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O serviço público de transporte rodoviário interestadual de passageiros e as omissões da Administração

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Agenda 07/12/2014 às 11:22

Estudam-se os efeitos das omissões estatais no sistema de transporte terrestre de passageiros, bem como o posicionamento jurisprudencial face aos casos levados ao judiciário.

1.1      Panorama jurídico do sistema de transporte interestadual de passageiros

O sistema de transporte interestadual rodoviário de passageiros é responsável por quase três quartos do total de deslocamentos coletivos interestaduais e internacionais. [1] Esse dado, espantoso por se tratar de deslocamentos de longíssima distância e em condições de trafegabilidade rodoviária em geral ruins, mostra que o transporte aéreo ainda é um modal de alcance restrito, e que a população brasileiro depende enormemente do transporte rodoviário para se locomover no território.

Além disso, essa constatação nos revela a essencialidade do serviço de transporte coletivo de passageiros realizado em âmbito federal, mostrando que nada justifica classificá-lo como atividade econômica simples e não como serviço público, uma vez que “o fundamento último da qualificação jurídica de determinada atividade como serviço público é ser pressuposto de coesão social e geográfica de determinado país e da dignidade de seus cidadãos.” [2]

Não obstante sua importância, o sistema como um todo possui baixa densidade legislativa e é prenhe de exemplos de omissão administrativa e de decisões judiciais que procuram suprir a falta de iniciativa do Poder Executivo.

Isso acontece por variados motivos.

O primeiro deles diz respeito ao modo como o Estado procede à delegação a particulares da prestação desses serviços. Isso porque, historicamente, ele não possui capacidade técnica para operar o sistema, transformando a delegação dos serviços em regra na história dos serviços públicos prestados aos brasileiros. Essas delegações, antes da Constituição Federal de 1988, eram feitas conforme desejava a União e, via de regra, não eram precedidas de licitação porque o direito de então não a exigia.

Quando existiam, os contratos assinados entre o poder concedente e a empresa delegada, tinham, como hoje, suas cláusulas estabelecidas pela parte contratante e não continham mecanismos claros de renovação ou de atualização do valor das tarifas.

Segundo Marçal Justen Filho, “assim se passava porque, ao longo do tempo, tinha sido usual a renovação dos prazos de outorgas, sem avaliação da amortização dos investimentos anteriores. Novos encargos eram impostos e o relacionamento entre as partes prosseguia”. [3]

Nesse ambiente, coexistiam diversas modalidades de delegação, algumas altamente precárias, como a requisição e a autorização. Para homogeneizar o tratamento às outorgas e amenizar os ânimos das delegatárias, todas as delegações, independentemente de seu perfil originário, foram convoladas em permissão de serviço público pelo Decreto no 90.958, de 14 de fevereiro de 1985, assinado pelo último presidente militar. [4]

No ano seguinte, foi assinado o Decreto 92.353, que reorganizava os sistemas de tranporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros em torno da competência regulatória do Departamento de Estradas e Rodagem (DNER) e estabelecia a permissão como o regime de outorga próprio aos serviços adjudicados “mediante seleção sumária da transportadora” e a concessão para as contratações feitas “mediante concorrência pública” (art. 11).

O Decreto 92.353 confirmou o que seu predecessor já havia feito: enquadrou todos os serviços regulares já existentes no regime de permissão, já que nenhuma das outorgas existentes haviam sido objeto de licitação ou qualquer outro tipo de certame público de escolha (art. 139). Além disso, determinou que todas as transportadoras delegatárias assinassem um “Termo de Obrigações” com o DNER até o fim daquele ano, sob pena de automático cancelamento das respectivas delegações (art. 140).

Assim, ao adentrarmos na ordem constitucional de 1988, todo o serviço público de transporte rodoviário interestadual era prestado por delegatárias sob o regime de permissão cujo embasamento normativo eram dois Decretos presidenciais. Da mesma forma, o vínculo dos particulares com a Administração não continha cláusulas essencias para a perfectibilização dos acordos, como termo ou condições para prorrogação.

