Resumo: O presente artigo desenvolve criteriosa análise histórica das relações sociais que deram origem à família, desvendando a trajetória jurídica do fenômeno familiar no ordenamento pátrio. O ensaio conduz à conclusão no sentido de que as novas demandas características da sociedade contemporânea impõem a construção de um direito de família moderno e funcional, vigilante sobre os direitos fundamentais, demonstrando, ao fim, que, a despeito das constantes e esvaziadas críticas no sentido de que a família apresenta-se hoje como um instituto decaído, esta acompanhou as transformações sociais, preservando a sua essencialidade, funcionando em favor da conservação e da evolução do homem, da sociedade e do Estado, e operando, além disso, como faina que mantém acesa a chama da ciência jurídica, colocando-a em constante processo de mutação e aperfeiçoamento.
Palavras-chave: Família, evolução legislativa, pluralidade.
Sumário: Introdução. 1. A origem dos laços afetivos e a evolução do conceito familiar. 2. A evolução legislativa do instituto na estrutura organizacional brasileira. 3. A moderna concepção familiar pautada nos valores constitucionais do afeto e da pluralidade. Conclusão.
Abstract: This paper develops careful historical analysis of the social relations that gave rise to the family, unraveling the legal trajectory of the familiar phenomenon in paternal land. The test leads to the conclusion in the sense that the new features of contemporary society demands require the construction of a right of modern, functional family, vigilant on fundamental rights, demonstrating, to the end that despite the constant criticism and emptied towards that the family is presented today as a fallen institute, this followed the social transformations while preserving its essence, working in favor of conservation and the evolution of man, society and the state, and operating, moreover, as drudgery that keeps the flame of legal science, putting it in a constant process of change and improvement.
Keywords: Family, legislative developments, plurality.
Introdução
Conforme lições de Fachin, “a família antecede, sucede e transcende o jurídico. Está antes do Direito e nas entrelinhas do sistema jurídico” (FACHIN, 1999, apud FERRARINI, 2010, p. 60).
Deste modo, partindo-se do princípio de que a família é uma realidade histórica a cujo estudo se dedica não apenas a ciência do direito, mas todos os ramos das ciências humanas, e visando a ampla compreensão de como se deu, originariamente, a apreensão jurídica deste instituto, faz-se necessário o resgate de suas transformações ao longo dos tempos, acompanhando as mudanças imprimidas pela crescente influência da Igreja, bem como as variações do contexto cultural no qual as famílias se encontravam inseridas.
Entretanto, em que pese o valor instigante do resgate histórico, no tópico inicial buscar-se-á apontar apenas as etapas indispensáveis à compreensão da família nos moldes em que se apresenta hoje em dia; isto é, no primeiro capítulo far-se-á breve abordagem histórico-filosófica da origem dos laços sociais do homem no chamado “estado de natureza”, passando-se à análise da família patriarcal romana, importante referência para o modelo familiar brasileiro. A partir daí, o estudo da família evolui para a apreensão que lhe foi atribuída no modelo Canônico – retratando a franca expansão do cristianismo, que contribuiu para a queda do Império Romano do Ocidente e inaugurou a Idade Média –, até chegar-se à Idade Moderna, com a queda do Império Romano do Oriente (Bizantino) e a consequente interrupção do comércio entre Europa e Ásia – circunstância que fomentou o período das grandes navegações, culminando no descobrimento do Brasil.
Nessa linha, o segundo item direciona o estudo ao modelo familiar instaurado pela Coroa Portuguesa no Brasil Colônia; ver-se-á, assim, que o modelo português, fortemente influenciado pelo catolicismo, religião oficial de Portugal, inspirou a elaboração do Código Civil de 1916. Nesse sentido, analisa-se, passo a passo, a evolução social da família brasileira até a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, responsável pela moderna transformação deste instituto através do novel conceito de pluralidade familiar.
