2. A evolução legislativa da família na estrutura organizacional brasileira
Inicialmente, há de se considerar que os três primeiros séculos da história do Brasil são entendidos como um período de subordinação à metrópole portuguesa. Portanto, em função da relação de dependência, natural que as fontes históricas do direito português (derivadas do Direito Romano, Germânico e Canônico) alcançassem as terras do Brasil Colônia, seja por meio do reconhecimento da vigência de diplomas portugueses em solo brasileiro, sobretudo, das Ordenações Filipinas, ou ainda por intermédio da reprodução de tais normas no ordenamento local.
Acerca das Ordenações do Reino (Afonsinas, de 1446; Manuelinas, de 1521; e Filipinas, de 1603), é de se destacar, em breves linhas, que estas foram compilações jurídicas organizadas por monarcas da época, com o objetivo de conferir eficácia a uma série de leis extravagantes do Direito Português.
Nesse contexto jurídico, vê-se que à época do descobrimento do Brasil o Direito Português amparava três modalidades de família, assim relacionadas por San Tiago Dantas: “a) casamento como instituição canônica, segundo os preceitos estabelecidos pela Igreja, com consentimento manifestado in facie Ecclesiae; b) união nominada de “marido conhecido” ou “conozudo”, em que o consensus era expresso perante testemunhas, mas não perante autoridade eclesiástica, ou seja, a igreja não intervém no casamento; e c) união nominada de “marido desconhecido” ou “casamento à morganheira”, em que havia o consensus, a vida em comum como marido e mulher, mas não havia testemunhas do estabelecimento do vínculo [...].” (DANTAS apud GAMA, 2008, p. 158).
Há de se notar, porém, que, algum tempo depois da descoberta das terras brasileiras, Portugal, na qualidade de país católico, reconheceu em seu ordenamento jurídico a validade das normas referentes ao casamento publicadas pelo já mencionado Concílio de Trento (1563), que lhe conferiam caráter sacramental e atribuíam à Igreja Católica a autoridade para a sua celebração. Portanto, embora em um passado mais remoto houvesse notícia de que a Igreja não se opunha às relações de concubinato, quando não adulterino nem incestuoso, a posterior imposição do dogma sacramental denota a ação moralizadora da Igreja, que, a partir de então, impôs a excomunhão aos concubinos que se mantivessem naquela condição.
Desse modo, a partir do Concílio de Trento as ditas normas fundadas no Direito Canônico, em matéria de Direito de Família, foram introduzidas no Direito Português e posteriormente implantadas na Colônia.
Nesse contexto surgiram as Ordenações Filipinas, que, com algumas alterações, vigoraram no Brasil no período compreendido entre 1603 e 1916, conforme destaca Arnaldo Rizzardo: “As ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil até o advento do Código Civil de 1916, admitiam não apenas o casamento sob a doutrina do Concílio de Trento, mas também aquele em que o consenso entre os nubentes se dava perante testemunhas, mesmo que sem a intervenção da autoridade eclesiástica”. (RIZZARDO, 2009, p. 19).
No que tange à formação do núcleo familiar e aos objetivos perseguidos pela família no período colonial, os precisos esclarecimentos de Ferrarini: “O padrão familiar tradicional era fundado no matrimônio, sendo o vínculo do casamento a única forma legitima de constituição da família. O caráter instrumental que lhe era conferido estava condicionado a interesses extrínsecos, sobretudo do Estado. A família não estava voltada à realização de cada individuo dentro do próprio grupo, mas ao contrário, cada membro era visto como promotor dos interesses desta instituição. O bom funcionamento da família, a sua prosperidade, era de fundamental importância para o desenvolvimento do Estado”. (FERRARINI, 2010, p. 56).
Vê-se, assim, que o modelo familiar ibérico implantado no Brasil pelos portugueses configura um modelo monogâmico, patriarcal e transpessoal (no sentido de que o interesse familiar se sobrepunha à realização pessoal de cada indivíduo). Observa-se, ainda, o relevante papel do casamento, entendido como condição de poder e status social (revelado na consagrada expressão do “pertencer a uma família”), qualidade apreciada, sobretudo, no modelo social patrimonialista de supervalorização da propriedade – circunstância que bem se verifica quando da análise da famigerada “casa grande” dos senhores de engenho, espaço familiar que reunia sob a autoridade do patriarca o conjunto de filhos, mulher e escravos.