Sobrevinda a Constituição Federal de 1988, novos parâmetros para a contratação do delegatário de serviço público foram estipulados.

Segundo o artigo 175 da Constituição Federal, a prestação de serviços públicos é incumbência do Estado, que deve, diretamente ou por intermédio de particulares contratados sempre mediante licitação e sob o regime de concessão ou permissão, desempenhar suas funções respeitando os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, CRFB/88). [5]

Sendo prestado diretamente pelo poder público ou pelo particular contratado em um dos regimes elencados pelo texto constitucional, o serviço público tem de ser prestado de forma adequada, de modo a satisfazer as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade tarifária (art. 175, parágrafo único, IV, da CF/88 e art. 6, parágrafo 1 da Lei n. 8.986/95).

A ordem jurídica inaugurada em 1988, portanto, estatui uma série de regras e padrões não só para a prestação do serviço, mas também para sua delegação, que deverá ser feita sempre mediante licitação. Essa exigência, a despeito do que muito se diz, é peremptória e de cumprimento imediato, conforme já consignou o Superior Tribunal de Justiça:

“O art. 175 da Lei Fundamental, na qual é utilizado o advérbio sempre, não enseja dúvidas sobre a eficácia plena, imediata e automática do preceito, que está a obrigar, tanto o legislador e o poder regulamentar, quanto a vincular o ato concreto de concessão (como o ora impugnado pela impetrante, ora Recorrente), à prévia licitação toda vez que não se trate de exploração direta do serviço pelo Poder Público.” [6]

Essa determinação nos diz que a Administração, se não prestar os serviços por conta própria, tem que promover a licitação, ou seja: tem de efetuar uma chamada pública, cujas condições estejam estabelecidas em ato próprio (por edital ou convite), pela qual convoca empresas interessadas para apresentarem propostas  para o oferecimento de bens e serviços. [7]

A despeito da definição sentenciosa que nos oferece a CRFB/88, o legislador administrativo entendeu por bem editar o Decreto 952, de 7 de outubro de 1993, que tomou, em essência, quatro iniciativas importantes: (i) revogou o Decreto 92.353/86; (ii) transladou para o Departamento de Transportes Rodoviários do Ministério dos Transportes a competência regulatória do setor; (iii) prorrogou as permissões já existentes por 15 anos a partir de sua formalização mediante Contrato de Adesão e (iv) criou, ainda, a figura da autorização precária, que seria outorgada, sem a necessidade de licitação precedente, para atender casos especiais – fretamento turístico, por exemplo – e emergenciais – casos de fim do contrato regular de determinada operadora – e que deveriam ser formalizados por Termo de Obrigações.

É interessante notar que o Decreto 952/93 inaugura, nos artigos 14 a 18, a figura do requerimento a ser encaminhado por pessoa jurídica ao Departamento de Transportes Rodoviários para a abertura de licitação para exploração de determinada ligação terrestre. Esse requerimento tinha um prazo de até 120 dias para ser examinado, findo os quais, havendo decisão favorável ou mantendo-se o órgão administrativo silente, deveria ser realizado certame licitatório para a linha de ônibus requerida.

Em 1995, foi promulgada a lei no 8.987, alcunhada de Lei Geral das Concessões, [8] que regulou o artigo 175 da Constituição Federal de 1988, repetindo a necessidade constitucional de efetuar as contratações públicas mediante licitação e estatuindo uma série de regras para o certame.

Nas disposições finais e transitórias, a Lei no 8.987 determina que as concessões que foram contratadas sem licitação após a CRFB/88 estão extintas (art. 43) e que as concessões que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado permanecerão válidas pelo tempo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão as outorgas das concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 meses (art. 42, parágrafo 2o).

