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O controle jurisdicional dos atos parlamentares: a (in)sindicabilidade da decisão interna corporis

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Agenda 15/12/2015 às 15:18

4. O CONTRAPONTO NECESSÁRIO: A REVALORIZAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO

Com esteio no estudo de caso apresentado no presente artigo e a proposta procedimentalista de fundamentação da legitimidade da jurisdição para a sindicabilidade do processo legislativo em casos de violação de normas regimentais densificadoras de diretrizes constitucionais, oportuno se faz apresentar uma perspectiva de valorização da autonomia funcional do Poder Legislativo.

Tal viés implica, de certa forma, na limitação da colonização do Direito sobre a Política, conferindo deferência à lógica e dinâmica do jogo político. Ademais, é preciso evidenciar que a tendência de enaltecimento do protagonismo do Poder Judiciário após a Constituição de 1988 (por meio do neoconstitucionalismo e outros quetais[50]) implica, de maneira direta, na consideração da atividade política como algo indigno e indecoroso e, assim, em aversão ao Poder Legislativo. Em passagem clássica, Jeremy Waldron evidencia a existência de tal preconceito, in verbis:

As pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios. Parece que tal fórum é considerado indigno das questões mais graves e mais sérias dos direitos humanos que uma sociedade moderna enfrenta. O pensamento parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar questões desse caráter.[51]

Em sua obra “Law and Disagreement”, Waldron defende a ideia da necessidade de se estabelecer uma estrutura institucional que promova o agir coletivo para, dessa forma, viabilizar que a sociedade resolva sobre questões controversas (desacordos morais). Tal é o desafio a ser enfrentado, e as democracias liberais modernas, de certa maneira, foram bem sucedidas ao eleger o Parlamento como o lócus para dirimir os desacordos sobre princípios. Os desacordos morais e demais questões de princípios sensíveis são enfrentadas tendo por pressuposto o que Waldron denominou de “circunstâncias políticas”, compostas pelo binômio desacordo e necessidade de ação conjunta[52].

Nesse viés, o pensador neozelandês, para enfrentar a atual indisposição face ao Poder Legislativo, evidencia a inafastabilidade dos desacordos morais e a necessidade do estabelecimento de um procedimento político decisório para resolução dos conflitos[53] sem desconsiderar a ideia de dissenso permanente. Com efeito, enaltece o critério da decisão majoritária como o mais adequado e democrático até então desenvolvido, em contraposição à alternativa de se conferir a autoridade decisória à “racionalidade argumentativa” de um pequeno grupo de juízes[54].

Waldron pretende consagrar a legislação como fonte digna do direito, e, assim, procura dar resposta à crítica comum que se tem feito à legislação majoritária (aprovada segundo a regra da maioria) que a acusa de ser arbitrária, uma mera soma de números, uma pura determinação estatística. Em geral, essa crítica é feita pelos defensores do judicial review que, para tanto, buscam denegrir a imagem da legislação ou do próprio Poder Legislativo. Seria péssimo, segundo a visão desses críticos, que questões tão relevantes para a vida da comunidade sejam decididas meramente por meio da contagem de cabeças. Por esse argumento querem excluir do parlamento a deliberação sobre princípios (direitos fundamentais).

Waldron inicia sua resposta com a afirmação de o método de tomada de decisão segunda a regra da maioria é tão antigo quanto a democracia ateniense e, mais, ele é aplicado pelas próprias cortes ao decidirem questões envolvendo direitos fundamentais. Ele cita, então, inúmeras decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos cujo placar final foi de cinco votos contra quatro. Se houver qualquer arbitrariedade em uma decisão majoritária legislativa, ela deve estar presente também nas decisões da Suprema Corte, de modo a viciar quase todo o direito constitucional norte-americano. Ele enfatiza, portanto, que a diferença entre a legislação e a decisão da Corte é de representação, não de método decisório.

Mas a principal defesa que se pode fazer da regra da maioria contra as críticas fundadas na arbitrariedade vale para as decisões das cortes, assim como para as dos parlamentos: o consentimento de que fala Locke não é físico ou de qualquer outro tipo, mas moral e relacionado à autorização para o agir coletivo de uma comunidade e à legitimidade dessa ação.

Desse modo, Waldron interpreta Locke de modo que a homenagear o procedimento. Isso quer dizer que a decisão segundo a regra da maioria não diz nada sobre a sua correção, senão apenas que a decisão, se adotada pela maioria, será legítima em relação `s questões para as quais o consentimento é relevante. O respeito a uma decisão majoritária não está relacionado a nenhuma reivindicação de maior sabedoria das multidões, como querem os críticos, mas a sua legitimidade.[55] [grifou-se]

Sobre a “física do consentimento”, Waldron apresenta severas críticas às teorias deliberativistas que enfatizam a “conversação e a unanimidade como valores processuais-chaves”[56], olvidando a persistência do dissenso, cujo impasse somente poderá ser solvido mediante o critério decisório da maioria.