Nesse diapasão, pode-se dizer que o modelo elementar da família brasileira estabelecido no período colonial revela a submissão feminina às autoridades estatais, eclesiásticas e, de maneira mais intensa e próxima, ao controle do patriarca, à época, o único indivíduo que gozava de capacidade plena, uma vez que aos demais membros da família não eram conferidas as mesmas prerrogativas. Este condicionamento facilmente se depreende das palavras de Américo Martins da Silva: “O processo de adestramento das mulheres da Colônia começou com o Estado e a Igreja instituindo proibições de todos os tipos, determinando o que era “certo” e o que era “errado” para a mulher direita [...]. A campanha do “certo” e do “errado”, porém, era mais profunda. Basta ver que no Brasil de 1650 não existiam tabus como a virgindade obrigatória até o dia do casamento. Quebrado em tempos modernos, esse tabu ainda estava por nascer. Em 1600 e até o século XVIII, era difícil achar alguém que se casasse sem antes ter tido relações sexuais. Mas o motivo era bem diferente do atual. É que, naquela época, ter filhos era muito importante. A mulher precisava provar ao homem que era fértil, engravidando antes do compromisso, uma regra considerada por toda a comunidade – inclusive pela Igreja, desde que tudo terminasse em casamento.” (SILVA, 1996, apud FACHIN, 2011, p. 27-8).
Ademais, o predomínio masculino encontrava amparo na insuficiente participação do governo português, que, em não se fazendo presente, permitia ao patriarca assumir a posição de chefe da sociedade, como ensina Ferrarini: “O poderio patriarcal ganhou espaço na estrutura do Brasil Colônia, onde o governo português não se fazia representar de forma satisfatória. Assim, na ausência de um Estado forte, os proprietários de terras foram tomando os espaços e detendo o poder. Essa família patriarcal, baseada na autoridade masculina, estendeu-se por toda a sociedade brasileira, centralizada no senhor de engenho nos primeiros séculos, e depois nos políticos.” (FERRARINI, 2010, p. 58).
Portanto, no regime econômico colonial a supervalorização da propriedade privada impunha um abismo entre o sistema jurídico português e as relações estabelecidas na Colônia. Exemplo disso é a centralização do poder revelada no regime monopolista de exploração do trabalho e distribuição de terras – execrável modelo patrimonialista que, fatalmente, exercia influência nas relações familiares, dando azo a uma estrutura social marcada pela discriminação e divisão de classes; cenário em que, de um lado, encontravam-se os livres e abastados, e, de outro, os negros, índios e mulheres, submetidos aos desmandos da autoridade patriarcal (FACHIN, 2010).
Nessa perspectiva, o individualismo liberal conduziu a Colônia à violenta exploração dos indígenas e, posteriormente, dos negros e escravos. De se observar, nesse passo, que o tardio escravismo implantado no Brasil Colônia, evidente involução da sociedade ocidental em plena Idade Moderna, redundou noutras práticas igualmente reprováveis, tais como a violenta posse sexual de índias e negras, utilizadas como válvula de escape da libido masculina, promovendo, assim, a humilhação do gênero feminino, tanto em virtude do aviltamento da dignidade das escravas violentadas, quanto em razão do desrespeito às esposas, comumente subjugadas e passivas diante da infidelidade masculina.
Somente no século XIX a abolição da escravatura promoveu alteração nesse quadro de opressão, imprimindo mudanças também no modelo familiar em face da crescente migração de estrangeiros, movidos pelo propósito de compor a mão de obra a ser empregada na lavoura, ocupando o espaço antes destinado ao trabalhador escravo.
