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O humor nas eleições e o STF

Agenda 08/06/2015 às 11:01

A informação humorística apenas caracterizará uma conduta vedada quando a crítica ou matéria jornalísticas venham a descambar para a propaganda política, passando nitidamente a favorecer uma das partes na disputa eleitoral.

As liberdades de expressão, de informação, de crítica e de imprensa, ao mesmo tempo em que são pressupostos da democracia liberal, densificam a garantia de transparência do processo democrático, sem a qual uma democracia não conseguiria se manter em pé.

E sempre que o período eleitoral se aproxima, a discussão sobre o limite do humor, sobre o limite da piada, é reacendida. O humor, sobretudo no período que antecede o pleito eleitoral, pode ser previamente restringido?

Um conhecido esquete do grupo de humor britânico Monty Python apresentava a piada mais engraçada do mundo que, de tão engraçada, matava (literalmente) quem a lesse, de tanto rir (a piada matou seu próprio criador, o escritor Ernest Scribbler). Diz o esquete que ninguém poderia ler a piada e sobreviver. Tamanha a sua eficácia, foi utilizada como arma de guerra contra Adolf Hitler.

Não há como se recusar o propósito crítico do humor, sobretudo da sátira política. Certas informações e críticas políticas são transmitidas de forma mais eficaz por intermédio de uma boa dose de (tragi)comédia.

Foi Eça de Queiroz, lembrado pelo Ministro Ayres Britto, no julgamento da ADI 4451/DF, quem, já no sáculo XIX, concluiu, de forma precisa, ser o riso uma filosofia: “muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.”[1]

Apesar de o humor jornalístico ser derivação imediata das liberdades de expressão, informação e de criação, o inciso II do art. 45 da Lei 9.504/97 proíbe às emissoras de rádio e televisão, a partir de 1º de julho do ano eleitora, a utilização, em sua programação normal e noticiário, de trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, bem como a produção ou veiculação de programa com esse efeito.

Trucagem e montagem, para a lei eleitoral, caracteriza qualquer artifício destinado a degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtue a realidade e beneficie ou prejudique qualquer candidato, partido político ou coligação. E um desses artifícios seria a piada.

O propósito da restrição estalebecida pela lei eleitoral é evitar desequilíbrio no processo eleitoral, que poderia se desmanchar a partir da divulgação de críticas jornalísticas em charges, caricaturas e piadas. De modo a preservar a igualdade de oportunidade entre os competidores, a lei preferiu seguir por um caminho mais curto: o da proibição.

A suspeita de censura prévia da legislação eleitoral levou, nas eleições gerais de 2010, um grupo de comediantes a conduzir o movimento “Humor Sem Censura”. O grupo mobilizou protestos em 2010 contra a proibição do humor durante o período eleitoral.[2]

Ainda naquele ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida cautelar na ADI 4451/DF, na qual a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão arguiu a inconstitucionalidade dos incisos II e III do art. 45 da Lei 9.504/97.

Em suas razões de decidir, o STF considerou que as liberdades de manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação constituem “verdadeiros bens de personalidade, porquanto correspondentes aos seguintes direitos que o art. 5º da nossa Constituição intitula de 'Fundamentais': a) 'livre manifestação do pensamento' (inciso IV); b) 'livre [...] expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” (inciso IX); c) 'acesso a informação' (inciso XIV).”

Segundo o Supremo Tribunal Federal,

“Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de “imprensa”, sinônimo perfeito de “informação jornalística” (§ 1º do art. 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V. A crítica jornalística em geral, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura. Isso porque é da essência das atividades de imprensa operar como formadora de opinião pública, lócus do pensamento crítico e necessário contraponto à versão oficial das coisas, conforme decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130. Decisão a que se pode agregar a ideia de que a locução “humor jornalístico” enlaça pensamento crítico, informação e criação artística.”

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Em suma, para o STF, a restrição às liberdades individuais feita pela Lei Eleitoral é constitucionalmente ilegítima.

Quando se fala em liberdades individuais, já é consagrada a ideia de que “quem está meio livre, está meio preso”. Ou, como registrado na ementa da medida cautelar concedida na ADI 4451/DF, “não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha.” 

