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Anistia brasileira: um paralelo entre a conjuntura do estado militar brasileiro e a aprovação do projeto final da lei 6.683/79

Agenda 06/07/2015 às 04:01

O presente trabalho analisará o contexto histórico no qual a lei de anistia brasileira (Lei n. 6.683/79) foi promulgada, permanecendo até os dias atuais como perpetuação das violações aos direitos humanos, uma vez que destoou do seu projeto original.

RESUMO

A Lei de Anistia brasileira é uma espécie de lei penal que retira as consequências de alguns crimes já praticados. Foi promulgada em plena transição para a democracia, fruto de “acordo político” e diante de uma intensa mobilização social. O Estado brasileiro teria implantando uma lei ampla, geral e de caráter bilateral, mas não irrestrita, na medida em que excluía do regime de anistiado político aqueles que já haviam sido condenados. O presente trabalho analisará o contexto histórico no qual a referida lei foi promulgada, permanecendo até os dias atuais como perpetuação das violações aos direitos humanos, uma vez que destoou do seu projeto original.

Palavras-chave: Resistência; repressão; lei de anistia; crimes lesa-humanidade

ABSTRACT

Brazilian Amnesty law is a species of criminal law that removes the consequences of some crimes already committed. Was enacted in the midst of a transition to democracy, the result of "political agreement" and in the face of an intense social mobilization. The State would have a broad, general law implementing and bilateral in character, but not unrestricted, to the extent that excluded from an amnesty scheme for those that were already political convicts. This paper will examine the historical context in which the law was enacted, remaining until the present day as perpetuation of violations of human rights, since destoou of its unique design. 

Keywords: Resistance; repression; the Amnesty Act; committing crimes humanity

1 INTRODUÇÃO

Apoiada pelo empresariado e pelo governo norte-americano, a ditadura militar se instalou no Brasil sob os dogmas da Doutrina de Segurança Nacional. O golpe ocorreu em 31 de março de 1964 e foi fundamentado, pelos militares, na necessidade de conter a expansão do comunismo no país e restaurar a disciplina e a hierarquia na sociedade.

Os agentes da repressão acreditavam que a principal ameaça residia em terras brasileiras, estabelecendo-se um clima de guerra interna. A tortura e os desaparecimentos misteriosos eram intrínsecos ao cenário brasileiro no regime de exceção. Em meio a tanta violação aos direitos humanos, a sociedade civil se mobilizou em busca da redemocratização do país e, apenas em 1979, foi promulgada a lei de anistia (Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979), fruto de acordo político, beneficiando tanto torturadores quanto opositores do regime de exceção. Tal entendimento deriva da expressão “crimes conexos”, presente no §1º do art. 1º do diploma normativo.

A Lei de Anistia brasileira é uma espécie de lei penal que retira as consequências de alguns crimes já praticados. Foi promulgada em plena transição para a democracia, fruto de acordo político e diante de uma intensa mobilização social. O presente trabalho se propõe a esclarecer as políticas de resistência e repressão à época da ditadura militar brasileira que influenciaram na elaboração da lei 6.683/79, bem como a discrepância da do projeto final da mesma com o seu original.  

2        O REGIME MILITAR BRASILEIRO E A LEI DE ANISTIA BRASILEIRA
  1. O regime militar: práticas de resistência e repressão

Nos anos anteriores ao golpe, o Brasil se encontrava com os ânimos políticos exaltados. Com o estabelecimento da guerra fria, o Estado brasileiro era incentivado pelos americanos a combater o comunismo, escolhendo o bloco que iria apoiar (WOJCIECHOWSKI, 2014). O país era governado por Jânio Quadros (presidente) e João Goulart (vice-presidente), tendo esse último estreitado as relações políticas com os países socialistas (China e União Soviética), o que teria amedrontado os EUA.

Após a renúncia de Jânio, Jango é impedido de assumir pelos militares, instaurando-se um parlamentarismo sob o fundamento de que teria ideias propensas ao comunismo, ao querer implantar reformas de base no país. Jango perdeu o apoio das classes conservadoras, as quais buscaram nos militares a solução para a “desordem” que poderia se instalar no Brasil.