Finalmente, o terceiro tópico de estudo busca ampliar o foco da família, tratando da pluralidade constitucional e contextualizando a dispersão dos laços afetivos através do estudo da trajetória do concubinato à união estável.
1. A origem dos laços afetivos e a evolução do conceito familiar
Conforme observado por Maria Berenice Dias, ao longo da história tanto o Estado como a Igreja buscaram meios para se apropriar do fenômeno familiar: a Igreja sacralizou o casamento, atribuindo-lhe função reprodutiva; o Estado, por sua vez, institucionalizou a família, visando com isso o conveniente fortalecimento estatal (DIAS, 2001).
Entretanto, em que pesem as restritivas interpretações de ordem política e religiosa, as relações pessoais que dão origem à família são um fenômeno social, um fato natural observado independentemente da qualificação atribuída pelo direito e pela religião. Nesse sentido, as precisas ponderações de Virgílio de Sá Pereira: “Agora, dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto de seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com a sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isso? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural. De tudo que acabo de dizer-vos, uma verdade resulta: soberano não é o legislador, soberana é a vida. [...] A família é um fato natural, o casamento é uma convenção social. A convenção é estreita para o fato, e este então se produz fora da convenção. O homem quer obedecer ao legislador, mas não pode desobedecer à natureza, e por toda a parte ele constitui a família, dentro da lei, se é possível, fora da lei, se é necessário.”. (PEREIRA, 1959, p. 89)
Por esta razão, a família deve ser considerada um grupo espontâneo de pessoas, uma realidade viva que ultrapassa sua acepção de caráter institucional e sacramental.
No entanto, sabe-se que eventual análise da família a partir dos conceitos jurídicos modernamente estabelecidos seguramente padeceria de influências político-religiosas, motivo pelo qual cumpre que se faça um resgate mais apurado das origens das relações humanas, a fim de que se possa situar e conceituar, de maneira isenta, o fenômeno familiar, reconstruindo-se a linha do tempo que registra a sua formação efetiva, bem como a sua afirmação, em sentido humano, como modelo ideal de convívio social.
Nesse contexto, conforme brilhantemente desvendado por Engels no célebre estudo sobre as origens da família, da propriedade privada e do Estado, desde o início da vida humana as relações dos homens entre si e com os seus bens vêm sofrendo alterações e operando transformações estruturais na sociedade (ENGELS,1984). Assim, nos termos do materialismo-histórico-dialético do pensador alemão, o estudo de diferentes momentos históricos revela não apenas as mudanças sofridas pela produção material, mas também alterações na dinâmica, no funcionamento e na função social da família.
A par dessas informações, cumpre observar que o estudo da natureza das relações humanas revela um estágio primitivo em que os agrupamentos humanos não tinham regras que disciplinassem a conivência. Na “horda”, preconizada por Paulo Nader, o instinto se sobrepunha à razão dos povos nômades primitivos; havia a aproximação entre o homem e a mulher somente com o intuito do acasalamento, originando as relações sexuais promiscuas e indiscriminadas (NADER, 2000).
Nesse sentido, esclarece Shilling: “[...] devido à inerente promiscuidade sexual, que se supunha dominar o comportamento das comunidades primitivas, onde imperava um acasalamento circunstancial, imediato, sem regras ou compromissos estabelecidos, as mulheres, que tinham inúmeros parceiros, eram as únicas a poderem determinar com certeza de quem eram os filhos. Nesse sistema, os homens eram apenas machos reprodutores que não mantinham nenhum vínculo afetivo ou responsável com os recém-nascidos” (SHILLING apud DAL COL, 2002, p. 13)
Como se verifica, nessa fase pré-histórica a noção de família é muito distante da concepção moderna; além da ausência do direito, também ainda não se havia desenvolvido entre os povos primitivos o senso de justiça social, prevalecendo, assim, a vontade do mais forte nas constantes batalhas travadas em busca de alimento e na fuga de seus predadores.
Em suma, apenas em um segundo momento os seres humanos começaram a se reunir em grupos, formando tribos e buscando uma maneira mais segura de vida.
