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Publicação de biografias e responsabilidade criminal

Agenda 14/07/2015 às 13:38

A liberdade de expressão conta com mais uma vitória. Trata-se, aqui, do atual entendimento do STF quanto à publicação de biografias, sendo extirpada do nosso ordenamento jurídico a exigência de prévia autorização do biografado.

O STF (em 10/6/15), por unanimidade (9 votos a 0), eliminou do ordenamento jurídico brasileiro o entulho autoritário da autorização prévia para a publicação de biografias. Somos livres para escrever sobre a vida das pessoas (com responsabilidade, é claro). Acaba de sair (com contornos de segurança) a “Lei Áurea” da liberdade de expressão no Brasil (que alcança, sobretudo, a atividade jornalística). Decretou-se o fim da censura prévia, que está proibida (expressamente) pela Constituição brasileira (pena que alguns juízes, de vez em quando, não a leiam). O “cala a boca já morreu” (sublinhou a ministra Cármen Lúcia). Isso quem diz é a Constituição (ela enfatizou). Os artigos 20 e 21 do Código Civil (que falam em autorização prévia e protegem a imagem e a intimidade contra “usos comerciais”) não são válidos. Lixos descartados. Foram defenestrados, porque inconstitucionais, por violarem a liberdade de expressão (direito de informar e de ser informado), que prepondera (como regra geral) sobre o direito à privacidade ou à intimidade.

“Daqui pra frente, tudo vai ser diferente” (disse Paulo Cesar de Araújo, o biógrafo do Rei). Mas tudo na vida tem limite. O STF não decretou um “liberou geral” (cada um faz o que bem entender), ou seja, não estamos autorizados a escrever impunemente mentiras manifestas ou invencionices bizarras e apelativas (apenas para promover a venda do livro). Não acabou o direito à privacidade (também previsto na Constituição), que deve ser indenizado ou protegido de outra forma (retificação, corte dos excessos, republicação do livro com ajustes etc.), quando ofendido descaradamente, despudoradamente, criminosamente.

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Tudo que é verdadeiro numa biografia (ou interpretado como tal, com um fundo de verdade e, sobretudo, com ânimo narrativo), jamais pode constituir crime, mesmo que os “detalhes” sejam ofensivos ao biografado. Exemplos: narra-se, numa biografia, que um jurista famoso, quando bêbado, sai de cueca pelos corredores do hotel batendo com cinta em outras pessoas; que uma famosa atriz transou com o namorado a céu aberto; que outra representou no cinema transando com menores; que outro perdeu uma perna num acidente; que fulano fazia uso de drogas, que fulana praticou a prostituição durante um período da vida etc. Mesmo que tudo isso seja ofensivo à honra do biografado (ou encarado como tal), não constitui crime. Por quê? Porque (depois da decisão libertária do STF), temos que revisar a velha doutrina e jurisprudência que afirmavam que, no crime de difamação (Código Penal, art. 139), não importa se o fato é falso ou verdadeiro. Isso tudo, doravante, deve ser completamente revisto (particularmente no caso das biografias, que se encaixam na liberdade de criação literária).

O biógrafo tem liberdade de escrever tudo que descobrir (em sua pesquisa) sobre o biografado, conforme sua interpretação (razoável), ainda que isso seja ofensivo a este último. Não é o biografado que define o que é importante publicar. Cada um publica o livro que quiser, arcando com as responsabilidades pelos abusos. O STF, como fonte indiscutível do direito, “criou” essa norma (interpretando a Constituição). E o que está permitido por uma “norma”, não pode estar proibido por outra (enfoque conglobante do ordenamento jurídico, como defendido por Zaffaroni). Enquanto não criado risco proibido (abusos patentes e irrefutáveis, visíveis a olho nu), tudo fica dentro da margem do animus narrandi (que afasta de modo peremptório o animus diffamandi ou injuriandi). Se a crítica literária (animus criticandi) já não constitui delito (CP, art. 142, II), com muito mais razão, não será criminoso o fato narrado numa biografia dentro da liberdade de expressão constitucionalmente protegida (e amparada pelo entendimento do STF). O ônus de que houve abuso cabe ao biografado, não ao autor do livro.

Nos países que já deixaram para trás a era das trevas, não pode ser abolido (nem afetado em seu núcleo essencial) o direito à liberdade de se expressar e de criar obras literárias e artísticas (arcando seu autor pelos eventuais abusos que vier a cometer). Contar ou conhecer a História (de um país ou de um personagem) não é direito exclusivo dos protagonistas desta História, mas, sim, direito de todos (é direito da sociedade). Doravante, caro leitor, não adianta chorar. Sorria, você está sendo filmado (durante sua vida) o tempo todo (disse Cármen Lúcia). Daí a pertinência da advertência de Kant: “Age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal”.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Publicação de biografias e responsabilidade criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4395, 14 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40858. Acesso em: 18 dez. 2024.

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