Ainda no que diz respeito ao modelo familiar inicialmente implantado nas terras brasileiras, conforme mencionado até aqui, em razão da colonização portuguesa, pautada no Direito Canônico, a família colonial foi fundada mediante preceitos da Igreja Católica, amplamente observados no texto das Ordenações Filipinas. Nesse contexto, verifica-se que muitos dos dogmas religiosos, entre eles a sacralização do matrimônio, não encontraram resistência por parte dos abastados membros da colônia, porquanto suas aspirações patrimonialistas faziam com que bem aceitassem a imposição do casamento e o repúdio às relações de concubinato, a fim de que lhes fosse assegurada a justa transmissão da propriedade por herança (FACHIN, 2001).
Dessarte, o único modelo familiar reconhecido à época era aquele formado por meio do casamento, fosse solenemente, nos moldes da Igreja, fosse pela união nominada “marido conhecido”, celebrada na presença de testemunhas, mas sem a intervenção eclesiástica – esta última modalidade não reconhecida pelo Direito Canônico, muito embora prevista pelas Ordenações.
Nesse sentido, Maria Berenice Dias aponta as características do modelo familiar estabelecido nesse período: “Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal.” (DIAS, 2009, p. 28).
Pois bem, sob outro enfoque, insta observar que a recorrente menção aos textos normativos originados em Portugal mostra que enquanto o Brasil se manteve na condição de Colônia Portuguesa não houve significativas alterações no modelo familiar local; em verdade, sequer foi observada alteração imediata no ordenamento jurídico pátrio quando da Independência do Brasil, em 1822. De modo que as disposições relativas ao Direito de Família constantes das Ordenações Filipinas preservaram sua vigência também no período Imperial.
Nessa linha, a Carta Imperial de 1824 foi igualmente omissa no que diz respeito ao Direito de Família, havendo, entretanto, importante referência ao catolicismo como religião oficial do Império.
Posteriormente, em 1890, a Igreja Católica Apostólica Romana foi despojada de seu poder e influência sobre a regulamentação do casamento em face do Decreto nº 181, de autoria de Rui Barbosa, que disciplinava o casamento civil, fazendo dele a única forma de constituição da família reconhecida pelo Estado – secularização que segue o rumo trilhado na Europa quando da Revolução Francesa (1789) e da promulgação do Código de Napoleão (o Code Civil dos franceses, de 1804), responsáveis em grande parte pelo prejuízo da autoridade eclesiástica.
O abatimento da autoridade da Igreja sobre o casamento no período Republicano é assim retratado por Semy Glanz: “Como se sabe, no Império brasileiro só era reconhecido o casamento religioso. A maioria da população de religião católica casava-se perante a Igreja. Com a proclamação da República, introduziu-se o casamento civil em 1890. A Constituição de 1891 também disse que o casamento era civil e gratuito. Mas pelos costumes, muitos continuaram casando perante a Igreja e descobriram, passados vários anos, que, não sendo o seu casamento civil, não eram casados.” (GLANZ, 2005, p. 163).
Como se pode observar, após a Proclamação da República foi instituído o casamento civil, a partir de quando o Estado deixou de reconhecer as famílias constituídas por uniões de fato, bem como aquelas fundadas exclusivamente por meio de celebração religiosa, evidenciando-se, assim, o moderno interesse estatal em promover o afastamento entre Igreja e família - muito embora o novo modelo de instituição da família, através do casamento civil, ainda fosse sensível a preceitos tipicamente católicos, como a indissolubilidade do vínculo e o estigma lançado sobre as relações havidas fora casamento.
A respeito da controversa manutenção da influência religiosa no casamento civil, a lição de Orlando Gomes: “A autoridade do direito canônico em matéria de casamento foi conservada até a lei de 1890, que instituiu o casamento civil. A despeito de rechaçada, continuou a exercer, indiretamente, grande influência. A lei civil reproduziu várias regras de direito canônico e algumas instituições eclesiásticas se transformaram em instituições seculares, tal como ocorreu, de regra, nos países católicos. Sob influência religiosa, por exemplo, mantem-se o principio da indissolubilidade do vinculo matrimonial, adotando-se o desquite como forma de dissolução da sociedade conjugal.” (GOMES apud FACHIN, 2001, p.37).
Verifica-se, portanto, que os acontecimentos políticos dessa época, tais como a Proclamação da República e a abolição da escravatura, promoveram o desenvolvimento urbano que, aos poucos, imprimia novos traços no modelo familiar patriarcal.