Retornando à exposição do processo evolutivo familiar desenvolvido por Engels, o consagrado pensador alemão destaca a existência de três estágios fundamentais da evolução humana, a saber, o Estado Selvagem, a Barbárie e a Civilização, e relata, passo a passo, o correspondente modelo familiar adotado em cada período (ENGELS, 1984).
Sob essa perspectiva, Engels discorre acerca do Estado Selvagem, a chamada infância do gênero humano, apontando que nesse estágio inicial os homens sobreviviam por meio da apropriação dos produtos obtidos da natureza por meio da caça e da pesca; eram nômades, movidos pelo instinto de reprodução e preservação da vida.
Especula-se que nesse estágio se teriam desenvolvido as primeiras células familiares: as famílias consanguíneas e os matrimônios por grupos; modelos familiares constituídos mediante a promiscuidade sexual, caracterizados pela existência de grupos conjugais distribuídos por gerações, de modo que avós e avôs seriam marido e mulher entre si, assim como os filhos e filhas, netos e netas, primos... Excluindo-se do alcance das relações sexuais recíprocas apenas ascendentes e descendentes.
Avançando-se no estudo da evolução humana, chega-se à chamada Barbárie, período em que se desenvolveu o incremento da natureza com o auxílio do trabalho humano, tanto por meio da domesticação de animais, quanto pelo surgimento da agricultura – frise-se, por oportuno, que, conforme se verá adiante, estas descobertas foram responsáveis por significativas alterações no modelo familiar.
Nessa toada, destaca-se o surgimento de um terceiro modelo familiar, a Família Punaluana; espécie que excluía das relações conjugais ascendentes e descentes, bem como irmãos e irmãs; daí o surgimento, nesse período, de uma raça mais forte física e mentalmente, capaz de imprimir celeridade ao processo de desenvolvimento das sociedades humanas.
Este modelo familiar é explicado por Engels nos seguintes termos:”[...] certo número de irmãs carnais ou mais afastadas eram mulheres comuns de seus maridos comuns, dos quais ficavam excluídos, entretanto, seus próprios irmãos. Esses maridos, por sua parte, não se chamavam entre si de irmãos, pois já não tinha necessidade de sê-lo, mas “punalua”, quer dizer, companheiro íntimo, como quem diz “associé”. De igual modo, uma série de irmãos, uterinos ou mais afastados, tinham em casamento comum certo número de mulheres, com exclusão de suas próprias irmãs, e essas mulheres chamavam-se entre si “punalua”.”(ENGELS, 1984, p.40)
Assim, em virtude da promiscuidade remanescente dos tempos de selvageria e da consequente impossibilidade de que se determinasse com precisão a descendência paterna de cada filho, a família punaluana continuou reconhecendo exclusivamente a filiação materna.
Ademais, observa-se que ainda no período da Barbárie, as relações humanas evoluíram dando origem à chamada Família Sindiásmica; modelo no qual se estabeleceu a proibição do matrimônio entre parentes consanguíneos – circunstância que novamente contribuiu para o surgimento de tribos geneticamente mais fortes. Além disso, outra referência deste modelo familiar consiste na cultura de que o homem vivesse com uma única mulher, sendo-lhe cobrada a rigorosa fidelidade ao marido no período em que persistisse a vida em comum, enquanto, por outro lado, era garantido ao homem o direito à poligamia e à infidelidade ocasional (ENGELS, 1984).
Arthur Wright, citado por Engels, descreve a situação da mulher no matrimônio Sindiásmico da seguinte maneira: “Habitualmente as mulheres mandavam na casa: as provisões eram comuns, mas ai do pobre do marido ou amante que fosse preguiçoso para trazer a sua parte ao fundo de provisões da comunidade! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era inútil opor resistência, porque a casa se convertia para ele num inferno; não havia remédio senão voltar para o seu próprio clã, ou, como costumava acontecer com frequência, contrair novo matrimônio em outro.” (WRIGHT apud ENGELS, 1984, p. 51)
Em face dessas considerações, nota-se que no período em questão ainda havia resquícios do predomínio feminino, amparado pelo anterior modelo de sociedade matriarcal, que assegurava às mulheres o controle social, sobretudo em função da capacidade reprodutiva e dos irrefutáveis laços de filiação estabelecidos com seus descendentes.