O relacionamento entre civis e militares até a deflagração do golpe era “moderado”. Os militares atuavam na derrocada de um governo, passando-o para outro grupo de civis (FICO, 2004, p. 31). Aqueles não governavam, pois acreditavam serem desprovidos de capacidade e legitimidade para assumir o poder, o que, segundo Fico (2004), foi alterado pela ameaça à disciplina e à hierarquia vislumbrada pelos militares, passando-se a sentir plenamente capacitados de assumir o poder.

O golpe militar obteve apoio dos grupos econômicos nacionais, sendo este essencial para seu sucesso. A desestabilização civil foi bem articulada, ao contrário da militar (FICO, 2004, p. 42). Nesta não houve uma liderança propriamente dita no nascedouro da “revolução” nem um projeto de governo:

(...) as entrevistas realizadas pela equipe do CPDOC trouxeram outras revelações valiosas que elevaram o patamar do conhecimento histórico sobre o tema. No que se refere estritamente ao período abrangido pelo primeiro volume, podem ser destacados os aspectos como a falta de uma liderança militar durante o período da conspiração (“todos teriam passado grande parte da conspiração à procura de líderes”) e a virtual inexistência de um projeto de governo: “a questão imediata, segundo a maioria dos relatos, era tirar Jango e fazer uma ‘limpeza’ nas instituições”. (FICO, 2004, p. 43)

A “Revolução” de 1964 se legitimou por meio do Ato Institucional n. 01, possuindo como fundamento o restabelecimento da ordem e defesa do Estado Democrático de Direito em face dos comunistas (WOJCIECHOWSKI, 2014, p. 133). Instaurou-se no Brasil um verdadeiro estado de guerra, dividido entre a abertura e o endurecimento político.

A resistência brasileira pode ser encarada no sentido mais defensivo do que ofensivo de combate à ditadura. Segundo Delgado et al. (2004), as esquerdas armadas possuíam cunho revolucionário, inspirado na Revolução Cubana, não configurando isto um motivo para usurpar sua participação da resistência à ditadura, visto que sua luta se aproximou mais do combate ao regime do que à tentativa de uma revolução.

A luta armada passou a ser vista como a única alternativa viável dos opositores políticos na retomada dos meios de manifestação política. O objetivo central das esquerdas revolucionárias não consistia apenas no retorno da democracia, pois, para eles, esta era “burguesa, liberal, sendo parte de um sistema que se queria derrubar”(BORGES et al., 2003, p. 48). Entretanto, não se pode negar que sua atuação corroborou para concretização da democracia tal como é hoje.

A luta política envolveu vários setores da sociedade de esquerda contra a ditadura militar. Para formação dessa esquerda, segundo Delgado et al. (2004), foi imprescindível uma reorganização das liberdades democráticas, tendo em vista a necessidade que remanescentes tinham de buscar uma nova linha de atuação política após sua derrota na luta armada.

Por outro lado, a partir da década de 1970 os militares tentavam institucionalizar seu poder com a abertura política, de forma lenta, gradual e segura, sobretudo no governo de Geisel. Tal distensão em parte se consubstanciava no anseio da sociedade e das forças políticas de oposição, respondendo, também, aos conflitos existentes dentro do poder dominante.

A resistência política que imperava no Brasil, além da diversidade dos agentes envolvidos, possuía abordagens distintas, o que apontava para uma sociedade plural, criativa e dinâmica politicamente (BORGES et al., 2003). O movimento abarcava assim da classe média à população mais carente. Identifica-se como autores desta luta desde as entidades de classe, tal como a OAB, até os movimentos de bairros e associação de moradores.

Nas práticas de resistência, a imprensa vai ganhando espaço na difusão dos pensamentos políticos de esquerda na clandestinidade. A revista Brasil Socialista (BS), por exemplo, almejava ser o porta-voz da esquerda política a estruturar a atuação da Esquerda Proletária.  A BS ajudou a construir um campo alternativo de política dentro da esquerda, impulsionando a definição de luta democrática e a reorganização de alianças políticas dentro da esquerda brasileira.

Observa-se que muitas alianças foram feitas, coadunando-se diversas visões políticas e permitindo a liderança da esquerda no movimento contra a ditadura militar. Corolário disto foi a necessidade das lideranças políticas saírem “das sombras”, colocando em destaque o movimento oposicionista. Por tal motivo, a esquerda se aliou a outros setores da sociedade, a fim de legalizar seu posicionamento político.