Não há como se negar que o humor integra o núcleo essencial da liberdade de manifestação, derivação imediata que é da liberdade de criação artística e da liberdade de crítica e de informação (garantias de transparência), essenciais à manutenção de uma democracia estável, permitindo o debate público sem constrangimentos, de modo que os atos emanados de agentes públicos sejam constantemente submetidos à crítica e ao controle público.

Evidentemente, o abuso no exercício da liberdade de expressão deverá ser passível de responsabilização, sempre “a posteriori”, sobretudo quando a crítica veiculada através da piada puder desaguar na prática vedada de propaganda eleitoral irregular. O que não se admite é a possibilidade de se estabelecer um censor prévio, responsável por decidir pela legitimidade de crítica humorística baseado, muitas vezes, em seu senso de (mau) humor.

Nesse sentido, o STF também foi enfático ao suspender a eficácia o inciso II do art. 45 da Lei 9.504/97, aduzindo que a informação humorística apenas caracterizará uma “conduta vedada quando a crítica ou matéria jornalísticas venham a descambar para a propaganda política, passando nitidamente a favorecer uma das partes na disputa eleitoral. Hipótese a ser avaliada em cada caso concreto.”

O imbróglio estabelecido, a cada período eleitoral, entre a liberdade de manifestação e crítica e igualdade de oportunidade entre os candidatos, deve ser solucionado a partir da plena garantia das liberdades individuais (na tentativa de salvaguarda, pois, da própria democracia, que é sustentada pelo exercício livre do pensamento e do discurso público), contornando situações de abuso através dos mecanismos jurídicos de reparação de danos (direito de resposta, indenizações por danos morais e patrimoniais etc).

Apesar de o argumento do potencial desequilíbrio entre candidatos (especialmente em detrimento daquele alvo de críticas humorísticas) ser sedutor, ele não parece se sustentar em qualquer substrato estatístico, sobretudo porque o argumento não se faz acompanhar por dados que indiquem o grau de influência que a informação humorística decisivamente exerce na escolha dos candidatos, pelos eleitores.

Nesse sentido, importante conferir o precedente surgido no caso CITIZENS UNITED v . FEDERAL ELECTION COMMISSION[3], no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos assumiu que as pessoas em uma democracia respondem com cético discernimento a mensagens políticas que lhes bombardeiam antes das eleições.

Desse modo, pela íntima relação de interdependência entre livre manifestação do pensamento, liberdade de crítica e de informação com a democracia, é que se torna necessário assegurar-lhes o pleno gozo, sem censura prévia, de modo que eventuais abusos devem ser corrigidos por mecanismos jurídicos reparatórios, sempre que o abuso do direito de informar, manifestar ou criticar possam comprometer decisivamente a igualdade de oportunidades entre os concorrentes às cadeiras no Parlamento e à Chefia do Estado.

Já disse Eça de Queiroz que “se ridicularizar a terra que nos deu o ser, é como cremos, criticá-la pelo riso, o riso é muito melhor instrumento de crítica do que a paixão de partido, o propósito de corrilho, a declamação de campanário, o velho lirismo constitucional, as estafadas expectorações de uma retórica banal, a animadversão de pessoas, a guerra de sujeitos ou a guerra de palavras, a provocação, a assuada, a insolência, o doesto e a injúria – isto é: as armas mais usualmente brandidas nas pugnas do parlamento lusitano.”[4]


Notas

[1]ORTIGÃO, Ramalho; QUEIROZ, Eça de. "As farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes”. São João do Estoril: Principia, 2004. p. 6.

[2]“Humoristas protestam contra censura a piadas com políticos.” ESTADÃO, 23 de agosto de 2010. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,humoristas-protestam-contra-censura-a-piadas-com-politicos,598729>. Acesso em 14 de outubro de 2010, às 15h10min.

[3]Disponível em: http://www.law.cornell.edu/supct/html/08-205.ZS.html. Acesso em 14 de outubro de 2014, às 15h18min.

[4]ORTIGÃO, Ramalho; QUEIROZ, Eça de. "As farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes”. São João do Estoril: Principia, 2004. p. 460.

Sobre o autor
Cássio Bruno Castro Souza

É professor de Direito na Faculdade Católica de Rondônia. Analista Processual do Ministério Público da União. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera (Uniderp).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Cássio Bruno Castro. O humor nas eleições e o STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4359, 8 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33764. Acesso em: 18 nov. 2024.

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