O parágrafo 3o do artigo 42 diz, ainda, que a prorrogação não deverá ultrapassar o limite máximo de 31 de dezembro de 2010, desde que observadas alguns pré-requisitos determinados. [9]

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A Lei Geral de Concessões foi regulamentada pelo Decreto nº 2.521, de 20 de março de 1998, que manteve, em linhas gerais, as diretrizes do Decreto 952/93, inclusive no que tange a prorrogação das permissões então vigentes até limite de 15 anos a partir de 1993, absorvendo as regras estipuladas na Lei 8.987. O novo Decreto, no entanto, regrediu no tratamento do silêncio administrativo, ao retirar o prazo de 120 dias para resposta ao requerimento do particular para a realização da licitação e ao não estipular consequência para o silêncio da Administração (arts. 13 e 14).

Em 2001, a Lei 10.233 criou a Agência Nacional de Transportes Terrestres e inaugurou um novo regime de outorga, a “Autorização Especial” de serviço público interestadual de transporte rodoviário, que deveria ser usado em casos de emergência e de caráter temporário.

Em setembro de 2008, a Agência Nacional de Transportes Terrestres editou a Resolução nº 2.868, por meio da qual prorroga  os contratos que venceriam naquele ano enquadrando-os como outorgas em regime de autorização especial para a prestação de serviços regulares de transporte rodoviário interestadual de passageiros, prorrogando até 31 de dezembro de 2011 ou até sejam iniciadas as operações do novo sistema a ser construído com a licitação vindoura.

Frise-se a ilegalidade dessa resolução, que extrapola o limite de tempo estipulado pela Lei nº 8.987 para a manutenção dos operadores que não foram contratados mediante licitação, utilizando-se, para tanto, de instituto de contratação estranho à Constituição Federal.

Essas disposições legais e regulamentares, hoje vigentes, encerram o panorama normativo da prestação de serviços públicos de transporte coletivo internacional e interestadual de passageiros em modalidade rodoviária. No entanto, elas não suficientes para entregar aos empresários a segurança e a previsibilidade suficientes para garantir a manutenção das operações e investimentos, nem conseguem apreender as mudanças e evoluções com as quais a população convive e que precisam ser absorvidas pelo sistema para que ele responda às necessidades reais dos usuários.

De fato, o sistema sobrevive graças a uma força inercial que existe desde antes da Constituição Federal de 1988 e que sustenta os pilares do transporte interestadual coletivo por ônibus.

É que, muito embora os contratos que sustentavam as operações estejam vencidos desde 2010, não houve processo de licitação, nem de novas linhas nem das já operantes, o que lega às transportadoras e aos usuários do sistema um panorama normativo e operacional defasado, que pouco (ou nada) acompanhou as transformações sociais das últimas três décadas e não oferece a segurança necessária para que as empresas delegatárias possam planejar seus investimentos a longo prazo.

O cenário do sistema de transporte interestadual e internacional de passageiros por rodovias é, portanto, prenche de exemplos das mais devastadoras omissões da Administração.

1.2      Omissões administrativas sobre o sistema e atuação do judiciário

A atuação administrativa no âmbito dos serviços públicos comporta nuanças que transformam o problema do silêncio da Administração em uma questão sui generis.

No caso do transporte rodoviário interestadual de passageiros, como em tantas outras modalidades de serviço público, a natureza da atividade (que demanda altos investimentos iniciais na aparelhagem operacional, por exemplo) faz com que a delegação de sua prestação a particulares seja regra e não exceção.

Fato é que, a importância da promoção desse serviço para o quotidiano das pessoas e para a movimentação da economia – que está acompanhada da obrigação constitucional de o Estado oferecer esse serviço sob os parâmetros legais atinentes a seu caráter público – não elimina a necessidade de que a Administração promova a escolha do particular delegatário mediante licitação, conforme o artigo 175 da Constituição Federal.