Entretanto, o aumento das riquezas no período da Barbárie imprimiu, gradativamente, importantes mudanças na ordem social. Entre elas o aclamado surgimento da família patriarcal; clássico modelo familiar que atribui ao homem a liderança do grupo, quebrando a filiação pela linha feminina e promovendo uma série de avanços que conduziram os humanos da Barbárie à Civilização.
Deste modo, conforme apontado anteriormente, ainda no período da Barbárie o homem havia se apoderado de alguns recursos da natureza, domesticando animais e desenvolvendo técnicas de plantio que solucionaram o problema diário de busca por limentos. Com isso, aos poucos o homem foi abandonando o nomadismo e procurando fixar-se a um só lugar – ver-se-á, mais adiante, que este apoderamento da terra deu origem à propriedade privada, embrião da monogâmica família patriarcal que estabeleceu a supremacia do homem sobre a mulher.
Nessa linha, superado o estágio da Barbárie, inaugura-se o estágio da Civilização, grande inovação desse período histórico, cujos traços principais residem na sobreposição da propriedade privada à coletiva e no fortalecimento da família patriarcal monogâmica.
Acerca da monogamia, Engels assevera que esta surge como decorrência da concentração de riquezas nas mesmas mãos e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro. E, adiante, complementa: “[...] com o surgimento do costume do cercamento e da delimitação das terras, adotadas pelos homens vitoriosos em combates e guerras, os machos passaram a exigir a fidelidade sexual das mulheres porque não aceitavam ter de legar os seus bens, obtidos com sangue e pela exploração do próximo, a um descendente que não fosse seu filho legitimo, gente do seu próprio sangue.” (ENGELS, 1984, p.60)
Por essa perspectiva, pode-se dizer que a origem da família monogâmica está bem distante dos motivos líricos que inspiraram o famigerado amor romântico, acomodando-se melhor aos interesses patrimoniais masculinos de preservação dos bens.
Note-se, aqui, que de acordo com o pensamento jusnaturalista essa mesma preocupação com a preservação da propriedade é igualmente responsável, ao lado da conservação da vida e da liberdade, pelo surgimento da ideia do Contrato Social[1], perspicaz arranjo humano que, implementado, deu origem ao Estado.
De qualquer sorte, a despeito dos motivos econômicos pautados na defesa da propriedade privada e do consequente aviltamento da mulher em face da facilitação da infidelidade masculina, o certo é que a família patriarcal monogâmica configura o modelo familiar civilizado que sucedeu a selvageria e a barbárie, atravessou os séculos e deixou como legado uma série de costumes.
Nesse sentido, embora já se tenha apontado aqui que a monogamia e a propriedade privada se desenvolveram de maneira relativamente simultânea, importa, ainda, observar a contemporaneidade de outro acontecimento de acentuado valor histórico, qual seja, a difusão das práticas escravistas - relações de subordinação impulsionadas pelo crescente domínio de territórios e pelo consequente aumento da demanda de mão de obra para ser empregada nos cuidados com a terra e, em caso de guerra, na defesa do território.
Conforme apontado por Engels “a existência de escravidão junto à monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao homem é o que imprime desde a origem um caráter especifico à monogamia – que é a monogamia só para a mulher, e não para o homem”. (ENGELS, 1984, p.67).
A partir dessas ideias, vê-se que o alargamento da monogamia em favor do gênero masculino deu origem à cultura do chamando Heterismo, odioso modelo de relações humanas opressoras do sexo feminino que bem exprime o antagonismo havido entre homens e mulheres unidos em relação monogâmica.