Nesse sentido, o surgimento e a ampliação da atividade industrial foram responsáveis pela criação de muitos empregos no Brasil, abrindo vagas no mercado de trabalho inclusive para mulheres; fato que, mais adiante, daria origem à luta pela igualdade entre os sexos, uma vez que a inserção da mulher no mercado de trabalho tornava-lhe capaz de cumprir deveres tipicamente masculinos, a exemplo da contribuição com as despesas domésticas, de modo que lhes fosse razoável sustentar a tese da equiparação não apenas no tocante às obrigações, como também em relação aos direitos.
Entretanto, a transição da sociedade agrária patriarcal para a realidade urbana, vinculada à industrialização, ao comércio e à busca por emprego, que possibilitasse uma melhoria de vida, deu-se de forma traumática, sem nenhum preparo cultural (FACHIN, 2001). Assim, pode-se dizer que o nascimento da família moderna não logrou romper de imediato com o modelo patriarcal da família brasileira.
Com efeito, foi sob os influxos desse abalado modelo familiar patriarcal, “recalcitrantemente” na luta para conservar seu poder político e econômico, que veio à luz, em 1º de janeiro de 1916, o Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071/16). A concepção do Código seguia a tendência de sistematização codificadora do século XIX e indicava que o legislador brasileiro, por fim, havia concretizado o elevado propósito de substituir a legislação portuguesa, vigente por meio das perenes Ordenações Filipinas desde 1603.
Nessa esteira, verifica-se que o Código Civil projetado por Clóvis Beviláqua não ousou inaugurar a construção de uma identidade nacional; antes, se ateve a velhos dogmas do Direito Português, não abrindo espaço para a constituição da família por outras formas além do casamento civil; de modo que as uniões de fato, culturais e historicamente presentes em todas as épocas do Brasil, não foram regulamentadas pelo Código, que, ao contrário, reafirmou a imperatividade do casamento civil e estabeleceu uma série de limitações recriminando as relações de companheirismo/concubinato.
Quanto às particularidades do modelo familiar implantado por este Código, merecem destaque as palavras de seu idealizador, Clóvis Beviláqua: “No inicio do Século XX, quando entrou em vigor o Código Civil em 1916, havia uma preocupação em consolidar o casamento como única forma de constituição de uma família, não se admitindo mais sequer o casamento religioso, e houve então um brutal rigor contra o concubinato e todas as uniões livres, de forma tal que até os filhos gerados nessas condições recebiam qualificação jurídica depreciativa (eram chamados legalmente de filhos naturais ou, se um dos pais fosse casado, seria espúrio, isto é, adulterino).” (BEVILÁQUA apud CHAVES, in WELTER, 2004, p. 376).
Deste modo, ainda que louvável o advento de um diploma normativo pátrio, não se pode olvidar que o regramento civil de 1916, com pequenas alterações, deu continuidade ao histórico domínio do patriarcalismo, conferindo acentuado prestígio às garantias concernentes à propriedade e, assim, menosprezando valores de caráter mais elevado, como a igualdade e a dignidade da pessoa humana.
Esse contrassenso, revelado na defesa de interesses econômicos paralelos aos resquícios do antigo Direito Canônico, é explicitado por Semy Glanz, quando da análise das modificações nas relações de parentesco para fins sucessórios, nos seguintes termos: “O código Civil de 1916 admitia o parentesco e a sucessão até o sexto grau na linha colateral. Houve um caso de enriquecimento ilícito por estrangeiro, que morreu, deixando bens a sobrinhos. Ora, os bens se transmitiam com a morte. Mas o então Governo Provisório, que governava e legislava ditatorialmente, editou um Decreto-lei, pelo qual, reduziu os parentes colaterais sucessíveis até o segundo grau (irmãos), dando-lhe efeito retroativo. Com isto, afastara os sobrinhos (terceiro grau). Tempos depois, alguém reclamou porque entendia que os sobrinhos deveriam herdar e a lei foi alterada. Mais tarde, já com outro presidente provisório, a sucessão foi aumentada para o quarto grau colateral e assim permanece até hoje.” (GLANZ, 2005, p. 123).