O movimento estudantil representou outro grande símbolo da resistência, havendo dado o primeiro passo para a campanha pública pela anistia no país(BORGES et al., 2003). Um dos mais importantes agentes da luta democrática foi a Imprensa Alternativa, visto que a maioria das vias de manifestação política de oposição havia sido suprimida pelos militares.

Além de questionar o regime em vigor na época, a imprensa alternativa foi fundamental para divulgação da campanha nacional pela anistia, tendo proporcionado, além disto, a rearticulação dos militantes políticos após derrota da luta armada e a oportunidade dos agentes de esquerda exporem seu posicionamento político. A campanha pela anistia passa a ter maior destaque nos jornais que compunham a Imprensa Alternativa.

O Estado, por sua vez, desenvolveu instâncias repressivas para contenção dos revoltosos, havendo uma procura incessante pela institucionalização das mesmas na expectativa de combater os “obstáculos” à realização dos objetivos nacionais.

[...] a “utopia autoritária” de eliminação de quaisquer dissensos que inspirava a “operação limpeza” – contra a qual Castelo Branco tentou se insurgir – foi o leitmotiv que fundamentou a maior onda de repressão política que o Brasil jamais conhecera. (FICO, 2004, p. 76)

É importante destacar que todo o aparato repressivo configurado após o AI-5 não decorreu de uma simples reação à luta armada. Segundo o autor supracitado, desde o início do regime militar existia o desejo de desenvolver mecanismos globais de controle da sociedade pelos componentes da linha dura(FICO, 2004). Tal projeto de controle abrangia espionagem, polícia política, censura, propaganda política e julgamento sumário de corruptos.

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O primeiro a assumir a presidência no regime de exceção foi o general Castello Branco, militar de linha branda, tendo o mesmo iniciado o endurecimento governista com o AI-2, sancionado como pretexto após a vitória da oposição nas eleições de 1965. A partir deste fato, surge a primeira instância repressiva, a comunidade de segurança e informações, formada por parte dos militares de linha dura que se transformou, em pouco tempo, na voz autorizada do regime(FICO, 2004).

O Sistema Nacional de Informação, apesar de instituído por vias legais, sendo apresentado ao Congresso Nacional na forma de projeto, teve sua aprovação negociada. Tal órgão tinha como função a coleta de dados que servissem de subsídio para tomada de decisão do presidente. O fato de existirem espécies semelhantes ao SNI em outros países culminou na maior aceitação deste sistema pela população, tendo o mesmo permanecido valorizado até o governo Figueiredo, entrando em colapso apenas com a proposta de abertura política.

O SNI iniciou-se de maneira modesta, e, posteriormente, transmudou-se em um efetivo de mais de seis mil pessoas, incluindo os serviços secretos do exército, Marinha e Aeronáutica, parcela da Polícia Federal, divisões de informações constituídas em torno dos ministérios, delegacias estaduais de Ordem Política e Social (DEOP’s) e os serviços de informação das polícias militares. (WOJCIECHOWSKI, 2014, p. 134)

Porém prisões e torturas não eram praticadas pela comunidade de informações, recolhendo esta apenas dados para repasse aos demais órgãos, cabendo à polícia política a execução daquelas práticas. A comunidade de informações propalava assim a “superestrutura” que fundamentava a ação da polícia política.

A comunidade de informações foi criada através de leis, decretos e outros diplomas ostensivos, a polícia política era “revolucionária”, isto é, sua origem deveu-se a diretrizes secretas do Conselho de Segurança Nacional e de autoridades especialmente designadas pelo presidente da República. (FICO, 2004, p. 82)

Soa inocente pensar que a tortura surgiu apenas sob organização dos militares. Ao contrário, ela sempre existiu no Brasil. Contudo, com a instalação do regime militar, tornou-se uma etapa obrigatória nos interrogatórios feitos aos subversivos. A tortura era permitida e vista pelos militares como um “mal necessário”.