Os modernos proponentes da democracia deliberativa enfatizam a conversação e a unanimidade como valores processuais-chave. Idealmente, dizem, “a deliberação almeja chegar a um consenso racionalmente motivado – encontrar razões que sejam persuasivas para todos os que estão comprometidos a agir com base nos resultados de uma avaliação livre e arrazoada das possibilidades pelos iguais” [Joshua Cohen] Ora, tal objetivo é certamente importante em termos da lógica da deliberação. Argumentar de boa-fé é apresentar razões que (pensamos) o outro deve aceitar. O fato de duas ou mais pessoas persistirem no argumento significa que consideram seriamente a possibilidade de, no fim, as mesmas considerações convencerem a todos. (Do contrário, para que se incomodar?) Contudo, aceitar o consenso como o telos interno da deliberação não é a mesma coisa que insistir nele como resultado político adequado. É aí que os teóricos deliberativos erram. Eles supõem que a dissensão ou discordância é necessariamente um sinal do caráter incompleto ou politicamente insatisfatório da deliberação. Sua abordagem sugere que deve haver algo errado na política da deliberação se a razão falha, se o consenso nos foge e se não há nada a fazer além de contar cabeças. Na verdade, alguns até sugeriram que só podemos ter certeza de que um processo é deliberativo se o seu resultado for unânime.

[...]

Em uma posição como essa, a necessidade de votar deve parecer uma admissão de fracasso, ditada talvez por prazos, detalhes práticos, pela ignorância ou pelo preconceito invencíveis de algumas ou de todas as partes.

Assim, é tentador para os teóricos da democracia deliberativa tentar marginalizar a votação e os processos (como a decisão majoritária) que a votação implica nas suas descrições da deliberação.[57] [grifou-se]

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Diante de tais premissas, vale questionar: seria legítimo conferir ao Poder Judiciário a última palavra quanto à definição da materialidade constitucional das normas regimentais que tratem diretamente do processo legislativo e, assim, considera-las parâmetro de controle de constitucionalidade?

Posta a questão de tal forma, está a se aventar a possibilidade de o Poder Judiciário, por critério de “racionalidade jurídico-argumentativa”, sindicar a apreciação e a observância do Parlamento a respeito das regras procedimentais editadas pela própria Casa Legislativa em caráter de exclusividade.

Enfim, a resposta a tal indagação perpassa sobre a análise da natureza (jurídica?) do Regimento Interno.

Segundo parte considerável dos juristas que se debruçaram sobre o assunto, as normas regimentais integram o ordenamento jurídico e “enquanto regras de direito positivo dotadas de previsão constitucional, são normas cogentes, de observação obrigatória[58] por todos os seus destinatários”[59].

A natureza dos regimentos das assembleias políticas está longe de ser pacífica. Seja ela qual for, se as próprias assembleias podem modificar as normas regimentais quando lhes aprouver, não poderão dispensar-se de as cumprir enquanto estiverem em vigor. Quando o Parlamento vota uma lei, ou uma resolução, o objecto da deliberação é o projecto ou a proposta e não o regimento; essa deliberação tem de se fazer nos termos que este prescreve e não pode revestir o sentido de modificação tácita ou implícita das suas regras. O princípio que aqui se projecta para além do princípio hierárquico é sempre o de que o órgão que pode modificar a lei sob que vive deve, pelo menos, fazê-lo específica e directamente. Doutro modo, frustrar-se-ia a missão ordenadora do Direito e comprometer-se-ia a própria idéia de institucionalização jurídica do poder.[60]

Partindo da análise de Jorge Miranda, constata-se que a atribuição de juridicidade e cogência incondicional e ampla ao Regimento Interno é calcada no pressuposto da institucionalização jurídica do poder e, consequentemente, na onipotência do Judiciário para apreciar, inclusive, as “circunstâncias políticas” (na expressão de Jeremy Waldron), posto que, em última instância, a “constitucionalização” total do Estado fundamentaria a legitimidade da apreciação jurisdicional.

O fato é que a defesa da parametricidade do Regimento Interno[61] implica na supressão da autonomia do Poder Legislativo diante das vicissitudes e peculiaridades das circunstâncias políticas que envolvem o processo de criação normativa, entregando ao Poder Judiciário, guiado por critérios de racionalidade jurídica, a palavra final sobre a adequabilidade substancial da ação legislativa face ao regimento.

Há que se conferir a devida apreciação e qualificação à suposta “inobservância” pontual das normas regimentais, porquanto a condução procedimental propriamente dita está submetida aos mesmos pressupostos da materialidade da função legiferante: respeito aos limites estabelecidos na Constituição e a decisão majoritária como critério democrático por excelência. Não é dado atribuir à inobservância do Regimento Interno os mesmos efeitos de violação à Constituição e, também, ignorar a diferença entre uma minoria “vencida” e uma minoria “sufocada”.