Verifica-se, portanto, que quando do advento do primeiro Código Civil vigorava no Brasil um modelo de sociedade extremamente individualista, em que os interesses privados prevaleciam sobre o interesse público; logicamente, os costumes dessa fase liberal do Direito Civil refletiram nos traços da família daquela época, destacando-se, aqui, a discriminação e a exclusão contra as quais as mulheres tiveram que lutar no início do século XX – período em que se deu a insurgência de sua atividade profissional na indústria e a transição da sociedade agrária à urbana. Cenário descrito por Rosana Fachin da seguinte maneira: “No curso do século XX as conquistas femininas gradativamente evoluíram com sua inserção no campo do trabalho, fora do lar. No início do século, ainda e mais do que nunca, encontrava-se sob a égide do marido, sob sua proteção e seu comando, assegurado explicitamente na legislação da época. À medida que aufere sua libertação econômica, a mulher passa a ser sujeito de sua própria história, e como tal a família se modifica engendrando um tempo diverso. Nessa fase, o trabalho da mulher estava relegado à autorização de seu marido e só era justificado conforme os padrões do momento histórico se houvesse necessidade de auxílio no orçamento caseiro.” (FACHIN, 2001, p.52-3).
Nessa toada, há de se notar que, a despeito da bem sucedida conquista feminina de espaço no mercado de trabalho, a herança da sociedade patriarcal ainda impunha reservas à liberdade da mulher casada, a quem competia, em primeiro plano, a administração da casa e a educação dos filhos.
Esse contexto de desigualdade entre os sexos corrobora a tese de que o modelo familiar estabelecido pelo Código Civil desde logo se ressentia da inadequação social, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, acontecimento histórico que redundou na redemocratização mundial – inaugurando a era do constitucionalismo que marcou a transição do Estado Liberal[4] para o Estado Social[5] e contribuiu diretamente para a ruptura do modelo familiar clássico, conforme ilustrado por Ferrarini: “Nessa dimensão vai surgindo uma leitura diferenciada do Direito Privado, com ampla reforma da concepção do Direito Civil. Paulatinamente, a partir da interferência de normas de ordem pública no campo privado, o Direito Civil passa por transformações ao mesmo tempo em que se assiste a passagem do Estado Liberal para o Estado Social.” (FERRARINI, 2010, p.64).
No mesmo sentido, Guilherme Calmon Nogueira da Gama destaca que a fase liberal do Direito Civil foi interrompida em meados do século XX pela publicização do Direito Privado, fenômeno que promoveu a releitura do Direito Civil com base nas normas constitucionais e na tutela da dignidade da pessoa humana como princípio e fundamento da nação, superior a qualquer estimativa econômica ou patrimonial (GAMA, 2008, p. 164).
Dessarte, a profunda alteração nos costumes e o impacto dos valores constitucionais sobre o Direito Civil promoveram a reforma da concepção familiar, que gradativamente foi sendo redesenhada com base na valorização do ser humano, em oposição ao individualismo e à valorização da propriedade privada.
É evidente, no entanto, que o Código Civil de 1916, de feições Liberais e patriarcais, avessas à valorização da pessoa humana, não correspondia aos influxos de seu tempo, motivo pelo qual foi paulatinamente sofrendo consideráveis alterações.
Cumpre notar que esse cenário de reforma foi palco para a pressão social no sentido de que o ordenamento jurídico prestigiasse as classes economicamente mais frágeis e, sobretudo, regulamentasse situações de fato, das quais emanavam consequências jurídicas, mas que vinham sendo ignoradas formalmente pelo legislador – tais como as relações concubinárias e o divórcio.
Nesse sentido, verifica-se que já nas décadas de 40 e 60 surgiram propostas de alteração no Código Civil; merecendo destaque o Anteprojeto de Código Civil de 1963, da lavra de Orlando Gomes, que à época já continha um capítulo destinado aos efeitos jurídicos das relações de concubinato, propondo-se a regulamentar a sucessão da companheira de homem solteiro, desquitado ou viúvo, mediante condições como prazo de convivência ou existência de filhos em comum (AZEVEDO, 2011). No entanto, em que pese a excelência da proposta, em 1964 o Projeto Orlando Gomes foi retirado do Congresso em virtude de questões políticas, características do período da ditadura militar (GAMA, 2008).