O delegado Eldes Schenini Mesquita, de 35 anos, chefe de gabinete do superintendente de Serviços Policiais de Proto Alegre, que é estudante de Direito e escreve crônicas dominicais no “Correio do Povo”, jornal de maior circulação na capital gaúcha, é um destes. “O uso de tais métodos (de tortura) deverá um dia ser abolido, quando se puder fazer, de fato, a coação psicológica através de sistemas eminentemente científicos. O que se condena é a dosagem em excesso dessa violência” (...). (LUIZ et al., 2008, p. 70)

Vários foram os métodos de tortura desenvolvidos pelos militares, tais como a “cadeira de dragão”, a “geladeira”, exposição a cobras e baratas, etc. O mais conhecido daqueles, porém, foi o “pau de arara”, barra de ferro posicionada entre os punhos amarrados do preso e a dobra do seu joelho ficando a vítima acima uns vinte centímetros acima do chão (WOJCIECHOWSKI, 2014, p. 140), sendo, quase sempre, utilizado em conjunto com outro mecanismo de tortura.

Apesar dos governantes espalharem que a tortura e o assassinato político decorriam de excessos de determinados grupos de militares de patentes inferiores, fugindo do controle das altas autoridades, pode-se perceber a conivência destas em virtude da infraestrutura instalada nos locais onde os prisioneiros eram alocados (selas planejada para expor o capturado às altas ou baixas temperaturas, por exemplo), que não poderia ser mantida “às escuras” pelos torturadores dos seus oficiais-generais.

A tortura era motivo de vergonha, algo que deveria ser mantido em segredo pelos militares. Por isto, negavam sua existência, propalando um discurso de “não teria havido tortura, mas apenas alguns ‘excessos’ de uns poucos exaltados, subalternos que não estariam ainda sob o mando de oficiais-generais, mas que se ‘autonomizaram’ indevidamente”(FICO, 2004, p. 84).

Na sua forma mais idealista e pura – se é que essas duas palavras não se incomodam de aparecer nesta situação - , esses ideólogos da tortura poderiam ser comparados com Creonte, a mitológica figura criada por Sófocles, na sua eterna luta contra Antígona. Creonte, que não ama senão sua cidade, que coloca o interesse público acima de tudo, que não pode ter por amigo nenhum inimigo de seu país, que exige de seus concidadãos todos os sacrifícios pela grandeza de Tebas, seria aqui, na comparação ousada, o alto oficial que procura salvar os destinos da democracia brasileira colocando acima dos direitos do cidadão as suas ideias pessoais -  nem sempre obrigatoriamente corretas – sobre os ideias democráticos do país.

(LUIZ et al., 2008, p. 72)

Outro pilar repressivo era a censura. Esta, por sua vez, subdividia-se em duas espécies:

[...] uma legal e longeva - aquela que havia décadas controlava as diversões públicas; outra, revolucionária e negada: a censura propriamente política da imprensa, que era, para a ditadura, “um de seus instrumentos repressivos”. (FICO, 2004, p. 87)

A censura sempre permaneceu presente no cenário brasileiro, havendo com a edição do AI-5 uma intensificação da censura da imprensa. A censura de diversões públicas era feita com orgulho pelo Departamento de Censuras de Diversões Públicas (DCDP), com vistas a defender a moral e os bons costumes. Distintamente, a censura de imprensa, que remetia ao antigo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, era praticada com outros parâmetros.

Indispensável à utopia autoritária, de acordo com Fico (2004) a censura da imprensa foi implantada por meio de diretrizes sigilosas. O tema que ali prevalecia era o político, bem como aqueles de cunho moral censurados nas diversões públicas. A DCDP proibia sigilosamente críticas de caráter político nas diversões públicas.

A DCDP reiterava o velho discurso moralista da condenação daquilo que se afigura como impudico e, em contrapartida, a valorização do rigorismo, incorporando as ideias do regime ditatorial em vigor, tal como os conceitos de subversão e de abalo moral. O principal alvo dos censores era a televisão, que, para aquele Departamento, serviria como “instrumento de propaganda subliminar “no contexto da guerra revolucionária em que vivemos” (FICO, 2004, p. 102).

Menos conhecidas que as demais, a Comissão Geral de Investigações (CGI) e a propaganda política consistiram igualmente em instâncias repressivas. Fico (2004) explica que a CGI foi implantada visando o confisco de bens de funcionários públicos corruptos. O caráter desta era de tribunal de exceção, no qual determinados servidores poderiam ser convocados a prestar esclarecimentos no sentido de intimidar a prática de corrupção pelos mesmos, servindo sobretudo para irradiar práticas de abuso de poder e perseguição.

