As liberdades de expressão, de informação, de crítica e de imprensa, ao mesmo tempo em que são pressupostos da democracia liberal, densificam a garantia de transparência do processo democrático, sem a qual uma democracia não conseguiria se manter em pé.
E sempre que o período eleitoral se aproxima, a discussão sobre o limite do humor, sobre o limite da piada, é reacendida. O humor, sobretudo no período que antecede o pleito eleitoral, pode ser previamente restringido?
Um conhecido esquete do grupo de humor britânico Monty Python apresentava a piada mais engraçada do mundo que, de tão engraçada, matava (literalmente) quem a lesse, de tanto rir (a piada matou seu próprio criador, o escritor Ernest Scribbler). Diz o esquete que ninguém poderia ler a piada e sobreviver. Tamanha a sua eficácia, foi utilizada como arma de guerra contra Adolf Hitler.
Não há como se recusar o propósito crítico do humor, sobretudo da sátira política. Certas informações e críticas políticas são transmitidas de forma mais eficaz por intermédio de uma boa dose de (tragi)comédia.
Foi Eça de Queiroz, lembrado pelo Ministro Ayres Britto, no julgamento da ADI 4451/DF, quem, já no sáculo XIX, concluiu, de forma precisa, ser o riso uma filosofia: “muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.”[1]
Apesar de o humor jornalístico ser derivação imediata das liberdades de expressão, informação e de criação, o inciso II do art. 45 da Lei 9.504/97 proíbe às emissoras de rádio e televisão, a partir de 1º de julho do ano eleitora, a utilização, em sua programação normal e noticiário, de trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, bem como a produção ou veiculação de programa com esse efeito.
Trucagem e montagem, para a lei eleitoral, caracteriza qualquer artifício destinado a degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtue a realidade e beneficie ou prejudique qualquer candidato, partido político ou coligação. E um desses artifícios seria a piada.
O propósito da restrição estalebecida pela lei eleitoral é evitar desequilíbrio no processo eleitoral, que poderia se desmanchar a partir da divulgação de críticas jornalísticas em charges, caricaturas e piadas. De modo a preservar a igualdade de oportunidade entre os competidores, a lei preferiu seguir por um caminho mais curto: o da proibição.
A suspeita de censura prévia da legislação eleitoral levou, nas eleições gerais de 2010, um grupo de comediantes a conduzir o movimento “Humor Sem Censura”. O grupo mobilizou protestos em 2010 contra a proibição do humor durante o período eleitoral.[2]
Ainda naquele ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida cautelar na ADI 4451/DF, na qual a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão arguiu a inconstitucionalidade dos incisos II e III do art. 45 da Lei 9.504/97.
Em suas razões de decidir, o STF considerou que as liberdades de manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação constituem “verdadeiros bens de personalidade, porquanto correspondentes aos seguintes direitos que o art. 5º da nossa Constituição intitula de 'Fundamentais': a) 'livre manifestação do pensamento' (inciso IV); b) 'livre [...] expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” (inciso IX); c) 'acesso a informação' (inciso XIV).”
Segundo o Supremo Tribunal Federal,
“Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de “imprensa”, sinônimo perfeito de “informação jornalística” (§ 1º do art. 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V. A crítica jornalística em geral, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura. Isso porque é da essência das atividades de imprensa operar como formadora de opinião pública, lócus do pensamento crítico e necessário contraponto à versão oficial das coisas, conforme decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130. Decisão a que se pode agregar a ideia de que a locução “humor jornalístico” enlaça pensamento crítico, informação e criação artística.”
Em suma, para o STF, a restrição às liberdades individuais feita pela Lei Eleitoral é constitucionalmente ilegítima.
Quando se fala em liberdades individuais, já é consagrada a ideia de que “quem está meio livre, está meio preso”. Ou, como registrado na ementa da medida cautelar concedida na ADI 4451/DF, “não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha.”