O Heterismo, assim descrito por Engels, caracteriza-se pela aberta prática de relações extraconjugais dos homens com escravas e mulheres não casadas; permissividade cujas consequências imediatas são a escravização de um sexo pelo outro e o surgimento da prostituição (ENGELS, 1984).
No tocante às origens da prostituição, atividade censurada pela grande maioria dos povos, merecem destaque as ilustrativas palavras de Engels: “A entrega do dinheiro foi, a princípio, um ato religioso: era praticada no templo da deusa do amor e, primitivamente, o dinheiro ia para as arcas do templo [...]. O sacrifício da entrega que, no início deveria ser de todas as mulheres, passou a ser exercido, mais tarde, apenas por essas sacerdotisas, em substituição a todas as demais.” (ENGELS, 1984, p.72).
Finalmente, impende observar que o desamparo da esposa, subjugada na sociedade patriarcal e, não raro, sexualmente preterida por seu marido em face da multiplicação das relações extraconjugais deste, deu azo à prática do adultério também pela mulher casada; acontecimento ironicamente desvendado por Engels: “Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes e características, até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido corneado. Os homens haviam conseguido vencer as mulheres, mas as vencidas se encarregaram, generosamente, de corar os vencedores. O adultério, proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social inevitável junto à monogamia e ao heterismo. No melhor dos casos, a certeza da paternidade baseava-se, agora, como antes, no convencimento moral.”(ENGELS, 1984, p.72).
Destarte, poder-se-ia dizer que foi desse contexto social, no qual a velada infidelidade feminina punha em risco a linha sucessória de seu cônjuge, que adveio a necessária presunção de paternidade dos filhos havidos na constância do casamento; recurso cujo intuito era o de impedir o questionamento acerca da legitimidade da prole, ainda que à custa da violação da verdade biológica.
Em suma, foi esse o modelo familiar patriarcal que se firmou e, com algumas alterações, atravessou os séculos, estendendo-se até o surgimento da civilização romana. Nesse passo, sem que se pretenda aqui discorrer amplamente sobre os três períodos da civilização romana (o da realeza, o republicano e o imperial), uma vez que, juntos, compreendem doze séculos de história, cumpre que se façam algumas importantes considerações acerca do modelo familiar desenvolvido pelos romanos.
De modo geral, tem-se que a família romana seguiu o modelo patriarcal correspondente ao estágio civilização; merecendo destaque, porém, alguns conceitos e costumes incrementados pelos romanos que repercutiram no Direito de muitos Estados, entre eles o Português, o qual, por sua vez, teve seu sistema jurídico e ideologia refletidos no Brasil Colônia.
Pois bem, a família patriarcal romana era composta pelo grupo de pessoas, patrimônio e escravos colocados sob o poder do pater famílias – ascendente comum mais velho que além de desempenhar o papel de chefe da família, exercendo o poder de vida e morte sobre mulher e filhos, também desempenhava as funções de juiz e líder religioso.
Nessa fase inicial existiam dois tipos de parentesco: o parentesco por agnação (agnatio), que resulta da sujeição ao mesmo pater, independentemente da vinculação consanguínea havida entre os membros da família – compreendendo, assim, a mulher, os filhos, ainda que ilegítimos ou adotados, bem como os demais indivíduos sujeitos ao mesmo pater; e o parentesco por cognação (cognatio), que representava o vínculo sanguíneo, baseado na filiação (DAL COL, 2002).
Nessa linha, há de se observar que no período antigo prevalecia entre os romanos o direito costumeiro, que andava lado a lado com a religião e valorizava sobremaneira a função reprodutiva da família.
Nesse sentido, seguem exemplos dos costumes, tais como aquele que impunha à esposa o dever de se entregar ao cunhado ou a outro parente próximo caso o seu marido fosse considerado impotente – circunstância que implicava o reconhecimento da prole como se houvesse sido concebida pela mulher e seu esposo; bem como o exemplo análogo observado quando do falecimento de homem casado que morrera sem deixar filhos, hipótese em que a viúva deveria se casar com o parente mais próximo de seu ex-marido, e o filho concebido desta união seria considerado filho do falecido (MARCELINO, 2007).