Ao contrário, a propagada política, ainda segundo o autor retro mencionado, foi mais “sofisticada”, elaborada no bojo da Presidência da República pela Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp). Os militares já almejavam a criação de uma agência de propaganda desde o início do golpe, visto que a mesma ajudaria na manipulação psicológica do povo.

Há, portanto, grandes diferenças entre a CGI e a Aerp/ARP. A Comissão propunha punições “revolucionárias” e amparava-se no AI-5. A Aerp foi criada antes do AI-5 e só punia a inteligência das pessoas que eram obrigadas a assistir seus “filmetes” (a expressão era usada com carga pejorativa pela própria Aerp) [...]. (FICO, 2004, p. 112)

Todo o aparato repressivo desenvolvido no regime de exceção era baseado na ideia de que os militares possuíam uma superioridade nas questões patrióticas e morais, fazendo-se necessária sua intervenção, a fim de extirpar o comunismo que rodeava o país e educar os brasileiros frente às debilidades que detinham.

2.2 A abertura política e a anistia como um acordo

No início do governo militar foram adotadas medidas de crescimento econômico no Brasil que tinham como objetivo a redução da inflação e as chamadas reformas estruturais. O denominado “milagre econômico” decorreu da incidência do capital estrangeiro no país, incentivado pela estabilidade política proporcionada pelos militares. Para adquirir tão sonhado salto econômico, o país contraiu vários empréstimos e, como consequência, aumentou a renda da classe média. Por outro lado, elevou a dívida externa e as disparidades sociais.

Com a derrocada do crescimento milagroso, iniciou-se a distensão política em 1974, proposta por Ernesto Geisel. Os militares permitiram que os membros da oposição fizessem propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio. Na eleição posterior, a oposição, representada pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), terminou vitoriosa, o que fez retornar a onda repressiva que caracterizou todo o regime militar.

Os militares, almejando continuar no poder, implantaram o “pacote de abril”, decreto que fechou o Congresso Nacional, tornando a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) o partido oficial do governo.

É no bojo deste contexto que, em 1978 surgem os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA), os quais defendiam, em síntese:

A anistia ampla, geral e irrestrita para aqueles considerados como criminosos políticos e "inimigos do regime";

A erradicação da tortura;

A elucidação das circunstâncias nas quais ocorreram torturas, mortes e desaparecimentos forçados;

A restituição dos restos mortais;

A responsabilização jurídica do Estado e dos agentes da repressão;

O desmantelamento do aparato repressivo;

O fim da Lei de Segurança Nacional e das "leis de exceção";

O fim do tratamento arbitrário e desumano contra os presos políticos; e

A reconquista do habeas corpus.

(COMPARATO, 2014, p. 153)

Intensos debates ocorrem em torno da lei de anistia a ser promulgada. Os presos políticos desencadearam uma verdadeira greve de fome, como forma de manifestação a impedir a inclusão de “crimes conexos aos crimes políticos” no bojo da lei. A OAB e alguns membros do Congresso Nacional criticaram ainda veementemente a anistia aos torturadores.

Contudo prevaleceu a influência dos militares, que possuíam 41 (quarenta e um) senadores da Arena, dos quais 21 (vinte e um) eram biônicos, sendo apenas 25 (vinte e cinco) do MDB (WOJCIECHOWSKI, 2014, p. 146).

Em verdade, o projeto de anistia pensado pelo Comitê Brasileiro de Anistia era bem divergente da lei que foi aprovada. A intenção daquele órgão não era a absolvição dos torturadores, na medida em que seriam “excetuados dos benefícios da anistia os atos de abuso ou tortura, quer tenham ou não resultado em morte, praticados contra prisioneiros políticos”(COMPARATO, 2014, p. 155).

A anistia era interesse de todos os brasileiros e não apenas àqueles que foram atingidos pela repressão militar. A defesa por uma anistia ampla, geral e irrestrita tomou o país ditatorial, coexistindo num dos maiores exemplos de coragem dos brasileiros.

[...] a Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, no final dos anos 1970, foi o primeiro movimento nacional e unificado contra a ditadura militar e representou a maior frente política de caráter progressista da história brasileira (MANUÉS E ABRAMO apud COMPARATO, 2014, p. 154).