Não há como se negar que o humor integra o núcleo essencial da liberdade de manifestação, derivação imediata que é da liberdade de criação artística e da liberdade de crítica e de informação (garantias de transparência), essenciais à manutenção de uma democracia estável, permitindo o debate público sem constrangimentos, de modo que os atos emanados de agentes públicos sejam constantemente submetidos à crítica e ao controle público.
Evidentemente, o abuso no exercício da liberdade de expressão deverá ser passível de responsabilização, sempre “a posteriori”, sobretudo quando a crítica veiculada através da piada puder desaguar na prática vedada de propaganda eleitoral irregular. O que não se admite é a possibilidade de se estabelecer um censor prévio, responsável por decidir pela legitimidade de crítica humorística baseado, muitas vezes, em seu senso de (mau) humor.
Nesse sentido, o STF também foi enfático ao suspender a eficácia o inciso II do art. 45 da Lei 9.504/97, aduzindo que a informação humorística apenas caracterizará uma “conduta vedada quando a crítica ou matéria jornalísticas venham a descambar para a propaganda política, passando nitidamente a favorecer uma das partes na disputa eleitoral. Hipótese a ser avaliada em cada caso concreto.”
O imbróglio estabelecido, a cada período eleitoral, entre a liberdade de manifestação e crítica e igualdade de oportunidade entre os candidatos, deve ser solucionado a partir da plena garantia das liberdades individuais (na tentativa de salvaguarda, pois, da própria democracia, que é sustentada pelo exercício livre do pensamento e do discurso público), contornando situações de abuso através dos mecanismos jurídicos de reparação de danos (direito de resposta, indenizações por danos morais e patrimoniais etc).
Apesar de o argumento do potencial desequilíbrio entre candidatos (especialmente em detrimento daquele alvo de críticas humorísticas) ser sedutor, ele não parece se sustentar em qualquer substrato estatístico, sobretudo porque o argumento não se faz acompanhar por dados que indiquem o grau de influência que a informação humorística decisivamente exerce na escolha dos candidatos, pelos eleitores.
Nesse sentido, importante conferir o precedente surgido no caso CITIZENS UNITED v . FEDERAL ELECTION COMMISSION[3], no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos assumiu que as pessoas em uma democracia respondem com cético discernimento a mensagens políticas que lhes bombardeiam antes das eleições.
Desse modo, pela íntima relação de interdependência entre livre manifestação do pensamento, liberdade de crítica e de informação com a democracia, é que se torna necessário assegurar-lhes o pleno gozo, sem censura prévia, de modo que eventuais abusos devem ser corrigidos por mecanismos jurídicos reparatórios, sempre que o abuso do direito de informar, manifestar ou criticar possam comprometer decisivamente a igualdade de oportunidades entre os concorrentes às cadeiras no Parlamento e à Chefia do Estado.
Já disse Eça de Queiroz que “se ridicularizar a terra que nos deu o ser, é como cremos, criticá-la pelo riso, o riso é muito melhor instrumento de crítica do que a paixão de partido, o propósito de corrilho, a declamação de campanário, o velho lirismo constitucional, as estafadas expectorações de uma retórica banal, a animadversão de pessoas, a guerra de sujeitos ou a guerra de palavras, a provocação, a assuada, a insolência, o doesto e a injúria – isto é: as armas mais usualmente brandidas nas pugnas do parlamento lusitano.”[4]
Notas
[1]ORTIGÃO, Ramalho; QUEIROZ, Eça de. "As farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes”. São João do Estoril: Principia, 2004. p. 6.
[2]“Humoristas protestam contra censura a piadas com políticos.” ESTADÃO, 23 de agosto de 2010. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,humoristas-protestam-contra-censura-a-piadas-com-politicos,598729>. Acesso em 14 de outubro de 2010, às 15h10min.
[3]Disponível em: http://www.law.cornell.edu/supct/html/08-205.ZS.html. Acesso em 14 de outubro de 2014, às 15h18min.
[4]ORTIGÃO, Ramalho; QUEIROZ, Eça de. "As farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes”. São João do Estoril: Principia, 2004. p. 460.