodutora.

“De acordo com o estudioso alexandrino Apolodoro, Perseu, o lendário fundador de Micenas, nunca teria nascido se seu avô tivesse conseguido seu intento. Acrísio, rei de Argos, era pai de uma linda filha, Dânae, mas estava desapontado por não ter um filho. Quando consultou o oráculo sobre a ausência de um herdeiro homem, recebeu a informação que não geraria um filho, mas com o passar do tempo teria um neto, cujo destino era matar o avô. Acrísio tomou medidas extremas para fugir deste destino. Trancou Dânae no topo de uma torre de bronze, e lá permaneceu numa total reclusão até o dia em que foi visitada por Zeus na forma de uma chuva de ouro; assim deu à luz a Perseu. Acrísio ficou furioso, mas ainda achava que seu destino poderia ser evitado. Fez seu carpinteiro construir uma grande arca, dentro da qual Dânae foi forçada a entrar com seu bebê, sendo levados para o mar. Entretanto, conseguiram sobreviver às ondas, e após uma cansativa jornada a arca foi jogada nas praias de Sérifo, uma das ilhas das Ciclades. Dânae e Perseu foram encontrados e cuidados por um honesto pescador, Dictis, irmão do menos escrupuloso rei de Sérifo, Polidectes.”[4]

Na Roma antiga, o reconhecimento do filho era feito pelo pai quando possuía a criança em seus braços que deveria reconhecer, neste momento, o recém-nascido, atribuindo-lhe o status libertatis, o status civitatis e o status familiae. O pai poderia, ainda, matar o filho, expô-lo à venda ou abandoná-lo. Percebe-se que a civilização romana preocupava-se com a filiação.

A primeira reprodução assistida ocorreu no século XIX, pelo método de inseminação artificial, e foi feita pelo americano Willia Pancoast, que obteve êxito.

No século XX, mais precisamente em 20 de julho de 1978, na Inglaterra, ocorre o nascimento do primeiro bebê de proveta, inseminado pelo método da fecundação assistida, também denominada fecundação in vitro. O nasciomento de Louise Brown constitui-se no marco histórico do tema.

No Brasil, em 07 de outubro 1984, nasce Ana Paula Caldeira, da cidade de São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba, fruto das técnicas de reprodução assistida desenvolvidas no Brasil.

Ticho Brahe Fernandes, em seu livro “A reprodução assistida em face da bioética e do Biodireito”, analisa muito bem o fenômeno histórico:

“Saindo da área não-científica, tem-se como marco inicial das técnicas de reprodução assistida as civilizações babilônicas e árabes que polinizavam palmeiras com o objetivo de produzir mais e melhores furtos.  Refere-se, ainda, que já no século XIV se realizava a inseminação artificial em peixes, e, no século XV, no bicho da seda. Afirma-se que em 1332 se teria obtido a fecundação de uma égua com interferência humana, sendo relatado que a técnica era utilizada como artifício de guerra, seja pela inseminação de éguas dos inimigos com sêmen de cavalos velhos ou doentes, seja por furto do sêmen dos bons cavalos dos adversários. (...) No século XVIII foram produzidas algumas experiências nesta área, sendo que em 1767 o alemão Ludwig Jacobi trabalhava com a reprodução de peixes, enquanto o abade italiano Lazzaro Spallanzani, em 1777, logrou obter a fecundação de uma cadela por meio da inseminação artificial, nascendo, daí, três crias. Já no século XIX a inseminação artificial foi aplicada em outros mamíferos como éguas, vacas e ovelhas, destacando-se nas pesquisas com mamíferos o russo Elie Ivanoff. Especificamente no ser humano, as primeiras notícias históricas datam do século XV, quando a técnica teria sido utilizada por D. Joana de Portugal, casado com Henrique IV di Castelo, “o Impotente”. Posteriormente, em 1785, Thouret, decano da Faculdade de Medicina de Paris, fecundou sua mulher estéril, aplicando-lhe uma injeção intravaginal de esperma. Em 1790, o inglês John Hunter obteve a gravidez de uma mulher aplicando-lhe na vagina o esperma do marido hipospádico. O francês Girauld, em 1838, relatou o sucesso em oito casos experimentados, um dos quais com gravidez gemelar.  Jaime Marion Sims, no ano de 1866, obteve sucesso em experimento com a introdução do líquido seminal no canal servical de mulher o que foi repetido em 1871 por Gigon d´Angulême. (...) Durante a II Guerra Mundial milhares de crianças norte-americanas foram geradas com o sêmen de soldados que lutavam no pacífico, tendo o mesmo ocorrido com soldados ingleses durante a Guerra da Coréia. Nos Estados Unidos a Suprema Corte de Nova Iorque declarou a legitimidade dessas crianças, porém, na Inglaterra a Câmara dos Comuns, proibiu a inscrição, como legítimas, de crianças nascidas em razão da doação de sêmen de doador anônimo.  (...)  em 25 de julho de 1978 nasceu na Inglaterra Louise Brown, o primeiro ser humano fruto de uma reprodução in vitro, foi extremamente importante o desenvolvimento de crioconservação, primeiro de esperma, depois de embriões e, recentemente, de óvulos, sendo que a primeira gestação com um embrião congelado foi obtida na Austrália, no ano de 1983, por equipe dirigida pelo cirurgião Wood.”[5]