Todavia, apesar do anseio da população, a anistia “real” restou afastada do projeto de elaboração da referida lei, a qual foi monopólio dos militares (WOJCIECHOWSKI, 2014, p. 146). A Lei n. 6.683/79 serviu tanto para a transição para a democracia quanto para a permanência do poder político dos militares. Pensar em anistiar os crimes cometidos pelos militares é perdoar o que nem foi reconhecido pelos mesmos, visto que as Forças Armadas ainda têm dificuldades em assumir as violações perpetradas.

A Lei de Anistia marca o primeiro momento do “acerto de contas” do Estado brasileiro, tendo sido estabelecida nos moldes ditados pelo governo, o qual desejava implantar a pacificação e o esquecimento em favor de seus agentes administrativos em detrimento da promoção da justiça e revelação da verdade. Contudo, o movimento para promulgação de tal lei foi fundamental para a redemocratização do Brasil, em um contexto onde se tentava concretizar a transição do regime ditatorial para o democrático a partir de João Figueiredo, último presidente militar.

Para melhor compreensão desse período, segundo Gonçalves (2008) o processo de anistia pode ser fragmentado em alguns momentos. O primeiro deles é conhecido como a luta pela anistia política, que almejava o reconhecimento dos direitos políticos e de expressão, como já explanado anteriormente.

O segundo momento consistiu no retorno dos exilados ao país, sendo este, até a década de oitenta, o maior objetivo dos manifestantes. No decorrer dos anos, o objetivo dos manifestantes se voltou para os direitos perdidos com o advento da ditadura, tal como o direito ao trabalho, existindo uma verdadeira dívida social com opositores políticos.

O terceiro momento, segundo a autora supracitada, caracterizou-se pela “busca pela ‘publicização’ do ocorrido” (GONÇALVES, 2008, p. 39).

O quarto instante, por sua vez, consubstanciou-se no reconhecimento pelo Estado brasileiro dos seus erros, bem como a compensação financeira das vítimas do regime militar.

Apesar de acontecer lentamente desde a década de 1980, tornou-se mais vigoroso a partir de meados da década de 1990. Adquire conotação de que o Estado tem a obrigação de reconhecer os seus erros e compensar aqueles que foram prejudicados em vista da perseguição sofrida. (GONÇALVES, 2008, p. 39)

Após a promulgação da Lei de Anistia em 1979, tal norma continuou sendo alvo de intensos debates, visto que a mesma não teria incidido de maneira ampla, geral e irrestrita, por não ter libertado todos os presos políticos, apurado todos os crimes da ditadura, nem permitido a volta de todos os exilados. Pode-se observar, ainda, que a lei restringiu o status de anistiado político àqueles que não tivessem sofrido condenação por crimes como o terrorismo, atentado pessoal, assalto ou sequestro.

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

(...)

        § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.(BRASIL, 1979, grifo nosso)

Os agentes públicos a serviço do governo de exceção foram beneficiados pela concessão de anistia, com base na conexidade criminal prevista no art. 1º, §1º, da Lei 6.683/79, o que contribuiu para validação de prisões ilegais, tortura e execuções sumárias (ASSUMPÇÃO; KORNER, 2009, p. 196). O regime de anistiado político, por sua vez, seria compreendido pela:

1) declaração da condição de anistiado político; 2) reparação econômica, de caráter indenizatório; 3) readmissão ou promoção na inatividade; 4) contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais; 5) conclusão do curso, em escola pública, ou com prioridade para bolsa de estudos, a partir do período letivo interrompido; 6) reintegração dos servidores públicos civis e dos empregadores públicos punidos por interrupção de atividade profissional. (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 27)

O Estado brasileiro tentava pacificar os ânimos dos manifestantes, restabelecendo a democracia. Contudo, ao mesmo tempo, implantava um “esquecimento necessário” dos atos administrativos repressivos que teriam sido fundamentados no bem-estar social brasileiro, ameaçado em tese pelo comunismo. Tudo isto terminou por impedir o enfrentamento das violências despendidas pelos agentes do Estado e a efetivação do próprio Estado Democrático de Direito.