Tais costumes, previstos pela Lei das XII Tábuas[2] demonstram o elevado apreço das uniões conjugais na sociedade romana, bem como a valorização dos elementos de fato.
Com efeito, muito embora a sociedade romana tivesse como base o casamento, seus costumes admitiam semelhantes efeitos jurídicos às relações de concubinato[3], dispensando-se, em face da posse do estado de casado, as cerimônias religiosas, que serviam apenas para dar publicidade ao consenso dos nubentes em estabelecer a comunhão de vidas.
Nesse contexto, ganha destaque o valioso legado deixado pelos romanos traduzido na valorização da affectio maritalis et uxório, no sentido de que a vontade duradoura de estabelecer a comunhão assistencial enquanto durasse o matrimônio era o elemento mais importante do casamento, que, no mais das vezes, estabelecia-se sem apego aos formalismos e ao enquadramento jurídico, prevalecendo a concepção realística da plena comunhão de vida, de conhecimento público e animada pela recíproca afeição de serem marido e mulher (AZEVEDO, 2011).
Acerca de uma das tradições dos cidadãos da Roma Antiga, Fustel de Coulanges, citado por Dal Col, conta que no casamento romano a jovem devia ser conduzida até a casa do esposo para que este a tomasse nos braços, simulando o rapto, e a carregasse através da soleira da porta, sem que os pés da moça a tocassem. Depois, devia conduzi-la até o fogo doméstico e, juntos, comerem um bolo de farinha-flor, na presença e sob os olhos de Deus, a partir de quando estariam casados (COULANGES apud DAL COL, 2002, p.25).
Destarte, como restou afiançado por Max Kaser, o casamento romano não era uma relação jurídica, antes, consistia em um fato social produtor de efeitos jurídicos reflexos (KASER, 1968, apud AZEVEDO, 2011).
No tocante ao rompimento do vínculo conjugal, tem-se que a religião romana não era contrária ao divórcio, sendo, portanto, esta prática bastante difundida e aceita no período imperial romano – época em que além das hipóteses de adultério e infidelidade feminina, a simples “insuportabilidade” da vida em comum era considerada causa para que se autorizasse o rompimento do vínculo conjugal.
Como se vê, a não interferência do Estado nas relações familiares e a afeição conjugal consistem em importante herança da civilização romana, em oposição ao formalismo e ao intervencionismo que posteriormente seriam impostos pelo fortalecimento da Igreja Católica.
Mais adiante, com o imperador Constantino e o surgimento da concepção cristã de família, as relações na sociedade romana sofreram alterações que muito lhe aproximaram do modelo familiar adotado modernamente, que se restringe a um grupo de pessoas, não mais compreendendo, portanto, o patrimônio e o grupo de escravos.
Nesse sentido, ensinam Leon Henri e Jean Mazeud: “Com Constantino (no começo do século IV de nossa era), penetra lentamente na legislação romana uma nova concepção da família, sem conseguir, jamais, por outro lado, que desaparecessem completamente as regras antigas. É a concepção Cristã da família. Nela, a família forma um grupo, não é estendido como na família patriarcal, ao contrário, é restrito: não compreende senão o marido, a mulher e os filhos. Citando o Gênesis (II, 24), Cristo havia dito aos seus filhos: “o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher (São Mateus, XIX; São Marcos, X, 7). Por isso mesmo, este grupo tem uma coesão que havia perdido a família exageradamente vasta do direito romano. Essa coesão não tem fundamento a autoridade do marido, descansa sobre o sacramento do matrimônio.” (MAZEUD, 1956, apud RIZZARDO, 2009, p.11).