Diga-se de passagem, mas não com menos importância, que essa conjuntura é reveladora, dentre outros, do papel que o procedimento licitatório tem no ordenamento jurídico brasileiro, pois, como ensina o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, “por via deste expediente não só se assegura o princípio da igualdade; não apenas se forceja por assegurar a moralidade administrativa, contrapondo-se tanto a perseguições como – e sobretudo – a favoritismos que, se fora livre a contratação, poderiam existir, motivados pelas mais diversas razões,[...] como também, o que é de fundamental importância para a defesa de interesses administrativos, concorre-se decisivamente para a captação do negócio mais vantajoso para as conveniências públicas, obsequiando-se, dessarte, o princípio da boa administração, conhecido da doutrina italiana e que, entre nós está consagrado com a denominação menos feliz de princípio da eficiência”. [10]

Assim, a obrigatoriedade da licitação para a contratação de particular para operar linhas de transporte não é menos peremptória e importante para a ordem jurídica do que o direito à locomoção em território nacional.

Nesse quadro, com algumas variações que mais dizem respeito a atos administrativos de outorga ilegais, a grande maioria das ações judiciais que discutem a silêncio da Administração no sistema de transporte rodoviário de passageiros é ajuizada por empresas que pretendem o reconhecimento do judiciário de seu alegado direito a explorar serviço que o Poder Público não opera.

Os juízes, então, comumente se defrontam com o impasse, já identificado na própria natureza do sistema, entre o princípio da licitação e o direito das comunidades de serem abastecidas por serviços de transporte, ocasião em que o judiciário tem de emitir resposta consentânea a suas atribuições institucionais, vindo, ao longo dos anos em que sobrevivem as omissões, atuando de formas diferentes.

Alguns casos concretos nos ajudam a traçar o cenário desenhado pela jurisprudência.

O primeiro deles é o trazido pelo Recurso Extraordinário nº 140.989, julgado em 1993, de relatoria do Ministro Octávio Galloti que, analisando a outorga de concessão a particular de serviços de transporte urbano pelo Município de Itaboraí (RJ), asseverou que a determinação do artigo 175 da Constituição Federal não comporta exceções, ainda que sejam aduzidas em juízo a inexistência de serviço antes da delegação, sendo necessária “a prévia licitação para autorizá-la, quer sob a forma de permissão quer sob a forma de concessão”.

Esse entendimento foi acompanhado por outros julgados que ampliaram sua aplicação a esfera intermunicipal e interestadual. [11] Nesse ínterim, a Corte Suprema mostrou inabalável convicção acerca da inflexibilidade da Constituição Federal quanto ao comando para a licitação.

Entrementes, o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 264.621, relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa, acrescenta a essa interpretação o argumento de que o interesse público pela prestação do serviço não é suficiente para autorizar o judiciário a suprir omissão administrativa:

“Os princípios constitucionais que regem a administração pública exigem que a concessão de serviços públicos seja precedida de licitação. Contraria os arts. 37 e 175 da Constituição federal decisão judicial que, fundada em conceito genérico de interesse público, sequer fundamentada em fatos e a pretexto de suprir omissão do órgão administrativo competente, reconhece ao particular o direito de exploração de serviço público sem a observância do procedimento de licitação.”

Essa parte do julgado, exposta, inclusive, em sua ementa, revela o posicionamento da Suprema Corte diante do conflito instaurado entre o interesse público pelo transporte e as limitações do judiciário para aferir todos os elementos da conjuntura prática do serviço, de modo que o interesse público não é salvo conduto para que o juiz autorize a exploração não precedida de licitação justamente porque o judiciário pouco ou nada tem de ferramentas que auxiliem na avaliação técnica do serviço.