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2. OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Inicialmente, é preciso diferenciar determinados conceitos que muitos acabam  confundindo, dentre eles direitos humanos e direitos da personalidade.

Devemos nos referir aos direitos humanos quando desejamos proteger os seres humanos contra as arbitrariedades estatais; em contrapartida, quando dizemos direitos da personalidade, estamos protegendo-os frente aos atentados privados entre eles próprios.

Entretanto, tal dicotomia entre Direito Público (direitos humanos) e Direito Privado (direitos da personalidade) vem sendo superada.  Pietro Perlingieri nos ensina que “a dicotomia entre Direito Civil/Direito Político deve ser superada, porque ambos são conexos e imprescindíveis à realização da pessoa”[6].

A personalidade adquire um valor unitário. Os regimes nazistas e totalitários do pós-guerra sempre ignoraram a vida humana e a personalidade, sendo necessário proteger a vida  sob todos os aspectos.

A dicotomia entre Direito Público e Privado no âmbito dos direitos da personalidade deve ser superada. O Estado não comporta tal tipo de divisão. Temos que analisar os direitos da personalidade como inatos a todas as pessoas. 

A personalidade é a característica essencial dos sujeitos de direito. É o atributo jurídico que dá a um ser status de pessoa.[7] A personalidade é, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessante e mutável exigência de tutela.[8]

No caso dos embriões urge salientar que o embrião de laboratório não é pessoa natural, visto que não nasceu. Não é nascituro, visto que não se encontra em desenvolvimento em ambiente favorável, nem tampouco prole eventual, visto que já se encontra concebido.

Jussara Maria Leal da Silva realiza o seguinte questionamento:

“será que poderemos comparar o embrião a um órgão do corpo humano e equipará-lo a um coração ou a um rim, o que se pode transplantar, ceder, conservar ou experimentar? Poder-se-á qualificar o embrião como um órgão, logo, como objeto de propriedade da mulher que transporte ou, pelo contrário, uma substância de origem humana sujetito de direitos ou de proteção legal? Ou, corroborando a posição do Comitê Nacional de Ética francês, como uma potencial pessoa humana?” [9]

O embrião deve ser comparado à pessoa, pelo menos em potencial, devendo ser respeitado e lhe atribuídos todos os direitos inerentes à personalidade. Completa a Dra. Jussara Maria Leal de Meirelles:

“Seja pela extrema proximidade individual à pessoa humana que já existe e que se encontra em fase inicial de seu desenvolvimento, seja pela necessidade de se respeitar igualmente os embriões humanos e as pessoas já nascidas, posto que essas também já foram embriões e, portanto, a eles se assemelham, fato é que o embrião tem direito de ser tratado como pessoa, e, desse modo, merece respeito à dignidade.”[10]

Na esteira de Perlingieri,

“A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessante mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações.”[11]

Os direitos da personalidade devem ser tratados de forma ampla e irrestrita no que tange as técnicas capazes de reprodução assistida. Perlingieri, assim doutrina:

“a esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do “ter”. Na categoria do 'ser' não existe a dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser – a titularidade é institucional, orgânica. Onde o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da relação.”[12]


3. A DIGNIDADE DO SER HUMANO

O conceito de dignidade fornecido pelos dicionários esclarece-nos que dignidade significa “qualidade moral que infunde respeito; consciência do próprio valor, honra, autoridade, nobreza”.[13]

Tal conceito é de extrema importância para todos os seres humanos. A Constituição Federal de 1988 elencou como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana.