De qualquer sorte, a ausência de regulamentação não tinha o condão de reprimir os “avanços” sociais, de modo que aumentava o número de relações concubinárias, sobretudo porque, lamentavelmente, os casamentos eram indissolúveis apenas no papel; no plano dos fatos, as pessoas continuavam rompendo a convivência com os cônjuges e procuravam novos parceiros, com quem constituíam novos núcleos familiares, que o ordenamento jurídico, recalcitrante, não reconhecia e não emprestava efeitos protetivos (CHAVES, in WELTER, 2004, p.392).
Assim, o crescente número de rompimentos conjugais seguidos do estabelecimento de relações concubinárias demandava, com urgência, uma resposta estatal regulamentando os efeitos jurídicos desses arranjos. Solução que adveio, em um primeiro momento, por meio da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal[6], que conferia à concubina a participação no patrimônio adquirido pelo esforço comum, conforme esclarecido por Marilena Silveira Guimarães: “O código civil de 1916 apenas reconhecia a união formada pelo casamento civil, introduzido no Brasil em 1891, e as relações extramatrimoniais eram denominadas de concubinato, somente referidas na lei para afastar direitos. Foi a jurisprudência que a partir da aceitação do fato social e para evitar o enriquecimento sem causa passou a conceder direitos aos integrantes das relações não formalizadas pelo casamento, considerando o patrimônio de tais uniões como sociedade de fato, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal através da Súmula 380, de 1963. Além da súmula, inúmeras foram as disposições legais que passaram a garantir algum direito às uniões fora do casamento”. (GUIMARÃES, in WELTER, 2004, p. 301).
Com efeito, no tocante à regulamentação do divórcio, somente quando Ernesto Geisel, gaúcho de Bento Gonçalves, com formação Luterana, assumiu a Presidência da República é que foi possível o efetivo enfrentamento da Igreja Católica e o prometido rompimento do dogma da indissolubilidade do matrimônio por meio da Emenda Constitucional nº 9, de 1977, que facultava o divórcio aos casais desavindos que não conseguissem mais se reconciliar. Nesse sentido, leciona Semy Glanz: “Com a emenda constitucional de 1977, que introduziu o divórcio no país, alterou-se a situação. Os casais em que um ou ambos fossem separados de fato ou de direito, poderiam obter o divórcio a vínculo, ou seja, romper o vínculo matrimonial, portanto, casar de novo. Mas a maioria, salvo alguns de classe media e alta, não se aventurava a mover a ação judicial. As classes pobres, não podendo pagar despesas e advogados, embora já houvesse em muitas cidades a defensoria pública, não se interessavam pelo divórcio. Isto porque, bem ou mal, era necessária prova, e uma demanda é sempre difícil. Antes do surgimento do divórcio, encontrava-se na legislação o desquite, única modalidade de separação que, no entanto, impedia novo casamento, sendo as novas uniões taxadas de concubinato – vedado e punido pelo CC de 16”. (GLANZ, 2005, p. 166).
Finalmente, em face dos argumentos até aqui expendidos, percebe-se o quão ricas foram as alterações legislativas refletidas no modelo familiar brasileiro, sobretudo após a Proclamação da República; nesse passo, resta ainda analisar o mais importante marco legislativo na história do Direito de Família pátrio, revelado pela Constituição Federal de 1988, que rompeu definitivamente o modelo patriarcal e patrimonialista consagrado no Código Civil de 1916.
No entanto, em vista da proeminência dos valores jurídicos concretizados pela Lei Maior, a análise da publicização do Direito de Família será promovida no tópico seguinte, que contextualiza a ampliação do conceito de família por meio do estudo da evolução do concubinato à união estável – a partir de então, consagrada constitucionalmente –, trazendo à luz a questão do afeto como valor jurídico, bem como, o moderno conceito de pluralidade familiar.