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A jurisdição no Common Law

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Agenda 05/05/2015 às 08:22

7. Jurisdição do common law e a valorização do direito processual:

Os juristas do sistema anglo-saxônico desconhecem conceitos de norma imperativa e supletiva, já que para eles todo o direito é imperativo. Enquanto os sistemas romanistas foram construídos seguindo a racionalidade e a lógica, com as obras das universidades e do legislador, o direito inglês foi ordenado sem preocupação lógica, dando uma primordial valorização ao direito processual, já que o direito não se originou de princípios e teorias consagradas pelas universidades, mas da prática processualística, dando espaço a um processo formalista, com minuciosas regras de direito probatório, marcando o direito inglês por sua riqueza e tecnicismo.

Dessa forma, não representando o common law um conjunto de normas de direito material, mas de regras processuais rigorosas, é consagrada a jurisprudência como principal fonte do direito inglês. Era no âmbito dos tribunais reais que o direito era construído, seja pela aplicação de antigas fórmulas consuetudinárias, seja pelo julgamento de equidade. E assim é que se formou e se consolidou a teoria do precedente judicial, como resultado dos julgamentos pelos tribunais reais no sistema anglo-saxônico.


8. Common law: Concepção de justiça.

Considerando os dois paradigmas de jurisdição (do sistema do civil law e do common law), pode-se extrair duas concepções a respeito da organização da justiça civil e do processo. São concepções diferentes e que são propostas pelo doutrinador Mirjan Damaska, através de sua obra “The faces of justice and state authority”.

O referido autor impôs grandes observações sobre os dois grandes sistemas de ordenamentos jurídicos (sistema do civil law e do common law) existentes nos diversos países do acidente. Defende que não há mais a existência de sistemas puros de processo jurisdicional, ocorrendo, na realidade, sistemas híbridos com predominâncias para determinados modelos.

No sistema do civil law, o papel da justiça seria o de atuação do direito objetivo, o da aplicação da vontade concreta da lei aos casos concretos submetidos à apreciação. A administração da justiça adota o modelo hierárquico centralizador, de modo que os juízes são considerados a “boca da lei”, expressão usada por Montesquieu, justificando que os poderes dos juízes decorrem da lei e que devem sempre estar subordinados a ela.

Portanto, a jurisdição é exercida pelos juízes profissionais, escolhidos por motivos técnicos e que são vitalícios, desempenhando a atividade em caráter permanente. Há especialização da jurisdição. O critério de decisão é um critério de legalidade e as decisões são atos vinculados, com requisitos na lei, havendo restrição ao uso da equidade. No tocante aos recursos, há um afastamento de seu direcionamento para o próprio juiz que julgou a causa.

Damaska chama referido sistema de modelo hierárquico porque há pouca liberdade do juiz de primeiro grau, já que sua decisão é totalmente revista.

Já no sistema do common law, a função da justiça seria a de pacificação dos litigantes e da sociedade, de modo que a paz social é um objetivo direto e imediato. Não importa que a paz social seja imposta pela lei ou por outro critério, levando a crer que o primordial é a harmonização. Tal sistema prioriza a coesão e a solidariedade entre seus membros. Aqui a justiça é paritária, da comunidade. Os juízes são leigos ou profissionais de investidura política. Não há tanta especialização da jurisdição. Quanto aos recursos, há grande pedido de revisão para o próprio juiz ou tribunal que proferiu o julgamento.

Por tudo, percebe-se que o juiz de primeiro grau no common law tem muito mais poder que os tribunais, pois estes exercem uma supervisão distante e extraordinária sobre a justiça ministrada pelos juízes de primeiro grau que é uma justiça mais próxima dos cidadãos, uma justiça da comunidade.


9. Sistemas de jurisdição propostos por Mirjan Damaska:

O primeiro previsto pelo referido jurista seria o modelo adversarial (conflict-solving process), segundo o qual o processo é voltado para a solução de conflitos individuais, com um juiz imparcial passivo, não interferindo na produção de provas. Tem a forma de uma disputa, com um compromisso dos dois adversários perante o julgador. Os dois adversários tem todo o controle da ação processual. Destacam-se os processos orais, em que as decisões dos juízes de primeiro grau seriam mais eficazes, não existindo previsão de inúmeras instâncias recursais. Tal modelo se aproxima mais do sistema do common law, apesar de não ser de uma forma pura.