Esse trecho nos mostra, ainda, o que ficará mais evidente com o passar dos anos e do amadurecimento da jurisprudência dos Tribunais do país nessa seara: não raro, pleitos de empresas prestadoras de serviço de transporte estão baseados em alegações sobre o desatendimento da população de determinadas localidades, abandonadas (de fato ou supostamente) pela Administração ou por quem lhe faça as vezes, fato que seria suficiente para que a elas seja garantido o direito de explorar o serviço.

 Pouco mais tarde, o Supremo Tribunal Federal reforça seu posicionamento, salientando, em diversos julgados, que as decisões do judiciário que deferem pedidos de particulares para exploração de serviço público sem licitação causam “lesão à ordem administrativa”, como descrito na ementa da STA 73, também paradigmático sobre o assunto:

“Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido da impossibilidade da prestação de serviços de transporte interestadual de passageiros a título precário, sem a observância do procedimento licitatório. Lesão à ordem administrativa: afastamento da Administração do legítimo juízo discricionário de conveniência e oportunidade na fixação de trecho a ser explorado diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, do serviço de transporte rodoviário interestadual de passageiros.” [12]

No caso vertido na STA 73, a União pleiteou a suspensão de acórdão que deferiu pedido de antecipação de tutela em agravo de instrumento para autorizar empresa a explorar serviço de transporte coletivo de passageiros na ligação rodoviária entre Montes Claros (MG) a Foz do Iguaçu (PR). A extensão e a importância estratégica de um trecho que corta partes importantíssimas do país influenciaram a Ministra Ellen Gracie, relatora, a destacar em seu voto que a autorização judicial para a operação do serviço influenciaria o judiciário a deferir pedidos similares de empresas transportadores em situação idêntica àquela da autora, fazendo surgir o denominado “efeito multiplicador das decisões judiciais”.

No ano seguinte, em 2009, o Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do Ministro Gilmar Mendes, deparou-se novamente com a matéria através da Suspensão de Liminar nº 279 e da Suspensão de Tutela Antecipada nº 322.

Na primeira, o Ministro Presidente suspendeu os efeitos de decisão que determinada licitação, em prazo estabelecido pelo juiz, de linhas de transporte rodoviário do estado de Pernambuco porque desequilibraria o sistema nacional de outorgas. No segundo, foi sustada eficácia de decisão judicial que autorizava a exploração de linhas rodoviárias a despeito da oposição da ANTT.

Segundo o Ministro, à época do julgamento, a Agência Nacional de Transportes Terrestres comprovou estar empreendendo esforços para promover a licitação de todo o sistema, apresentando, inclusive o Projeto de Rede Nacional de Transporte Rodoviário Interestadual e Internacional de Passageiros (Propass Brasil), documento técnico pelo qual se traçava o projeto para a licitação de todas as linhas operadas sem licitação até dezembro de 2009.

Mais tarde, entretanto, por ocasião do julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada nº 357, em que a ANTT buscava a suspensão de seis acórdãos que conferiam a diferentes empresas o direito a exploração de serviços de transporte rodoviário, o Ministro Gilmar Mendes, após receber da própria Agência reguladora a informação de que foram novamente prorrogados os contratos celebrados sem licitação, dessa vez pelas subsequentes alterações da Resolução/ANTT nº 2.868/09, e embasando-se no prazo estabelecido pelo Decreto nº 2.521/98 para o termo das permissões outorgadas sem licitação (31 de dezembro de 2008), entendeu que a inércia do poder público revelou a necessidade de manutenção dos acórdãos regionais, asseverando, ainda, que:

“Se anteriormente deferi pedidos análogos ao ora formulado, o fiz por constatar o firme propósito da requerente de solucionar, em definitivo, o problema. A recente prorrogação do prazo de vigência das autorizações especiais evidencia exatamente o contrário: a manutenção de um quadro inconstitucional e lesivo ao patrimônio público, com o qual esta Corte não pode anuir”. [...]