Ainda no que concerne ao advento do Cristianismo e sua adoção como religião oficial do Império Romano, são ilustrativas as palavras do professor Belmiro Pedro Welter, que assim articula: “Com desmembramento do Império Romano, em Ocidente e Oriente, a contar do século V, e com o decorrente desaparecimento de uma ordem secular estável, houve um deslocamento da autoridade e poder de Roma ao Chefe da Igreja Católica Romana, Esta, por sua vez, desenvolveu o direito canônico, estruturado num conjunto normativo dualista – laico e religioso – que irá se manter até o século XX. Como consequência, na Idade Média, o Direito, confundido com a Justiça, era ditado pela Igreja Católica, que, possuindo autoridade e poder, se dizia intérprete de Deus na terra.” (WELTER, 2004, p. 88; grifo do autor).
Assim, vê-se que, enquanto diminuta interferência Cristã entre os romanos, havia a possibilidade de que a família fosse constituída pelo concubinato, união contraída sem formalidades. Ocorre que a decadência econômica e política romana, decorrente na crise do escravismo (que levou à queda do Império Romano do Ocidente em 476 d.C.), abriu espaço para o avanço do Cristianismo, e a consequente interferência religiosa nos costumes, revelada pela sacralização do matrimônio e pelo estimulo à extinção do concubinato ou sua conversão em casamento, estabelecendo-se, para tanto, a distinção entre os filhos havidos em comum com a esposa e os nascidos da concubina.
Nesse contexto, observa-se que a queda do maior império do mundo marcou o início da Idade Média, período em que os costumes romanos foram paulatinamente transformados pelas normas do Direito Canônico, que se mantiveram durante a Idade Média como único direito escrito e influente em praticamente todas as áreas da sociedade.
Nesse diapasão, citam-se as palavras de Montesquieu na obra “Do espírito das leis”, ensaio no qual o filósofo iluminista alertava sobre o perigo de que a religião inspirasse aversão sobre as coisas diferentes, fazendo com que determinadas castas tivessem horror umas pelas outras, estabelecendo-se, com isso, distinções não formadas pela lei civil (MONTESQUIEU, 2006).
No âmbito das relações familiares, uma das principais alterações decorrentes da consolidação do cristianismo como doutrina hegemônica reside na sacralização do matrimônio, revelada pelo formalismo impregnado em sua celebração, pela ideia de indissolubilidade do vínculo conjugal e pelo repúdio às relações de concubinato.
Nesse sentido, o valioso juízo expresso nas palavras de Guilherme Calmon Nogueira da Gama: “De maneira bastante sutil, no decorrer da historia, a igreja passa a disciplinar o casamento com base nos valores éticos e jurídicos. No curso dos séculos, paulatinamente, um dos temas mais tratados pela Igreja foi justamente a família, e em especial, o casamento (denominado de matrimônio, para o Direito canônico). Assim, o matrimônio passou a ser considerado um sacramento, tal como o batismo, a comunhão, a penitência, a extrema-unção. [...] A partir de tal época e com base nos argumentos e dogmas instituídos sobre o tema, a Igreja Católica passou a considerar que, sendo o matrimônio um sacramento e sujeito a indissolubilidade, todas as demais uniões entre homem e mulher fora do casamento eram uniões instáveis e precárias, passíveis de pronta dissolução, apresentando-se como mero concubinato e, assim, desqualificado.” (GAMA, 2008, p.153).
Ademais, um olhar crítico sobre as alterações promovidas pelo Cristianismo nos costumes familiares da época revela, ainda, a tendência ao apoderamento, por parte da Igreja, das riquezas produzidas pela família; intenção retratada com propriedade na análise sociológica promovida por Semy Glanz: “Ao longo dos séculos a Igreja acabou alterando as regras, afastando-se do judaísmo e das leis romanas [...]. Proibindo o concubinato, o divórcio e a adoção, a Igreja dificultou aos homens casados arranjar herdeiro fora da família, e a riqueza foi passando para a Igreja, em prejuízo dos municípios, especialmente com a riqueza das famílias aristocráticas, permitindo construir igrejas e abadias, enquanto decaíam os teatros e fóruns. Através das mulheres, o Cristianismo transformou as famílias, permitindo que as viúvas não voltassem a casar-se e com isto deixassem as propriedades à Igreja.” (GLANZ, 2005, p. 182).
