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O poder normativo das agências reguladoras e a discricionariedade técnica.

Fundamentos e legitimidade

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4. A Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.668-5/DF.

 Após buscar na teoria de como a discricionariedade técnica é o fundamento legitimador do poder normativo das agências reguladoras, verifica-se, quanto aos fatos, como o ordenamento jurídico brasileiro recepcionou a regulação por normas das agências reguladoras. Um importante julgado, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 1.668-5/DF, serviu de base para essa recepção e trouxe ao direito brasileiro uma importante análise sobre a legitimidade e a natureza jurídica do poder normativo de todas as agências reguladoras. Nessa ADI, discute-se a possibilidade de usurpação dos princípios da legalidade e da separação dos poderes que a Lei Geral das Comunicações poderia trazer ao ordenamento.  Por isso, tendo em vista que essa discussão na jurisprudência impactou a recepção das agências reguladoras no ordenamento brasileiro, escolheu-se fazer uma breve exposição do julgado. 

De acordo com a Constituição Federal, art. 21 XI e XII, em redação dada pela Emenda Constitucional nº 08, de 15/08/1995, compete à União “explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”. Por sua vez, tendo em vista o mesmo dispositivo constitucional, foi editada a Lei n.º 9.472 de 16 de julho de 1997, chamada de Lei Geral das Telecomunicações. Em relação às características das agências reguladoras, a legislação expressamente as determina:

Art. 8° Fica criada a Agência Nacional de Telecomunicações, entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de órgão regulador das telecomunicações, com sede no Distrito Federal, podendo estabelecer unidades regionais.

(...)

§ 2º A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.

Art. 9° A Agência atuará como autoridade administrativa independente, assegurando-se lhe, nos termos desta Lei, as prerrogativas necessárias ao exercício adequado de sua competência.

A ANATEL tem como finalidade a função reguladora das telecomunicações, cabendo ao Poder Executivo instalar a agência, com regulamento aprovado por Decreto do Presidente da República, que fixará sua estrutura organizacional. O Decreto em questão é o de nº 2.338/97.

Por sua vez, as competências da agência são, genericamente, adotar medidas necessárias ao atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade. Ao que tange o tema de discussão neste artigo, destacam-se as competências normativas da ANATEL que são (i) expedir normas quanto à outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público; (ii) expedir normas sobre prestação de serviços de telecomunicações no regime privado; (iii) expedir normas e padrões a serem cumpridos pelas prestadoras de serviços de telecomunicações quanto aos equipamentos que utilizarem; (iv) expedir normas e padrões que assegurem a compatibilidade, a operação integrada e a interconexão entre as redes, abrangendo inclusive os equipamentos terminais. Ainda compete ao Conselho diretor (i) aprovar normas próprias de licitação e contratação e (ii) editar normas sobre matérias de competência da Agência.

Tendo em vista as normas de competências da ANATEL, o Partido Comunista do Brasil, dos Trabalhadores, Democrático Trabalhista e Socialista Brasileiro, após a expedição da Lei Geral das Telecomunicações, entraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.668-5/DF diante do Supremo Tribunal Federal, alegando inconstitucionais vários dispositivos que diziam sobre a independência da agências. Em relação à competência normativa da agência foram atacados os incisos IV e X do art. 19 da LGT, em oposição aos artigos 21, inciso XI, art. 48, inciso XII e art. 68 da Carta Magna e do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e o inciso II do art. 22 da Lei de criação da ANATEL. Neste ponto, evocou-se o artigo 48 da Constituição Federal, que prevê como atribuição do Congresso Nacional a prática legislativa acerca das telecomunicações, sendo como principal argumento de inconstitucionalidade a lesão ao princípio da separação dos poderes e ao princípio da legalidade.  

Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio Mello, em medida liminar decidiu que em relação ao incisos IV e X do art. 19, “a atuação da Agência há de fazer-se de acordo com as normas de âmbito legal e regulamentar de regência”, considerando, como pressuposto, que talvez os referidos incisos estejam “ligados a questões simplesmente administrativas da prestação dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado, de maneira que “os preceitos a serem expedidos observem o que já se contém no arcabouço normativo, sob pena, aí sim, de extravasamento, a resolver-se no campo da legalidade”. Já para o inciso II do art. 22, foi considerado que a competência atribuída ao Conselho Diretor da Agência “não há de resultar no afastamento das normas gerais e específicas de licitação previstas nas leis de regência”, de maneira que tal competência ficaria restrita às especificidades técnicas próprias do setor.

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Ora, partindo da decisão proferida na ADIN n.º 1.668-5/DF, percebe-se uma tendência jurisprudencial de que as normas expedidas pelas agências reguladoras não poderão contrariar as determinações legais, ao mesmo tempo em que deverão ser expedidas conforme as características técnicas próprias de cada setor. Assim, enfatiza-se o conteúdo discricionário técnico das agências, com determinações específicas que vão além da lei geral, criando-se obrigações e deveres aos regulados. 