A inobservância pontual de uma regra regimental (que não seja reprodução do texto constitucional) a partir de um consenso formado no seio da Casa Legislativa tendente a viabilizar a tramitação de determinado projeto de lei não enseja, necessariamente, um desrespeito à Constituição.

É exatamente nesse ponto que reside a crítica à postura de conferir legitimidade ao Poder Judiciário para atribuir a “materialidade constitucional” à determinadas normas regimentais. De se notar que, nesse contexto, existe uma superposição de Poderes e não uma relação harmônica ou de check and balances, afinal, ainda que haja consenso (o que envolve a minoria), a manifestação política estaria sendo substituída pela apreciação jurídica de um pequeno número de juízes.

Destaca-se, por oportuno, as palavras de Dieter Grimm, in verbis:

Disso sofre a separação entre direito e política, pois a aplicação do direito torna-se forçosamente o seu próprio criador de normas. A tarefa política da decisão programadora passa para as instâncias que devem tomar decisões programadas e que somente para tanto estão legitimadas a aparelhadas. Isso não tinge apenas a vinculação legal da administração. Onde faltam critérios legais que determinem a conduta dos destinatários da norma de forma suficiente, a jurisdição também não pode fiscalizar se os destinatários se comportaram legalmente ou não. Porém, se ela aceitar sua missão de fiscalização, ela não vai mais utilizar critérios preestabelecidos, mas impor suas próprias noções de exatidão. Dessa maneira, ela se transforma, em escala intensificada, em poder político que, ele mesmo, assume funções de legislação. Então, a decisão política migra para onde ela não tem que ser responsabilizada politicamente, enquanto que à responsabilidade política não corresponde mais nenhuma possibilidade decisória. Nesse ponto, no nível da aplicação do direito paira a ameaça de uma nova mistura das esferas funcionais de direito e política, para a qual ainda não são visíveis soluções convincentes nos dias de hoje.[62] [grifou-se]

Afinal, nesse sentido, ficaria ao alvedrio do Judiciário a seleção e definição de quais normas regimentais seriam alçadas à condição de parâmetro de controle, tendo por critério a “densificação” das condições procedimentais de natureza constitucional, o que implicaria na retirada de autonomia do Parlamento em realizar, de modo direto, a interpretação da Constituição, visto que a última palavra a respeito da materialidade constitucional de determinada norma regimental seria dada por magistrados.

Nesse viés, vale lançar mão de instigante observação feita pelo Deputado na Constituinte de 1987-1988 e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, o jurista Nelson Azevedo Jobim: “só existe Regimento Interno onde não existe consenso” (informação verbal)[63]. De fato, considerando o regimento como “ordenamento interno” e dinâmico por excelência, diante de eventual consenso no sentido de se afastar um regra regimental, não haveria, necessariamente ofensa à Constituição.

O estudo de caso apresentado neste trabalho exemplifica o que ora se expõe: no curso da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição nº 12-A/2006, em dezembro de 2009, a regra contida no art. 362 do Regimento Interno do Senado Federal, que prevê a observância de um interstício mínimo de cinco dias entre os turnos de votação de projeto de emenda constitucional, foi afastada mediante o voto da unanimidade dos parlamentares presentes na sessão e em conformidade com o disposto no art. 412, III, do mesmo regimento. Levada a questão ao STF, restou decidido ser vedado ao Poder Judiciário imiscuir-se na questão, posto que, por não ser a regra do art. 362 do RISF reprodução de norma constitucional, a decisão pelo seu afastamento seria matéria interna corporis.

A guisa de conclusão, ainda que com base em outros pressupostos, cumpre estabelecer a concordância com a conclusão do STF a respeito da insindicabilidade da decisão interna corporis, de modo que a contrariedade às regras regimentais somente autorizaria a atuação do Poder Judiciário quando houver violação à preceito ou garantia de índole constitucional.

Sobre o autor
Victor Aguiar Jardim de Amorim

Doutorando em Constituição, Direito e Estado pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos do IGD. Professor de pós-graduação do ILB, IDP, IGD, CERS e Polis Civitas. Por mais de 13 anos, atuou como Pregoeiro no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (2007-2010) e no Senado Federal (2013-2020). Foi Assessor Técnico da Comissão Especial de Modernização da Lei de Licitações, constituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 19/2013, responsável pela elaboração do PLS nº 559/2013 (2013-2016). Membro da Comissão Permanente de Minutas-Padrão de Editais de Licitação do Senado Federal (desde 2015). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Advogado e Consultor Jurídico. Autor das obras "Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência" (Editora do Senado Federal) e "Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019" (Editora Fórum). Site: www.victoramorim.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Victor Aguiar Jardim. O controle jurisdicional dos atos parlamentares: a (in)sindicabilidade da decisão interna corporis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4549, 15 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43596. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado sob a supervisão do Prof. Dr. Gilmar Mendes, como requisito de avaliação parcial da disciplina “Jurisdição Constitucional” do programa de Mestrado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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