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O segundo seria o modelo inquisitorial (policy-implementing process), no sentido de que há a interferência da política no direito, havendo um Estado intervencionista, sendo o responsável pela organização da sociedade e pela efetivação dos direitos e distribuição da justiça, efetivando programas de políticas públicas sociais, em busca de uma justiça social. Há a existência de um juiz ativo, comandando o processo, interferindo na produção de provas, devendo o julgamento se aproximar das políticas do Estado. Neste contexto, destacam-se os processos escritos e com predominância da prova escrita. Tal modelo proporciona maior espaço para discussão da eficácia da decisão proferida pelo juiz de primeiro grau, com previsão de inúmeras instancias recursais. Tal modelo se aproxima mais do sistema do civil law, podendo também conter alguns traços de influência do sistema anglo-saxônico.


10. As teorias da jurisdição no Common Law:

Havia duas teorias da jurisdição instituídas na Inglaterra.

A primeira seria a teoria declaratória da jurisdição, proposta por Willian Blackstone. Tal teoria defendia que o juiz apenas declarava o direito. Partia do pressuposto de que como o common law surgia dos costumes gerais, sendo que o juiz não cria o common law e sim o declara. E quanto à aplicação dos precedentes, o juiz estaria limitado a declarar o direito fixado nos precedentes. A autoridade do magistrado não se referia à criação de um novo direito e sim a simples manutenção e declaração de um direito já conhecido.

A segunda tese seria a teoria constitutiva da jurisdição, defendida por Bentham e Austin, no sentido de que o common law existia pelo fato de ter sido estabelecido por juízes dotados do law-making authority. O direito seria produto da vontade dos magistrados, não sendo simplesmente descoberto, mas sim criado. O precedente significaria a criação do direito.

Luiz Guilherme Marinoni entende que, para se compreender melhor sobre a disputa entre as duas teorias, resta concentrar atenção à autoridade da decisão judicial. A questão a ser discutida é se o juiz tem autoridade para criar ou apenas para declarar o direito. Na autoridade da decisão judicial, pode se encontrar a solução para a polêmica.

Assim, entraria nessa seara a questão do respeito obrigatório aos precedentes, ou seja, o stare decisis. Discussão quanto à possibilidade ou não de a natureza declaratória ou constitutiva da decisão judicial respeitar o precedente como força obrigatória e a possibilidade de sua revogação.

Há uma crítica à teoria declaratória de ser ela imprópria ao pensar na revogação do precedente, uma vez que o juiz, ao revogar o precedente, estaria criando o direito. Se a primeira corte cometeu um erro, a segunda terá que legislar e não apenas declarar o direito contido no precedente. Juízes não poderiam sustentar a teoria declaratória para se esquivarem da responsabilidade de revogação dos precedentes e de criação do direito, livrando-se do encargo de proferirem decisões retroativas que poderiam ser consideradas antidemocráticas. (doutrina de MAC CORMICK).

Outra crítica à teoria declaratória seria no sentido de que o juiz é obrigado a respeitar o direito e não a declaração judicial do que é o direito. Se o precedente não é direito, mas sim a declaração sobre o direito, não teria possibilidade de respeito obrigatório ao precedente. Tornar-se-ia mais fácil supor que o magistrado tem o poder para criar o direito.

Por outro lado, haveria crítica à teoria constitutiva no tocante ao stare decisis, considerando que ela não seria capaz de obrigar a própria corte que criou o precedente. A ideia de que o magistrado pode criar o direito apenas justificaria o efeito vertical do stare decisis, porque o precedente apenas obrigaria os juízes e tribunais inferiores. Portanto, o juiz dotado de law-making authority não justificaria o stare decisis.

Por fim, na verdade, nem a teoria constitutiva, nem a declaratória, são capazes de justificar o stare decisis em seu estado absoluto.