“Não são as decisões judiciais impugnadas que se revelam lesivas à ordem pública, mas o quadro de descalabro que se instaurou no setor em virtude da omissão da Administração Pública no cumprimento de suas obrigações constitucionais e legais”. [13]

Embora essa decisão não funcione propriamente como um divisor de águas da jurisprudência nacional, a guinada no posicionamento do STF, que antes era intransigente na defesa da licitação em detrimento das autorizações judiciais, é reveladora da omissão administrativa na consecução de seus deveres para com a população e traduz muito bem os motivos pelos quais parte dos magistrados pensam ser correta a autorização judicial de linhas de ônibus.

Julgados de tribunais regionais demonstram claramente isso. [14]

Como é o caso de Agravo de Instrumento ajuizado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, [15] no qual foi deferida antecipação de tutela para assegurar a agravante autorização para operação do trecho entre Carutapera (MA) e Belém (PA) até a realização da licitação pública.

Nessa decisão, a Relatora convocada, Juíza Gilda Sigmaringa Seixas, lembra do cancelamento da Súmula 39 daquele Tribunal, que assim dizia:

EMENTA: é defeso ao poder judiciário substituir-se à administração para autorizar, conceder ou permitir a exploração de serviço de transporte rodoviário interestadual. (constituição federal, art. 21, xii, “e”). [16]

Segundo a relatora, a revogação da Súmula 39 não tem o objetivo autorizar transporte rodoviário, mas de, com suas palavras, “possibilitar o acesso ao transporte de passageiros a pessoas que residem em localidades que efetivamente não possuam acesso ao transporte interestadual”

Ancorando seu posicionamento no decisium do Supremo Tribunal Federal proferido na STA 357, a juíza convocada reafirma a notoriedade da “conduta omissa da ANTT em relação à realização da licitação para operação de todo e qualquer trecho de transporte rodoviário de passageiros no território nacional, sendo flagrante e injustificável a mora da Agência reguladora”.

Outros dois pedidos de antecipação de tutela em Agravo de Instrumento, julgado no mesmo Tribunal, [17] em setembro e outubro de 2013, ambos julgados pela Desembargadora Selene Maria de Almeida, caminham no mesmo sentido, baseando-se tão-somente na decisão da Suprema Corte na STA 357 e na “inexplicável e ilegal mora administrativa na concretização da licitação para a outorga” da linha pretendida em juízo.

Junte-se a esses julgados o acórdão da 6ª Turma do TRF da 1ª Região no AI nº 0068571-72.2011.4.01.0000/DF no qual ficou consignado que as prorrogações dos contratos vigentes para além do prazo limite estabelecido pela Lei é, em verdade, outorga de autorização especial pela Administração Pública que “excepciona a regra constitucional, razão pela qual razoável o acolhimento da pretensão veiculada naquele agravo.”

No mesmo sentido, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região mostra inclinação peremptória para deferir pedidos moldados a partir da argumentação da omissão do Estado na reformulação do sistema interestadual de transporte de passageiros, dizendo em recente acórdão:

Não é tarefa do Poder Judiciário estabelecer linhas, deferir autorizações, concessões ou permissões, mas apenas averiguar a licitude da ação ou omissão da Administração que, neste particular, é ilegal e abusiva, contrária ao interesse público, ao desenvolvimento do país, ao princípio da legalidade e da moralidade. [18]

A análise dessas decisões nos leva a algumas importantes conclusões.

A primeira delas nos revela que parte do judiciário entende que a inércia da poder público em promover a licitação das linhas de ônibus por si só justificaria a autorização judicial. É que, como mostra o último excerto de decisão, ao judiciário é dado avaliar a licitude da omissão estatal, razão pela qual, no entender no TRF da 1ª Região, constatada a omissão ilegal o serviço deve ser prestado por qualquer outra empresa.