 5. Considerações Finais

A mudança na relação entre o Estado e Sociedade acarretou alterações no próprio Direito, e não podia ser diferente, uma vez que esse visa regular a relação social. À vista de tais mudanças advindas dos processos de reformas e privatizações no Brasil, a origem deste estudo está na preocupação em relação à legitimidade do poder normativo das agências reguladoras.

A discricionariedade técnica estaria como fundamento desse poder normativo. Para se demonstrar essa hipótese, utilizou-se duas principais correntes doutrinárias buscam fundamentar o poder normativo das agências reguladoras: da competência regulamentar e a delegação legislativa. Segundo a primeira corrente, a competência regulamentar é inerente à Administração Pública. Sendo seu maior representante Eros Grau, diz-se que a capacidade normativa do poder Executivo não fere o principio da tripartição dos poderes, uma vez que é própria a cada poder de Estado. Neste contexto, diferenciam-se o princípio da reserva de lei e a reserva de norma. Assim, há matérias que só podem ser tratadas por meio do processo legislativo, devido à previsão constitucional. Por conseguinte, as demais matérias serão tratadas por meio de regulamentos. Destarte, mesmo sendo uma competência inerente à Administração, para fins de controle jurisdicional, o poder normativo deverá possuir respaldo legal, efetivado com a existência dos espaços deixados na lei pelo legislador, para que esses possam, posteriormente, ser completados pelo administrador.

É exatamente nesse ponto que se encontra a discricionariedade técnica. Ora, os novos padrões sociais de eficiência demandam normas que tratem das especificidades de cada setor econômico regulado. Considerando-se a reserva da norma, é inerente às agências a competência de normatizar setores da economia, uma vez que possuem, mais do que o próprio Poder Legislativo, a especialidade e o conhecimento técnico para fazê-lo. Assim, a discricionariedade técnica está justamente na existência de tais espaços da lei, ou standards, sendo inerente à Administração completar tais espaços.

Por outro lado, sob a ótica doutrinária da delegação legislativa ou deslegalização, seria possível uma lei formal rebaixar, hierarquicamente, determinada matéria para que ela possa vir a ser tratada por meio de regulamento. Nesse percurso, não é necessário que a lei que delega pormenorize a matéria de que trata o regulamento, mas apenas possibilite que outras fontes normativas regulem o tema, por si mesmas. Assim, esses atos não serão de competência do Legislativo, muito embora estejam sujeitos ao controle político e jurisdicional. 

O motivo que levaria aos parlamentares efetuarem a delegação seria a especialidade que não possuem, uma vez que a especificação técnica de determinadas matérias não é constitucionalmente exclusiva do Congresso Nacional. Em outras palavras, o reconhecimento da deslegalização surge mediante a própria natureza técnica das normas inerentes à atividade reguladora. Logo, a discricionariedade técnica é, novamente, a diretriz para se determinar quais matérias podem ser objeto de delegação a entes da Administração.

Por fim, no âmbito das diferentes naturezas jurídicas do poder normativo consideradas neste artigo, demonstra-se que a discricionariedade técnica fundamenta esse poder, de maneira a criar uma atividade regulamentadora que a lei não seria capaz de suprir, pois, os trâmites formais de elaboração legal não atingem _como as normatizações das agências reguladoras_a fluidez, a especificidade e a dinâmica dos setores econômicos. 


Referências

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Sobre os autores
Guilherme Pagliara Lage

ESPECIALISTA EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO GOVERNAMENTAL, ASSESSOR CHEFE DE GESTÃO ESTRATÉGICA E INOVAÇÃO DA SECRETARIA DE ESTADO DE TRANSPORTES E OBRAS PÚBLICAS DE MINAS GERAIS

Lucas de Carvalho Araújo

ESPECIALISTA EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO GOVERNAMENTAL, ASSESSOR NA SECRETARIA DE ESTADO DE PLANEJAMENTO E GESTÃO DE MINAS GERAIS

Natália Peixoto Calijorne

Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental no Governo de Minas Gerais, graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2013, graduada em Administração Pública na Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro (FJP) em 2011.<br>Atualmente, trabalha na Secretaria de Estado de Fazenda de Minas Gerais. <br>

Andrey Morais Labanca

Bacharel em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João Pinheiro. Bacharel em Sistemas de Informação, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAGE, Guilherme Pagliara; ARAÚJO, Lucas Carvalho et al. O poder normativo das agências reguladoras e a discricionariedade técnica.: Fundamentos e legitimidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4233, 2 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31502. Acesso em: 18 dez. 2024.

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