Em virtude desse rigor eclesiástico, no período compreendido entre o século XIV e início do XV, despontaram inúmeros conflitos entre o Estado e a Igreja. Embate fomentado pela expansão da doutrina protestante, flagrantemente contrária aos rigorosos desmandos papais.
Inaugurava-se, assim, o processo de laicização do poder político e do Direito de Família, movimento que se alastrou pelo mundo, rompendo os ciclos de poder da Igreja e afastando, pelo menos em tese, a ciência jurídica dos dogmas religiosos; repercutindo, ainda, em outros setores da atividade humana, tais como ciência, tecnologia e literatura.
Nesse sentido, ainda que se possam apontar resquícios do Direito Eclesiástico em todos os períodos subsequentes, é de se reconhecer que o Estado secular (laico) começou a dar sinais de seu afastamento das normas de Direito Canônico, sustentando ser de sua competência a regulamentação dos atos da vida civil, entre os quais se encontrava o casamento, que, a partir de então, não mais se revestiria de caráter sacramental, podendo, por bem, ser realizado no âmbito civil ou religioso, conforme melhor aprouvesse aos cônjuges.
Entretanto, em resposta ao protestantismo e ao movimento de secularização (laicização) do Direito de Família, a Igreja Católica contra-atacou, reunindo seus membros e autoridades para a realização do Concílio de Trento. Reação que pretendia ditar os rumos do Direito de Família, reafirmando antigos dogmas da Igreja Católica, tais como o sacramento do matrimônio e a condenação do concubinato em qualquer de suas formas.
Este contragolpe da Igreja foi explicado por Dal Col nos seguintes termos: “A resposta da igreja dominante contra estas posturas reformistas veio incisiva no Concílio de Trento (1542-1563), que reafirmou solenemente o caráter sacramental do casamento, reconhecendo a competência exclusiva da Igreja e das autoridades Eclesiásticas em tudo que se relacionava ao casamento, sua celebração e a declaração de sua nulidade. Caracterizou- se, ainda, o casamento como ato solene, devendo ser precedido de publicidade e só se permitindo a coabitação dos nubentes após terem recebido a benção nupcial.” (DAL COL, 2002, p. 30).
Destaque-se, por fim, que o Concílio de Trento influenciou as bases do Direito de Família de quase todos os países católicos do mundo, entre eles, Portugal.
À vista desses argumentos, embora no presente estudo não se tenha esgotado a análise histórica da instituição familiar no período da civilização, pretendeu-se, fundamentalmente, conduzir o exame da família até o período em que se deu o Concílio de Trento, uma vez que este evento representa um importante marco normativo em matéria de Direito de Família. De modo que, a partir daí, o estudo possa evoluir para a análise legislativa do instituto familiar no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse diapasão, importa destacar que a aceitação do alcance das normas estabelecidas pelo Concílio de Trento no conceito familiar implantado no Brasil pressupõe a compreensão de que nesse panorama já se havia dado a queda do Império Romano do Oriente (dominado pelos turcos-otomanos em 1453), que marcou o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna – período de transformações na economia e na sociedade europeia, considerado responsável pela conexão do Velho Mundo às outras partes do globo terrestre por intermédio das grandes navegações e descobrimentos marítimos.
Assim, dentro de uma perspectiva histórica, verifica-se que as normas eclesiásticas em matéria de família estabelecidas pelo Concílio de Trento compunham o ordenamento jurídico vigente em Portugal, tendo alcançado o Brasil por meio da colonização e preservado sua vigência até a promulgação do Código Civil de 1916 – conforme se verá detalhadamente no próximo tópico de estudo.