11. Desenvolvimento das leis escritas e a organização atual da jurisdição inglesa:

A legislação ocupava a segunda posição entre as fontes do direito inglês, após a jurisprudência. No entanto, no século XIX e XX, ocorreu um desenvolvimento significativo do processo legislativo. Pela via legislativa (statutes de 1832-1833 e de 1873-1875) foram introduzidas profundas reformas na organização dos tribunais. Através destes statutes foi inserido um direito social novo e um direito econômico, sobretudo após o ano de 1945.

Hoje, o direito inglês está fortemente influenciado por leis escritas. Há normas codificadas, como, por exemplo, o novo código de processo civil inglês – CPR (Civil Procedural Rules), sendo a mais ampla fonte de regras processuais existentes. Desde o dia 26 de abril de 1.999, passou a existir apenas um único aglomerado de regras processuais aplicáveis à High Court, às county courts e à Court of Appeal. Portanto, o CPR é um exemplo forte do desenvolvimento do direito positivo escrito no sistema jurídico inglês.

Quanto à organização do poder judiciário inglês atual, temos os tribunais civis de primeira instância (County Courts e a High Courts), de modo que as causas menores são direcionadas à County Courts, localizadas em várias cidades e vilarejos. Já as ações de maiores proporções são propostas perante a High Court, que se localiza nas principais províncias e também na cidade de Londres.

Não há o direito de recorrer de uma decisão de primeiro grau de jurisdição, existindo apenas uma mera permissão de recorrer obtida na primeira instância recursal ou no juízo ad quem. A Courte of Appeal é um tribunal de apelação que julga os recursos dirigidos às decisões do High Court. A House of Lords, ápice do judiciário inglês, julgam recursos finais interpostos por ano, referentes a poucas ações.

A Câmara dos Lordes, caracterizando-se como a instância extraordinária e suprema da jurisdição do reino unido, tendo a função de examinar os recursos direcionados às decisões do Tribunal de Apelação, é a responsável pela criação dos precedentes judiciais que vinculam todas as instâncias inferiores, inclusive a própria corte suprema.

Não há ainda uma constituição escrita. Os britânicos chamam de Constituição o conjunto de princípios jurisprudenciais de conteúdo constitucional, os quais garantem as liberdades fundamentais e que limitam os poderes da autoridade estatal.


12. Conclusão:

O sistema jurisdicional inglês destaca-se como um modelo de direito jurisprudencial que foi resultado de uma evolução de séculos, revelando que a autoridade do precedente judicial é uma forma de promoção da estabilidade jurídica e efetividade do processo jurisdicional. Como hoje inexistem sistemas puros de direito, como bem destacado por Mijan Damaska, o modelo do common law deve servir como um poderoso paradigma para o desenvolvimento de todo o ordenamento jurídico-processual brasileiro, em prol da efetividade e da paz social.


13. Referências bibliográficas:

ANDREWS, Neil. The modern civil process – Judicial and Alternative Forms of Dispute Resolution in England. Ed. Mohr Siebeck, Tubingen, 2008.

COSTA, Nelson Nery. Curso de direito constitucional. 3ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1998.

DAMASKA, Mirjan R. The faces of Justice and State Authority. Yale University Press, 1986.

GERHARDT, Michael J. The Power of precedent. New York: Oxford University Press, 2008.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3ª.ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil – Teoria Geral do Processo, v.1,3,ed. São Paulo:Ed. RT, 2008, Parte I, item 2.5.

MIRANDA, Pontes. História e Prática do habeas-corpus, 3ª.ed., Rio de Janeiro: José Konfino, 1955.

Sobre o autor
Nelmo Versiani

Mestre em Direito pela UFSC; Tetra Especialista em Direito pela PUCMG/Damásio Floripa/UGF-Rio; Oficial de Justiça Avaliador do TJSC; Professor de Direito Processual; Pesquisador Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERSIANI, Nelmo. A jurisdição no Common Law . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4325, 5 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38748. Acesso em: 22 dez. 2024.

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