A segunda diz respeito ao regime jurídico das outorgas administrativas feitas sob a égide da Resolução/ANTT nº 2.868/09. Trata-se das “autorizações precárias” que, muito embora estejam previstas pela Lei nº 10.233/01, deveriam existir apenas em casos emergenciais e passageiros e não como prática sistemática com vêm sendo usadas.

Essa “exceção à regra” (como denomina diversos acórdãos) empreendida pela ANTT encoraja o judiciário a fornecer ele mesmo solução que a priori transgride suas possibilidades legais.

À parte da flagrante inação do poder público, primeiramente representado pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem e, mais tarde, pela Agência Nacional de Transportes Terrestres, não se pode deixar de lado que o posicionamento do judiciário não parece ser menos ruinoso para o sistema de transporte rodoviário de passageiros e para a ordem pública.

Primeiramente porque não se pode admitir que a um dos poderes da República seja dado desrespeitar a Constituição Federal porque outro poder também o faz. Não há lógica jurídica nem prática para o cômputo das relações institucionais dos poderes estatais e para os jurisdicionados.

Em segundo lugar, a omissão estatal por si só não justifica a conduta ilegal do particular. Ao chancelar a tese de que detém direito à exploração que vem explorando o serviço, independentemente do tempo, está-se avalizando a ilegalidade reincidente como meio apto a transformar o status jurídico da ação irregular.

Além disso, ao estabelecer um raciocínio reto entre a omissão estatal na promoção da licitação das operações do sistema e a necessidade de outorga de linha regular de ônibus entre determinadas localidades, o judiciário avalia (ou ignora) todas as nuanças técnicas que envolvem a construção e organização de um sistema complexo de prestação de serviço público.

Esse enredo, presente em todas as decisões pesquisadas, torna a decisão judicial desbaratada da realidade das populações que estariam desatendidas e torna simples um provimento judicial que seria extremamente complexo, fosse o judiciário apto tecnicamente a aferir a necessidade real dos habitantes das cidades a serem ligadas por linhas de ônibus.

Assim, a despeito da ausência de prova nos autos de que as ligações pleiteadas estão realmente desabastecidas por linhas regulares, o judiciário intervém no sistema e autoriza a operação precária, muitas vezes ignorando parecer da área técnica da ANTT que demonstra que, embora os pontos extremos do trecho autorizado judicialmente não existam como um par origem-destino no rol de serviços regulares, o atendimento da população está sendo feito por outras linhas de ônibus que não ligam diretamente os pontos terminais da linha, mas que garantem à população a oferta do serviço de transporte interestadual.

Outro problema desse tipo de decisão é a falta de condição do judiciário para aferir a legalidade de todas as ligações contidas em uma linha de ônibus, uma vez que as cidades situadas nas extremidades dessas linhas são apenas parte ínfima do mercado que as operadoras almejam servir.

Apenas para ilustrar melhor essa realidade, pegue-se o exemplo da linha Cametá (PA) – Osasco (SP), cuja operação foi autorizada pela sentença proferida na Ação Ordinária nº 9551-672013.4.01.3400/DF.

Esse provimento judicial, respaldado no argumento de desabastecimento da população das cidades terminais, autoriza a exploração de um trecho rodoviário de mais de dois mil quilômetros de extensão e que interliga dezenas de cidades, formando ao todo 324 ligações em seu itinerário, dentre as quais algumas de grande importância para o transporte rodoviário nacional, como as que ligam os municípios de Uberlândia (MG), Campinas (SP), Ribeirão Preto (SP) e Goiânia (GO). [19]

A par da clara dificuldade da ANTT em proporcionar novos serviços de transporte rodoviário de passageiros, nada pode sugerir que essas cidades estivessem desabastecidas (como de fato não estavam) antes da ordem judicial autorizar a operação da linha Cametá – Osasco.