De Acordo com Maria de Fátima Freie Sá:

“Portanto, especificamente quanto à proteção da pessoa humana, a Constituição Federal fixou “cláusula geral de tutela”, prevista no art. 1º, II e III; caput do art. 5º e seu parágrafo 2º. Também o art. 4º, II, da Constituição Federal privilegia o ser humano em sua dignidade, ao afirmar que suas relações internacionais têm como princípio a prevalência dos direitos humanos.”[14]

Para o professor Gustavo Tepedino:

“Pretendeu, portanto o constituinte, com a fixação da cláusula geral (...) e mediante o estabelecimento de princípios fundamentais introdutórios, definir uma nova ordem pública, da qual não se podem excluir as relações jurídicas privadas, que eleva ao ápice do ordenamento a tutela da pessoa humana, funcionalizando a atividade econômica privada aos valores existenciais e sociais ali definidos.”[15]

Muito bem nos explica o conceito de dignidade humana o professor Gustavo Tepedino, com o seu famoso exemplo do anão que era arremessado em um espetáculo francês, na cidade de Mor-sang-sur-Orge, quando o Prefeito proibiu a realização do inusitado evento, que ocorria em determinada discoteca da cidade, chamado de “arremesso de anão”. O homem de pequena estatura era arremessado como um projétil pela platéia, de um lado para outro, enquanto todos riam e debochavam.

O Tribunal Francês, primando pela dignidade humana, ratificou o decreto do prefeito, proibindo o famigerado arremesso de anão.

A dignidade humana é vista como uma unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente à personalidade humana. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se num mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Pode-se conceituar a dignidade humana como o valor maior, epicentro de todos os direitos atribuídos pela Constituição Federal aos cidadãos brasileiros.

Vaclav Havel, dramaturgo e estadista tcheco, enfatiza a dignidade humana como elemento diferenciador em relação às demais espécies; literalmente:

"Tomemos o conceito de dignidade humana. Ele permeia todos os direitos humanos fundamentais e os documentos relativos aos direitos humanos. Para nós, isso é tão natural que achamos que nem sequer faz sentido indagar o que realmente significa a dignidade humana, ou por que a humanidade deveria possuí-la, nem tampouco nos indagamos por que razão faz sentido que todos nós a reconheçamos uns nos outros e uns para os outros.  As raízes mais profundas do que chamamos direitos humanos se encontram além e acima de nós, em algum lugar mais profundo do que o mundo dos contratos e acordos humanos. Elas têm sua origem no âmbito metafísico. Embora muitos não se dêem conta disso, os seres humanos - as únicas criaturas totalmente conscientes de seu próprio ser e da mortalidade, que enxergam aquilo que as cerca como um mundo e mantêm uma relação interna com esse mundo - derivam dignidade, além de responsabilidade, do mundo como um todo; ou seja, daquilo no qual identificam o tema central do mundo, sua espinha dorsal, sua ordem, sua direção, sua essência, sua alma - chame-o como quiser. Os cristãos formulam a questão em termos simples: o homem foi colocado no mundo à imagem de Deus."[16]

A professora Maria Berenice Dias doutrina:

“ O princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio maior, afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal e fundante do Estado Democrático de Direito. A preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional. Sua essência é difícil de ser capturada em palavras, mas incide sobre uma infinidade de situações que dificilmente se podem elencar de antemão. Talvez possa ser identificado como sendo o princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoções. É impossível uma compreensão exclusivamente intelectual e, como todos os outros princípios, também é sentido e experimentado no plano dos afetos. O princípio da dignidade humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade. É o mais universal de todos os princípios, pois serve de baliza aos demais. É um MACROCÍPIO do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, e solidariedade, uma coleção de princípios éticos.           Na medida em que a ordem constitucional elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento, houve uma opção expressa pela pessoa, ligando todos os institutos à realização de sua personalidade. Tal fenômeno  provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do Direito. O princípio da dignidade humana não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte a sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O Direito de família está umbilicalmente ligado aos direitos humanos, que têm por base o princípio da dignidade da pessoa humana, versão axiológica da natureza humana. O princípio da dignidade humana significa, em última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares. Assim é indigno dar tratamento diferenciado às várias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição de família, com o que se consegue visualizar a dimensão do espectro desse princípio que tem contornos cada vez mais amplos. A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A  ordem constitucional dá especial proteção à família, independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas. Ora, se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a existência digna. É direito constitucional do ser humano ser feliz e dar fim àquilo que o aflige sem inventar motivos.”[17]

O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado, significando, não só um reconhecimento do valor do homem em sua dimensão de liberdade, como também de que o próprio Estado se constrói com base nesse princípio. O termo dignidade designa o respeito que merece qualquer pessoa, e é um parâmetro para todos os demais princípios e direitos.

E é com base neste princípio que mulheres e homens utilizam-se da inseminação artificial. A família monoparental, proveniente de inseminação em mulheres solteiras, pelo fato de a criança já nascer sem pai, tem gerado opiniões controversas.

Segundo Maria Berenice Dias:

“É no mínimo preconceituosa a postura doutrinária que sustenta que a mulher solteira não deve fazer uso de método reprodutivo assexual, por se prestar a interesses egoísticos. Como não lhe é vedado o direito à adoção, nada a impede de gerar no próprio ventre um filho, o reconhecimento da igualdade não admite negar a uma mulher o uso de técnicas de procriação assistida somente pelo fato de ser solteira. Como o planejamento familiar é um direito constitucionalmente assegurado, não comporta limitações. Ao depois, está comprovado que o filho não tem o seu desenvolvimento prejudicado por ter sido gerado por inseminação artificial. O interesse da criança deve ser preponderante, mas isso não implica concluir que não possa vir a integrar uma família monoparental, desde que o genitor isolado forneça todas as condições necessárias para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto.”

No que tange ao embrião, a ele deve ser atribuído o direito à dignidade humana, porque como veremos ao longo do presente trabalho, o embrião é vida humana e tem o direito de se desenvolver como um futuro ser sujeito de direito. Veja o pensamento do Dr. Gonzalo Herranz, Diretor do Departamento de Humanidades Biomédicas da Universidade de Navarra, verbis:

“El núcleo ético del argumento es este: no todos los seres humanos son iguales, pues unos tienen más valor y más dignidad que otros. En concreto, ciertos seres humanos, y los embriones congelados caducados se cuentam entre ellos, valen muy poço y podemos intercambiarlos por cosas más valiosas. No tienen nombre, ni son personas como lãs otras. Están condenados a morir y nadie los llorará  ni celebrará funerales por su muerte, inevitable y autorizada por la ley. Pero, como democratas, se há de replicar que no es justo ni razonable dividir a los seres humanos em grupos de valor diferente. Los embriones sobrentes son, ante todo, hijos, que forman parte de una família. Formában parte de un grupo de hermanos. De ellos, unos fueron considerados dignos de ser transferidos al seno de su madre y son ahora ninos llenos de alegría de vivir. Pero, por um azar trágico, los otros fueron dejados de lado. La humanidad há madurado trabajosamente la Idea de que a todos los miembros de la familia humana se há de conferir la misma dignidad, aunque sus ideas o su apariencia difieran radicalmente de lãs propias”[18]

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Sobre o autor
Emanuel Adilson Gomes Marques

Pós graduado em Direito Civil e Processo Civil Pós graduado em Direito Público Defensor Público Federal Membro titular da Câmara de Coordenação e Revisão Previdenciária da Defensoria Pública da União

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Emanuel Adilson Gomes. Direito de procriar:: a reprodução assistida em face do princípio da dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4007, 21 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29622. Acesso em: 28 mar. 2024.

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