A Lei de Anistia representou, ao mesmo tempo, uma evolução, visto que permitiu o retorno de diversas pessoas exiladas, e um retrocesso aos direitos humanos, pois protegeu os militares que cometeram crimes de lesa-humanidade[1], isentando-os de qualquer responsabilização por seus atos, com base na ideia de anistia recíproca.

Nesse sentido, interessante notar o pensamento ex-ministro de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro:

A Lei da Anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento da anistia, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a heroica oposição parlamentar haviam lutado. Pouco antes de sua votação, em setembro de 1979 houve o Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo e, no dia 21, um grande ato público na praça da Sé promovido pela OAB-SP, igualmente contra o projeto do governo (PINHEIRO apud COMPARATO, 2014, p. 157).

Ocorre que, diante da nova ordem constitucional, tal argumento se revelou contraditório, pois segundo o art. 5º da Constituição Federal de 1988:

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

A Lei de Anistia, na medida em que equiparou violações de perseguição política a danos patrimoniais, não responsabilizando os perseguidores por seus atos, serviu de apoio para a permanência dos quadros do regime autoritário nas instituições estatais (COMPARATO, 2014). Tal dispositivo legal tornou válidas as prisões ilegais e torturas ocorridas na época.

A ideia de segurança nacional tentou a todo custo fundamentar a prática dos crimes de lesa-humanidade, impedindo os governantes brasileiros de enfrentar as violações perpetradas em consonância com os princípios e as regras dos direitos humanos e do Estado de Direito. O direito à verdade e à dignidade das vítimas do regime ditatorial foram limitados em favor da segurança do Estado, pois as informações sobre assuntos internos deveriam ser preservadas, colidindo, assim, com a transparência e a responsabilização dos infratores.

2.3 A Lei de Anistia

A anistia consiste numa espécie de indulgência, retirando as consequências de alguns crimes praticados, ou seja, é por meio dela que o Estado renuncia a seu direito de punir (CAPEZ, 2012). A Lei n. 6.683/79 é uma modalidade especial de perdão, destinada apenas aos crimes políticos.

De competência legislativa exclusiva da União (art. 21, XVII, da CRFB/88), a anistia, uma vez concedida, não pode ser revogada, pois violaria o princípio da irretroatividade penal, consubstanciado no art. 5º, XL, da Magna Carta, na medida em que uma lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu.

Ademais, a anistia extingue a punibilidade estritamente penal, não alcançando os efeitos extrapenais.

[...] Desse modo, a sentença condenatória definitiva,mesmo em face da anistia, pode ser executada no juízo cível, pois constituitítulo executivo judicial. Quanto a outros efeitos extrapenais já decidiu oSupremo Tribunal Federal: “a anistia, que é efeito jurídico resultante do atolegislativo de anistiar, tem a força de extinguir a punibilidade, se antes dasentença de condenação, ou a punição, se depois da condenação. Portanto, éefeito jurídico, de função extintiva no plano puramente penal. A perda de bens,instrumentos ou do produto do crime é efeito jurídico que se passa no campoda eficácia jurídica civil; não penal, propriamente dito. Não é alcançada peloato de anistia sem que na lei seja expressa a restituição desses bens”. (CAPEZ, 2012, p. 591)

A anistia pode anteceder ou não uma sentença condenatória. Caso advenha após uma condenação, a punibilidade poderá ser extinta de ofício pelo magistrado ou a requerimento do interessado, membro do Ministério Público, autoridade administrativa ou Conselho Penitenciário, conforme art. 187 da Lei de Execução Penal.

A lei de anistia brasileira abarcou os crimes políticos praticados entre 1961 a 1979, contudo, quando da sua elaboração, terminaram beneficiados torturadores e vítimas, a partir da interpretação de crimes conexos disposta no parágrafo 1º do art. 1º do referido dispositivo legal:

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. (BRASIL, 1979).

Todavia, faz-se imperioso destacar que crimes conexos configuram uma espécie de delito cometido para realização, ou até mesmo para ocultação, de outros. Ambos estão interligados por um ponto comum, há um encadeamento nas causas. Ora, tendo isto em vista, não se pode imaginar que a lei de anistia brasileira tenha perdoado torturados e torturadores, visto que não há conexão entre as ações da vítima e do criminoso, conforme aduz Piovesan et al. (2010).