Essa constatação, retirada da análise de um provimento judicial representativo de um conjunto que contém quase a totalidade das decisões com o mesmo teor, sugere duas conclusões:

  1. as decisões judiciais que outorgam serviço regular de transporte rodoviário de passageiros ignoram a peculiaridade da modalidade que diz respeito à sobrevivência econômica de qualquer linha de ônibus: o aproveitamento do mercado de passageiros das cidades situadas entre os pontos terminais;
  2. muito embora possa (e deva) declarar a ilegalidade do silêncio da Administração em caso de desabastecimento de populações e de inércia em promover a licitação dos serviços, o judiciário corre sério risco de, ao permitir a operação de ligações rodoviárias que não foram submetidas ao escrutínio técnico do Poder Concedente e no afã de garantir os direitos da população de duas cidades longínquas social e territorialmente, apenas premiar empresa que presta serviços públicos irregularmente com mercados já devidamente servidos, prejudicando a já precária organização do sistema promovida pela autarquia reguladora.

A tendência ao deferimento de pedidos como os aduzidos na Ação Ordinária nº 9551-672013.4.01.3400/DF, intensificada, principalmente, com o julgamento da STA 357 pelo STF, não leva em consideração conteúdo do Propass, documento técnico produzido pela ANTT para substanciar futura licitação de todas as ligações rodoviárias interestaduais outorgadas sem o concorrência pública e de outras novas.

Isso fica evidenciado, sobretudo, quando se leva em consideração o rol de seções que deveriam ser licitadas. É que, como no caso em comento, muitos julgadores ignoram que as linhas pretendidas em juízo frequentemente não foram consideradas economicamente viáveis ou operacionalmente justificáveis pelo corpo técnico da autarquia reguladora do setor, seja por razões estritamente econômicas, seja pela ausência de relacionamento geográfico que justificaria a instalação de uma ligação rodoviária direta entre duas localidades. [20]

De fato, mesmo se se pudesse questionar acerca da habilidade da ANTT na redação no Propass, ainda assim seria necessário creditar-lhe legitimidade e aptidão para subjazer ao cronograma de licitação das linhas interestaduais de ônibus, desde que não apresente ilegalidades ou flagrantes absurdos técnicos.

Assim, ausentes elementos que desqualifiquem o Propass, é a ele que o juiz deve recorrer para aferir a viabilidade econômica e as necessidades específicas das populações potencialmente atingidas pelo provimento jurisdicional.

Contrariamente, no entanto, soluções como as aqui estudadas, que se sustentam na construção de uma relação direta entre a ausência de iniciativa do poder público para adimplir ao comando constitucional para a licitação e a necessidade de manter serviços prestados ilegalmente, simplesmente desconsideram que a única produção técnica sobre o procedimento futuro de outorga mediante licitação atesta a inviabilidade daquela linha cujo direito de exploração foi reconhecido em juízo.

Fato é que as decisões em sentido similar ao da STA 357, além de legal e tecnicamente equivocadas, não resolvem o problema da omissão estatal na renovação do quadro operacional do sistema nem forçam a Administração Pública a cumprir com seu dever constitucional de contratar particulares para prestar serviços públicos em seu nome somente através de licitação.

Dessa forma, a dupla omissão da Administração Pública, consistente em não oferecer serviço eficiente – constatado pela oferta de serviço desatualizada dos tempos modernos – e em não regularizar o sistema através da licitação de novas e velhas linhas de ônibus, não é solucionada pelas através das ações judiciais.

Ao contrário, a experiência sugere que o Executivo muitas vezes ampara-se nas decisões judiciais para oferecer os serviços ou promover as políticas públicas que a ordem jurídica impõe a ele como dever e pouco ou nada trabalha para melhorar o desempenho institucional por conta de decisões judiciais paliativas e de questionável acurácia técnica. [21]

Sobre o autor
Gabriel Mota Maldonado

Acadêmico na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALDONADO, Gabriel Mota. O serviço público de transporte rodoviário interestadual de passageiros e as omissões da Administração. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4176, 7 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31233. Acesso em: 25 nov. 2024.

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