O STF (em 10/6/15), por unanimidade (9 votos a 0), eliminou do ordenamento jurídico brasileiro o entulho autoritário da autorização prévia para a publicação de biografias. Somos livres para escrever sobre a vida das pessoas (com responsabilidade, é claro). Acaba de sair (com contornos de segurança) a “Lei Áurea” da liberdade de expressão no Brasil (que alcança, sobretudo, a atividade jornalística). Decretou-se o fim da censura prévia, que está proibida (expressamente) pela Constituição brasileira (pena que alguns juízes, de vez em quando, não a leiam). O “cala a boca já morreu” (sublinhou a ministra Cármen Lúcia). Isso quem diz é a Constituição (ela enfatizou). Os artigos 20 e 21 do Código Civil (que falam em autorização prévia e protegem a imagem e a intimidade contra “usos comerciais”) não são válidos. Lixos descartados. Foram defenestrados, porque inconstitucionais, por violarem a liberdade de expressão (direito de informar e de ser informado), que prepondera (como regra geral) sobre o direito à privacidade ou à intimidade.
“Daqui pra frente, tudo vai ser diferente” (disse Paulo Cesar de Araújo, o biógrafo do Rei). Mas tudo na vida tem limite. O STF não decretou um “liberou geral” (cada um faz o que bem entender), ou seja, não estamos autorizados a escrever impunemente mentiras manifestas ou invencionices bizarras e apelativas (apenas para promover a venda do livro). Não acabou o direito à privacidade (também previsto na Constituição), que deve ser indenizado ou protegido de outra forma (retificação, corte dos excessos, republicação do livro com ajustes etc.), quando ofendido descaradamente, despudoradamente, criminosamente.
Tudo que é verdadeiro numa biografia (ou interpretado como tal, com um fundo de verdade e, sobretudo, com ânimo narrativo), jamais pode constituir crime, mesmo que os “detalhes” sejam ofensivos ao biografado. Exemplos: narra-se, numa biografia, que um jurista famoso, quando bêbado, sai de cueca pelos corredores do hotel batendo com cinta em outras pessoas; que uma famosa atriz transou com o namorado a céu aberto; que outra representou no cinema transando com menores; que outro perdeu uma perna num acidente; que fulano fazia uso de drogas, que fulana praticou a prostituição durante um período da vida etc. Mesmo que tudo isso seja ofensivo à honra do biografado (ou encarado como tal), não constitui crime. Por quê? Porque (depois da decisão libertária do STF), temos que revisar a velha doutrina e jurisprudência que afirmavam que, no crime de difamação (Código Penal, art. 139), não importa se o fato é falso ou verdadeiro. Isso tudo, doravante, deve ser completamente revisto (particularmente no caso das biografias, que se encaixam na liberdade de criação literária).
O biógrafo tem liberdade de escrever tudo que descobrir (em sua pesquisa) sobre o biografado, conforme sua interpretação (razoável), ainda que isso seja ofensivo a este último. Não é o biografado que define o que é importante publicar. Cada um publica o livro que quiser, arcando com as responsabilidades pelos abusos. O STF, como fonte indiscutível do direito, “criou” essa norma (interpretando a Constituição). E o que está permitido por uma “norma”, não pode estar proibido por outra (enfoque conglobante do ordenamento jurídico, como defendido por Zaffaroni). Enquanto não criado risco proibido (abusos patentes e irrefutáveis, visíveis a olho nu), tudo fica dentro da margem do animus narrandi (que afasta de modo peremptório o animus diffamandi ou injuriandi). Se a crítica literária (animus criticandi) já não constitui delito (CP, art. 142, II), com muito mais razão, não será criminoso o fato narrado numa biografia dentro da liberdade de expressão constitucionalmente protegida (e amparada pelo entendimento do STF). O ônus de que houve abuso cabe ao biografado, não ao autor do livro.
Nos países que já deixaram para trás a era das trevas, não pode ser abolido (nem afetado em seu núcleo essencial) o direito à liberdade de se expressar e de criar obras literárias e artísticas (arcando seu autor pelos eventuais abusos que vier a cometer). Contar ou conhecer a História (de um país ou de um personagem) não é direito exclusivo dos protagonistas desta História, mas, sim, direito de todos (é direito da sociedade). Doravante, caro leitor, não adianta chorar. Sorria, você está sendo filmado (durante sua vida) o tempo todo (disse Cármen Lúcia). Daí a pertinência da advertência de Kant: “Age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal”.