Na justiça de transição deve haver uma ruptura entre o autoritarismo do passado e implantação da ordem democrática. Beneficiar os agentes administrativos daquela época consistiria na corrupção da democracia. Interessante ainda notar que, de acordo com a ordem internacional, o crime de tortura é imprescritível e insuscetível de anistia, sendo dever do Estado o processamento, julgamento e punição dos infratores.

O Brasil, na medida em que ratificou a Convenção Americana de Direitos, revela-se em consonância a este entendimento. A Lei nº 8.072/90 preceitua que são insuscetíveis de anistia, ainda, os delitos de cunho hediondo, bem como a prática de tortura, terrorismo e tráfico ilícito de entorpecentes.

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:  

I - anistia, graça e indulto;

II - fiança.

Proteger os agentes da repressão com base na ideia de conciliação nacional corrompe o Estado e o faz dar continuidade à violação os direitos fundamentais daqueles que foram perseguidos por pensamentos contrários à ordem vigente. Há notória mácula ao direito à verdade, o qual é essencial para identidade de uma nação. Tal direito é assecuratório da preservação da memória, de maneira a assegurar que outras gerações tenham conhecimento deste período e não repitam os mesmos atos.

A perversa pratica da tortura lança o Estado a deliquência, convertendo‑o de guardião de direitos em atroz violador da legalidade. Faz‑se fundamental romper com o continuismo autoritário no ambiente democrático. A justiça de transição demanda o direito a justiça, o direito a verdade e reformas institucionais – temas que remanescem negligenciados na experiência brasileira. Faz‑se necessário viabilizar transformações profundas no aparato repressivo de segurança herdado do regime militar – o que inclui reformas nas Forcas Armadas e nas policias civil e militar. Tais medidas mostram‑se essenciais ao fortalecimento da democracia, do Estado de direito e do regime de proteção dos direitos humanos no Brasil. (PIOVESAN et al., 2010, p. 106)

É importante destacar, por fim, que a punição de casos de crimes de lesa-humanidade ocasiona o fortalecimento do Estado Democrático de Direito:

A admissão de normas jurídicas que definem crimes contra a humanidade e determinam a punição é importantíssima em uma perspectiva temporal relativa não apenas ao passado, mas também ao futuro. Quanto ao passado, essa admissão permite a responsabilização dos autores de graves violações a direitos fundamentais segundo padrões jurídicos reconhecidos como vigentes já à época dos acontecimentos. Quanto ao futuro, reforça a aceitação de tais padrões jurídicos em termos cada vez mais firmes e expandidos, o que contribui para a consolidação e o aprimoramento da democracia. (ROUTHENBURG, 2013, p. 692).

Assim, a tortura se configura como um crime de oportunidade, que ainda é passível de impunidade em solo brasileiro, o que pode ainda em dias atuais obstar o alcance do Estado de Direito e o real sentido de democracia sem que haja respeito aos direitos humanos.

3 CONCLUSÃO

Neste trabalho pôde ser vislumbrado que a Lei n. 6.689 de 1979 foi fruto do exacerbado poder político que os militares detinham à época no regime de exceção. A proposta da lei de anistia brasileira era distinta da que foi aprovada. O dispositivo normativo em questão se mostrou irrazoável na medida em que deveria consistir numa lei de caráter geral e irrestrito, o que não ocorreu. Ao contrário, incluiu o “perdão” a crimes de lesa-humanidade, em detrimento daquele que cometeram delitos políticos transitados em julgado, incorrendo em grave afronta à Constituição Federal de 1988.

As normas internas deveriam se adequar a sua Constituição, o que não se observa na lei ora discutida, uma vez que compactua com a perpetuação da impunidade dos agentes repressores até os dias atuais, em detrimento do direito à verdade e justiça das vítimas do Estado opressor, incorrendo em grave afronta aos direitos humanos consubstanciados nos direitos e garantias fundamentais previstos da CRFB/88.

REFERÊNCIAS

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[1]Consistem em atos desumanos, tal como o assassinato, perpetrados de forma geral e sistemática contra civis durante conflito armado, frutos de uma política de Estado. A ideia destes crimes pode ser identificada no preâmbulo da Convenção de Haia sobre as Leis e Costumes de Guerra e no Estatuto de Nuremberg (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).

Sobre a autora
Dândara Carneiro da Silva Diniz

Graduanda em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

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